Daughters Caos e zero apaziguamento no nosso disco favorito desse quarteto americano

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Foto: Reid Haithcock

Amanda Mont’Alvão

Em 2010, o Dillinger Escape Plan lançou o excelente Option Paralysis, do qual eu arranquei “Farewell, Mona Lisa” para cantarolar e confirmar meu banimento antecipado de qualquer The Voice da vida. O Melvins trouxe a incrível “Electric Flower” no The Bride Screamed Murder, e o Austerity Program fazia barulho na miúda com o EP Backsliders and Apostates Will Burn. O Superchunk quebrava um hiato de nove anos com o Majesty Shredding, o Arcade Fire reafirmava seu arsenal qualitativo com The Suburbs e o vozeirão bonito da Janelle Monáe já não era mais segredo de Estado depois do The ArchAndroid. Mas um extraordinário feito infelizmente passou bem batido naquele ano: o terceiro (e homônimo) disco do Daughters.


Não foi apenas um caso de álbum subestimado. Foi o fim do quarteto americano sediado em Providence. Sequer houve turnê do disco, lançado pela Hydra Head, a gravadora independente e mineradora de barulho criada por Aaron Turner (Isis/Sumac/Old Man Gloom). E quando houve entrevista de divulgação do Daughters, o vocalista Alexis S.F. Marshall surpreendeu ao dizer o quanto não gostava da obra e o quanto ela mostrava uma mudança que ele não curtia. Pra ele, esse terceiro disco era uma espécie de concessão ao gosto do público.

Mesmo em sua notável diferença perante os álbuns anteriores, mais delirantemente construídos, Daughters é um BAITA disco, com 8 sólidos argumentos em forma de faixas sufocadas em uma panela de pressão prestes a explodir. “The Virgin”, a primeira música, mal começa a supitar e já estoura pouco mais de um minuto depois.

Foto: Sounds Like Us

Essa coreografia do descontrole vai se repetir nas músicas seguintes. Mas o conteúdo que vai pelos ares não é randômico ou despropositado; muito pelo contrário: é calculado, preciso na entrada de cada riff, de cada revezamento entre bumbo, caixa e prato. Mas essa predeterminação técnica sequer nos deixa preparados pros rumos improváveis e criativos que cada faixa toma. E essa riqueza é do tipo que só mesmo uma audição daria explicação à altura. Dentro da nossa limitação descritiva, a gente apenas diz: vai na fé e se deixe capturar por cada nuance.

E elas são várias. A mais óbvia talvez seja o vocal arredio e de métrica torta de Marshall, que compõe as letras. Ele narra, vocifera e exclama palavras mal ditas (e malditas) que às vezes nem são ouvidas – a primeira estrofe de “The First Supper” que o diga. Por mais que ela insista em pregar a ordem, só colhe desobediência ao longo de seus três minutos. Depois, a levadinha new metal da intro de “The Hit” se desdobra em efeitinhos quase alienígenas, mas que vestem com perfeição a narrativa do homem que propõe renovar os habitantes de uma cidade desiludida.

Foto: Divulgação

“The Theatre Goer” mergulha em um desespero emergencial banhado em distorção e rasgos da guitarra de Nicholas Andrew Sadler e sustentada pela bateria furiosa de Jon Syverson. O sufoco só ilude o resgate no começo de “Our Queens (One is Many, Many Are One)”, que se avoluma em agonia e perturbação repassadas num vai e vem exaustivo.

Na sequência vem “The Dead Singer”, em que uma guitarra insistente é acompanhada por uma bateria tribal que ganha propulsão ao acionar um bumbo indócil. Não há sequer suporte ao silêncio nesse disco; em seu lugar, o máximo que temos são alguns segundos prolongados do prato.

“Sweet Georgia Brown”, a sétima música, retoma o clima expansivo e eufórico que também caracteriza o álbum, com a adição de um irônico coro. É a penúltima música e um ótimo encaminhamento para o baixo granulado trazido por Samuel Walker para “The Unattractive, Portable Head”, faixa que empacota toda a disposição criativa do Daughters e deixa evidente o talento da banda para melodias e hinos ritmados. É a melhor música, e definitivamente a síntese de uma gramática sonora de infinitas versões do caos. A desordem e o desconforto, como sabemos, servem bem o cardápio do noise rock.