1989: o ano do thrash metal no Brasil – Metallica

In Bandas, Especiais, Shows
Vinicius Castro

Sobre o Metallica, na década de 80, Ron Quintana, na época editor do fanzine Metal Mania e um colecionador de demo tapes, escreveu que a banda tinha “potencial para tornarem-se os deuses do metal americano”. Quintana estava certo, exceto pela limitação geográfica em localizar o gigantismo da banda somente no continente americano. O Metallica traz o metal no nome, o que, por si só, já seria uma chancela definitiva e que não reconhece fronteiras.

Não é um exercício simples, dado que a experiência é algo pessoal, mas tente se locomover para 1988. Discos não eram algo fácil de se conseguir. Eram caros e demoravam meses para chegarem no Brasil. Por exemplo, quando o Ride the Lighting chegou em nossas mãos, o Master of Puppets já havia sido lançado há algum tempo.

Mas se já não era simples conseguirmos os discos, imagine ver algum vídeo das bandas de que gostávamos? Fitas de vídeo com gravações de shows eram passados de fita pra fita, de mãos em mãos, de sonhos para sonhos e assim iam conquistando os corações de quem não tinha muito, mas se entregava de corpo e alma ao que fosse possível conseguir. Era isso. Conseguir. Ter algo daquelas bandas era de fato uma conquista. Era difícil ouvir as pessoas dizerem que haviam comprado um LP de alguma banda de metal. Diziam que haviam conseguido um LP.

Aos fins de semana, a loja Woodstock Discos era o nosso Youtube. Eram passados vídeos, em uma televisão pequena, mas de alcance e efeito incalculáveis. Assistíamos aos shows, dividíamos nossas impressões na porta da loja e voltávamos para casa ansiosos pelos “shows” do fim de semana seguinte. Havia o romantismo da espera e isso alimentava ainda mais a vontade de chamar aquela banda de sua. Porque era de fato a nossa razão de movimentar nossos dias em função da música.

Se ter os discos era uma luta, ver as bandas em vídeo um evento, imagine então sonhar em um dia assistir aquelas bandas ao vivo no Brasil. Parece piegas, mas sonho é a palavra que melhor define o que foi saber que o Metallica, que lançava seu quarto disco, …And Justice For All, iria pisar em palcos brasileiros.

A notícia da vinda causou grande comoção. Era uma das maiores bandas daquele momento. Não demorou muito e histórias começaram a surgir. “Será que eles vão trazer o palco com as estátuas da capa de …And Justice For All?” “Será que vão tocar tal música?” “Será que esse novo baixista é tão bom quanto Cliff Burton?” Naquele momento inúmeras possibilidades fertilizaram nosso imaginário.

Os shows aconteceram no Ginásio do Ibirapuera. Não pudemos ver a banda ao vivo, mas gravamos em fita k7 o show que foi transmitido pelo programa da rádio 89 FM apresentado por Walcir, o Comando Metal. Era uma fita Basf, velhinha, mas de uma importância enorme na criação do NOSSO show do Metallica. Aquele show, naquela fita, definiu muita coisa em nossas vidas.

Para lembrar desse evento que em 2019 chega aos 30 anos, reunimos algumas pessoas para compartilhar suas histórias e as lembranças de quem teve a sorte de viver aquele momento e ver de perto, parafraseando Ron Quintana, os deuses do metal mundial.

Metallica ao vivo em SP. Acervo Fernando Camacho (Black Hole)

O anúncio daquele primeiro par de shows do Metallica, no Ginásio do Ibirapuera, promovendo o disco mais ambicioso do thrash até então, o duplo …And Justice For All, e destacando a entrada do baixista Jason Newsted na vaga deixada pelo saudoso Cliff Burton, soa como a vinda do Messias na São Paulo sedenta por cultura de três décadas passadas.

Diferente do Nuclear Assault, eu sacava bem os três trabalhos anteriores da banda lançados no Brasil, a ponto de me pegar pensando, durante o longo trajeto de ônibus + trem + caminhada dos cafundó de Osasco até o Ibira, se tocariam as favoritas “Seek & Destroy”, “Fade To Black”, “Master Of Puppets”, e a versão de “Last Caress”, dos Misfits. 

