Annie Hardy 'Rules' reflete dor, perda e a cura pela música

In Bandas, Discos

Com o Giant Drag, Annie Hardy lançou dois discos, Hearts and Unicorns (2006) e Waking Up Is Hard To Do (2013). Ainda com a banda, também gravou dois EPs, Lemona (2003) e Swan Song (2010). Depois disso, Annie andou meio sumida para o grande público, mas seguiu criando, compondo e registrando suas viagens mais lo-fi. Entre elas, vários singles no seu Bandcamp, alguns clipes de baixo orçamento, parcerias com o namorado rapper e algumas bandas amigas, e um projeto muito doido chamado PnP (Party n’Play), que nada mais era que uma “banda” freestyle, de improviso.

Quase tudo que ela fez não teve o grande alcance ou mesmo soou tão bom como o indie-rock cancioneiro registrado em Hearts and Unicorns. No mesmo ano ela ainda participou de uma música em Saturday Night Wrist, disco do Deftones. É dela os vocais gravados na faixa “Pink Cellphone”. Mais tarde, também fez algumas aparições nos shows do Crosses, um dos projetos de Chino Moreno.

Em 2017 Annie está de volta com um dos lançamentos mais legais do ano: Rules. E se em Hearts and Unicorns ela soava doce, irônica e até pop, em Rules ela aparece ferida, sobrecarregada e sustentando uma maturidade um tanto dolorida.

Rules é um disco de puro expurgo. Um relato de músicas envernizadas por sentimentos necessários e letras gentilmente confiadas a nós, ouvintes.

Mas é preciso entender o contexto onde esse disco foi gerado para que a gente possa mergulhar no universo que ele desenha.

Em março de 2015, Annie perdeu seu filho Silvio, com apenas 17 dias de vida, em decorrência da SIDS – Sudden Infant Death Syndrom (síndrome da morte súbita infantil). Dez meses depois, seu namorado Robert Paulson, pai de Silvio, também morreu depois de uma overdose. Nascido e radicado em Los Angeles, Robert era Cadalack Ron, um rapper bem conhecido na cena hip-hop underground da cidade.

Rules é o resultado desse período. É por onde Annie sangrou. Um disco que chegou meio de repente, sem muito alarde por parte da mídia e que pegou a gente desprevenido. Daí por diante diante, nós o ouvimos uma vez no primeiro dia, duas no segundo e assim por diante.

Todo álbum reflete uma atmosfera pesada, cortante. Um conto confessional que tem seu primeiro capítulo em “Train”, uma espécie de folk mal assombrado estrelado por Don Bolles, do 45 Grave e do The Germs na bateria. “Train” inaugura o álbum passando bem longe do que a gente chamaria de uma “faixa legal para abrir um disco!”. Não é daquelas que cativam de primeira, não sintetiza o que é o álbum e não tem aquela força explosiva que uma faixa de abertura precisa comportar, estratégica e mercadologicamente falando. Ela é seca, dura e por isso é perfeita para abrir este, e não um outro disco qualquer.

“Jade Helm” e “Want” seguem na mesma linha. Essa última, num climão southern rock 70, é uma das melhores. Tem um canto incômodo quando ela entoa I want my baby back / What else can I do? (Eu quero o meu bebê de volta / O que mais posso fazer?). Em ambas, além dos vocais, ela toca piano e conta com a participação do amigo Joe Cardamone, do The Icarus Line, uma banda de Los Angeles que recentemente também passou por uma tragédia quando perdeu seu guitarrista .

Cardamone também foi uma espécie de anjo da guarda de Annie. Produziu, mixou, e foi uma peça muito importante no incentivo para ela compor e gravar o disco.

Annie Hardy e Joe Cardamone. Foto: Divulgação

“Shadow Mode” usa sussurros intimistas e ameaçadores como uma sutil camada coadjuvante de vozes que se misturam aos vocais principais e ao final, no conjunto, tudo se encaixa perfeitamente.

Enquanto isso, “Go Hey Ru Ku”, que já havia ganhado um vídeo em 2016, junto à intensa “Blood In Blood Out”, outro destaque do disco, fazem a ponte para a interessante “Jesus Loves Me” e seu tom inocente de cantiga, daquelas bem simples, mas com uma letra que passa longe de qualquer fofurice. That’s how I know Jesus loves me / Cuz my life is miserable and ugly (É assim que eu sei que Jesus me ama / Porque minha vida é miserável e feia).

Do início ao fim, Rules é um disco aerado por músicas que precisam ser destrinchadas para florescer.

“Batman” deixa isso claro. É de cortar o coração. Ela fala sobre o filho de Annie, que morreu enquanto usava um tipo de macacão com o formato do Batman. And now that my Batman’s gone / You’re robbing me of all I live for / He’s gone, he’s gone / Wish I knew back then what I know now all along / He’s gone, he’s gone / Hold on to the memory of his face before it’s all gone (E agora que meu Batman se foi / Você está me roubando toda minha razão de viver / Ele se foi, ele se foi / Eu queria ter sabido naquela época o que eu sei agora / Ele se foi, ele se foi / Mantenha a lembrança de seu rosto antes de tudo desaparecer).

De primeira, entendemos que a segunda estrofe dizia Robin, e não robbing. Mas é Annie, e ali, na faixa que encerra o disco, ela parece se defender usando uma “brincadeira” quase cínica com as palavras para estancar um pouco todo o sentimento que envolve o disco. Antes da nota final, ela canta And now that my Batman’s gone / You’re just a joker (E agora que meu Batman se foi / Você é só um coringa). E assim, o álbum também se vai.

Foto: Derrick K. Lee

Rules parece longo, é verdade. Mas depois de algumas ouvidas você entende que no fundo ele tem o tempo de que precisa para que toda a carga que ali existe seja exposta, compartilhada e ganhe significados com os quais seja possível conviver.

Recentemente, Annie disse ao LA Weekly: “Escrever essas músicas me salvou”. Talvez por isso, Rules seja a materialização de uma dor que só quem passa sabe o quanto ela parece não ter fim. Mas também, só quem passa por essa mesma dor sabe o valor que a salvação tem quando ela aparece.

Foto: Reza Bahrami