Chegando lá, muitas horas antes do que o ingresso mandava, a multidão já era grande, e a excitação parecia palpável no ar. Das poucas oportunidades em que os integrantes das bandas locais, tipo Korzus, MX e Volkana, estampavam a mesma face de fã que nós, meros moleques mortais.

Depois de amansar a ansiedade na fila com cachaça da pior qualidade, já lá dentro, me recordo de olhar a casa lotada e pensar que aquela era a maior concentração de párias da sociedade que eu já tinha visto na vida! E nada tiraria a tão gloriosa sensação de pertencimento. Nem mesmo a Pior Acústica do Planeta, título que o local, escolhido tantas vezes por pura falta de opção, parecia orgulhoso em ostentar, nem o sonolento solo de baixo que pareceu durar metade do show. 

Tá limpo que logo depois eles mostrariam sua verdade redneck, corporativista, alcoólatra, e intolerante, que deve explicar as inúmeras voltas gloriosas ao país que escolheu Bozo Nazi como líder, mas na época teve o doce sabor da vingança dos nerds.
Rodrigo Brandão (Gorila Urbano)

Os shows seguiam em alta e o Ginásio do Ibirapuera foi palco da primeira passagem do Metallica no Brasil, um evento que movimentou todo o cenário do heavy metal. Todo mundo queria ver aquela banda americana que tinha despontado no thrash metal e, na ocasião, estava promovendo o álbum …And Justice For All (1988).

O primeiro dos dois shows que faria no Ibirapuera ocorreu em 6 de outubro de 1989, apenas dois dias depois que tirei o gesso na perna direita. Havia me contundido em um jogo do campeonato interno de futebol do Ipê Clube. Milagrosamente, eu havia marcado um dos gols do time do Nhara naquele dia. Ainda mancando, tive ir ao show andando com bengala. Qual não foi minha surpresa quando não me deixaram entrar com ela no show. Disseram que eu poderia bater nos outros. Não me lembro quem foi, mas alguém que estava comigo e meu irmão na nossa “caravana” teve de levar a bengala de voltar para o carro. Aproveitaram, também, para tirar cintos, braceletes, bottons e tudo que novamente os seguranças e porteiros estavam pedindo para que os headbangers tirassem. De novo, com aquela promessa que passamos no show do Vulcano, Venom e Exciter em 1986: “devolveremos na saída do espetáculo”.

Desta vez, fiquei no setor amarelo da numerada, na fila F, aguardando ansiosamente a intro “The Ecstasy of Gold”, de Ennio Morricone, começar a rolar nos PA’s. Depois, só não pulei com “Blackened” porque eu realmente não conseguia nem ficar em pé direito. Todos estavam empolgados, mas meu irmão vibrou demais em “For Whom the Bell Tolls” e Guilherme Murbach, do Ipê Clube, ficou até berrando a melodia da entrada quando tocaram um trecho de “The Frayed Ends of Sanity”. Mais um grande show para a conta.
Ricardo Batalha (redator-chefe da revista Roadie Crew)

James Hetfield no Ginásio do Ibirapuera. Acervo Fernando Camacho (Black Hole)

Peraí que eu vou chorar primeiro antes de falar disso… hahaha. Esse show foi a confirmação da nossa sensação de uma banda no seu auge tava vindo pra cá. Você se sente muito privilegiado de acompanhar isso. E aí tinha o lance do Cliff Burton, que tinha morrido há pouco tempo, e eles já tinham outro baixista. É um ano antes do Black Album e a coisa já tava gigante. Na época teve um papo da banda ter trazido o palco completo pro show daqui, com as estátuas da capa do …And Justice For All. Foi foda ver o palco completo, mas se tinha mais coluna, menos estátuas, se elas iam quebrar ou não… não é isso! Pra mim é os caras, a música mesmo.

O que eu mais lembro desse show são duas coisas. Homens e mulheres chorando antes de a banda entrar. Na introdução de “Blackned” eu olhava pro lado e tinha muita gente chorando de verdade! Eu tava sem conseguir falar. Até o momento de ver os caras entrando no palco, eu não achava que o Metallica ia tocar. Parecia que eu tava numa espécie de limbo.

Fui nos dois dias, porque a gente nem cogitava assistir a um show um só. Se era show de duas datas, a gente ia nas duas. Eu lembro que em um dos dias eles trocaram os instrumentos. Aí o James foi tocar bateria, o Lars foi pro vocal e o Kirk e o Jason também inverteram os instrumentos. E nesse formato eles tocaram “Prowler”, do Iron Maiden, “Am I Evil”, “Bredfun”. Eu lembro de ser um lance tipo “nossa, olha os caras brincando, mano!”. A gente tudo chorando e eles na zuera. Me deu também uma sensação de achar legal eles conseguirem se divertir na frente de todo mundo, meio um lance de garagem. Era a banda mais foda do mundo, no auge, mas ao mesmo tempo eram os caras ali só fazendo um som. Isso fez eu me identificar muito. 
Pablo Menna (guitarrista do Questions)

Jason Newsted no Ginásio do Ibirapuera. Acervo Fernando Camacho (Black Hole)

O momento mais marcante do show do Metallica foi quando começou a rolar MX nas caixas de som. O Ginásio do Ibirapuera estava lotado e o público começou a cantar junto de forma absurda a música “Figthing for the Bastards”. Lembro de isso ter me emocionado, além de o Jason Newsted (baixista) entrar no palco com a camiseta da Fucker Records, gravadora do MX.
Alexandre da Cunha (baterista do MX)

Manu, o segundo sentado da esquerda para a direita, em SP

Saí de Araguari com alguns amigos no dia do show. Na época eu era baterista do Angel Butcher e recém integrado ao Sarcófago, e conheci o Metallica com o magistral Kill ‘Em All. Sou da primeira geração do thrash e tenho muito orgulho disso! Metallica, Anthrax e Exodus realmente mudaram a minha vida. Ainda nos recuperávamos da perda do fantástico Cliff Burton e a banda já anunciava disco e baixista novos. E viria ao Brasil! Em Sampa fomos para a casa da Suzy, que era vocal do Masturbator. Não era casa, nem era dela. Era uma quitinete do irmão dela, na Liberdade, que acomodou umas 12 pessoas.

Lembro que tomei uma geral da Rota num bar no entorno do ginásio. Tive crises de sonambulismo dos meus 16 aos 18 anos e tomava um remédio. Os caras grilaram porque eu tinha só dois comprimidos sem bula na carteira. Num país que tinha acabado de sair da ditadura a abordagem policial era extremamente rude e preconceituosa, e alguns roqueiros idiotas infelizmente pedem a volta daqueles tempos. Enfim…

O show foi uma porra de uma aula! Teve todos os clássicos: “Blackned”, “For Whom the Bell Tolls”, “Master of Puppets”, “Seek & Destroy”, “One” , “Last Caress” dos Misfits, “Damage Inc”. Tudo no auge da pegada, com um som cristalino e o palco original da tour com suas passarelas imitando pedra.

Assisti na pista, e ficamos tão perto que, quando James jogou alguns vinis do single de “One”, A Flávia, uma amiga de Araguari, pegou um. Além da aula de thrash, teve aquela congregação de amantes do estilo que é algo que só quem vive sabe como é. Era novo, unido e puro amor ao som. Era demais! Lembro que encontrei amigos com quem me correspondia, entre eles o Flávio, do Leviaethan (RS). Foi uma porra de uma noite incrível e uma master class de thrash metal!

Um detalhe pitoresco é que, na nossa turma estava o Renato Coca-Cola, lenda do metal uberabense. Ele conheceu uma mina no show do Metallica, ela voltou com ele pra Uberaba e se casaram! E na aliança estava escrito Pat Hammet e Renato Hetfield!

Fomos a pé do Ibirapuera até a Liberdade, falando sobre a experiência pela qual tínhamos passado. Aquela coisa bem gangue, 12 vultos de camisa preta andando por ruas desertas e falando alto. Minerada (e alguns paulistas) loka! Na segunda eu já estava de volta a Araguari e ao meu trampo de office boy, mas algo havia mudado pra sempre.
Manu Joker (vocalista do Uganga, produtor, apresentador do programa Underdose e ex-baterista das bandas Angel Butcher e Sarcófago).

É curioso que cada vez que falamos do show do Metallica no Ibirapuera, em 89, alguns pontos são reincidentes. A bateria com chamas, emprestada pelo mitológico Tibério, icônico baterista da instituição Harppia; a troca de instrumentos entre os integrantes no final do show, ou ainda o longo tempo que a banda demorou para sair do palco, mesmo após os encores [bis] ou até a frustrada visita de Hetfield à Woodstock.

O sentimento nítido, hoje, três décadas depois, é que aquele momento foi crucial para os fãs e bandas de metal. Não que a vinda da banda ao Brasil tenha desencadeado o que se seguiu, mas aconteceu simultaneamente ao crescimento da cena e o interesse aqui. O Metallica estava com os dois pés fora do underground no exterior, mas vimos um pouco da fúria que restou daquele momento; no entanto, aqui eram uma banda de proporções maiores – por causa da nossa carência, é claro.

O … And Justice For All tinha acabado de cair nos nossos ouvidos, via Comando Metal, se não me engano (importante frisar que naquela época ouvíamos falar dos lançamentos mas não tínhamos eles tão rápido quanto hoje). Foi certeiro, agradou a maioria. Ver aquilo tudo ao vivo era muito difícil de imaginar, mas aconteceu. Sem o cenário completo, sem a estrutura toda e, principalmente, sem Cliff Burton, mas aconteceu.

Entre minhas lembranças mais vívidas, a “quase” hostilidade a um Jason Newsted, que recebeu uma cusparada (ou duas) e devolveu (no alvo errado), tendo arriscado um solo que hoje é bem legal de rever, mas na época foi criticado, lógico, pela comparação óbvia, e a qualidade do que se ouviu naquela noite, qualidade essa que muitas vezes depois, em muitos shows de várias outras bandas nos anos seguintes, não foi alcançada.

Retomando, foi uma noite importante para aquela geração. Acho que entre nascimentos/renascimentos/redescobertas de músicos e bandas, muita coisa ficou decidida por aqueles caras, de São Paulo, do interior, de outros estados, enfim, no sentido de dar vazão à sua música. Corria a lenda que aqui no Tatuapé um dos nossos teria tirado o “…And Justice For All” inteiro em poucos dias, certamente motivado por esse show também. Ainda acho que não é verdade, mas como meu irmão caçula certa vez disse, “deixa assim, se é lenda, tem que ser grandioso, soa melhor”.
Paulo “Bilão” Marcondes – (guitarrista e vocalista do Insanitah)

Famosa foto de James Hetfield chegando na Woodstock Discos

O Metallica é uma das três bandas que têm uma história muito ligada com a Woodstock. O início deles e o nosso na estrada do metal. As outras duas são Iron Maiden e Sepultura.

Bem, tudo na Woodstock acontece como um passe de mágica, inclusive hoje. Ao receber um telefonema de que o James Hetfield viria na loja, passou em segundos um filme na minha cabeça não acreditando no que iria acontecer, pois três anos antes tinha assistido a eles no Hammersmirh Odeon, em Londres. Era o antepenúltimo show do Cliff Burton e após alguns dias recebi o telefonema do Jon Zazula, da Megaforce, dando a triste notícia [da morte de Cliff]. Inesquecível esse momento.

Ao assistir o show no Ibirapuera em São Paulo percebi que definitivamente estávamos na cena do metal no mundo, o que ficaria ainda mais forte nos anos seguintes eternizado no documentário Woodstock Mais Que Uma Loja, do Wladimir Cruz!
Walcir Chalas (Woodstcok Discos)