Entrevista: Falsos Conejos Novo disco "-_" mergulha no ruído, Pablo Picasso e na música torta

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A música torta tem diversas direções, sentimentos, colorações, mas, principalmente, tem a propriedade de dizer muito sobre permitir que a arte respire e possa ser o que ela deseja ser. Que ela soe, ressoe e seja livre.

Desde nosso primeiro contato com os argentinos do Falsos Conejos, nossa impressão foi de que aquela musicalidade era complexa, profunda e, antes de tudo, livre.

Depois dos EPs Sesiones Lunaticas e AntiTANGO, e do disco YYY, agora eles lançam o disco -_.

Gravado e masterizado por Bernardo Pacheco, no estúdio Fábrica de Sonhos, -_ é um álbum que pede, e precisa, de algumas imersões. Evolui bastante a cada ouvida. De cara é perceptível a carga densa que ele traz, não só nas composições, como também nos timbres, que conversam com o clima orgânico que o disco entrega.

Nessa entrevista, Leandro Conejo, guitarrista e compositor, falou sobre a construção das músicas, a presença do ruído, seu gosto por algumas bandas brasileiras e a influência de Pablo Picasso na construção desse disco que vai conversar de perto com quem procura boas e interessantes expressões vindas do rico submundo musical.

Leandro Conejo. Foto: I Hate Flash

Sounds Like Us: Pra começar, como você definiria o Falsos Conejos para quem ainda não conhece a banda?
Leandro Conejo: O Falsos Conejos é a consequência de um músico que começou tocando tango, na Argentina. Tô falando em terceira pessoa, mas é pra explicar (risos). É um músico que ficou espantado quando começou a pensar na música do próximo final de semana. O cachê do próximo final de semana. Eu me sentia como se estivesse prostituindo a minha música. Nesse processo entrei em uma outra banda, que tinha vocal, e também o Matias e o Juanca, que foram os membros originais do Falsos Conejos. Quando começamos a tocar, vimos que as partes instrumentais das músicas começaram a ficar mais legais que as que tinham vocal.

Sounds: Tinha vocal no começo de tudo, então…
Leandro: Originalmente tinha. O Matias e o Juanca já tocavam e me chamaram para compor, além de tocar guitarra. Foi uma coisa natural. As músicas foram ficando mais legais sem voz, o vocalista saiu, fomos tocando, até que um dia gravamos uma demo e tivemos que escolher um nome, porque já não era mais a mesma banda. Acho que o Falsos Conejos é um pouco isso. Um ex músico de tango que se juntou com uns caras que tocavam rock.

Capa de “-_”. Criação de Daniel Lima e design gráfico de Guilherme Pacola

Sounds: Pensando nessas definições, dá pra dizer que esse disco novo é estritamente de rock?
Leandro: Não dá pra definir rock como uma coisa só. Rock é a cultura que os brancos norte-americanos e ingleses roubaram dos negros. Roubaram do blues, botaram outro nome e comercializaram. Rock também é Ramones e Guns n’ Roses, que são bandas que eu acho legais, só que não sinto que eu tenha alguma coisa a ver com eles. Rock também é a música tocada com instrumentos elétricos por pequenos grupos, que não é diferente da música de câmara, por exemplo, feita com instrumentos acústicos. Pensando o rock desse jeito, é um disco de rock, sem dúvidas. Pensando do outro jeito, não é.

Sounds: Qual é esse outro jeito?
Leandro: Dos primeiros que eu falei, a apropriação cultural dos brancos, daquelas bandas americanas dos anos 50, ou o jeito de pensar o rock mais atual, que tem a ver com o Foo Fighters ou Queens of the Stone Age. Acho que isso tem mais a ver com a cultura pop, aquela coisa de cultura de massa. Se pensarmos desse jeito, não é um disco de rock. Não é um disco que a maioria das pessoas vai achar legal. Vão achar estranho, ou que não faz sentido. Porque é um disco que tem a ver com a desconstrução dessa cultura, talvez.

Sounds: Interessante isso. Pode ser também uma desconstrução do próprio Falsos Conejos? Nesse novo disco você acha que a banda desconstruiu o próprio jeito de fazer música?
Leandro: As primeiras músicas, dos primeiros discos, tinham um jeito mais complexo, mas na estrutura. Fazendo uma análise arquitetônica, elas eram muito mais simples que as novas. Se você não presta atenção, as músicas parecem muito mais simples; mas se você mergulhar na estrutura delas, vai ver que são muito mais complexas. Não sei se isso é desconstruir, mas talvez seja construir de novo, de um outro jeito.

José Daniel (baixo), Serginho Moraes (bateria), Leandro Conejo (guitarra). Foto: Divulgação

Sounds: Na primeira ouvida, as músicas antigas pareciam mais quebradas. As novas não parecem tanto, mas mergulhando nelas, são mais complexas mesmo.
Leandro: Isso. A primeira música do disco parece um rock quadradão, mas ela foi construída a partir da proporção áurea. Eu fiz uma tabela, fiz contas, e construí a parte rítmica da música. Nas primeiras composições não tinha isso. Eu não quero entrar muito em termos técnicos, mas se você pegar o final dessa primeira música do disco, tem uns intervalos de música contemporânea.

Sounds: Mesmo com esses elementos tivemos a impressão desse disco ter bastante elemento de noise rock, o baixo distorcido, os ruídos e tudo mais. Era um norte intencional de vocês?
Leandro: Todo o conceito do disco tem a ver com os ruídos, no sentido de algo que atrapalha a comunicação. Aqueles ruídos que aparecem na transferência do mundo humano para o digital, que é uma coisa que nesse disco aconteceu muito. Todas as músicas foram pensadas. Eu fiquei sem tocar nada, pensava numa ideia, ela começava a soar na cabeça, e aí eu ia pro computador. Nesse sentido já tinha um ruído entre o que eu tinha na cabeça e o computador. Eu fiz a construção dos arranjos no computador, depois passei pros caras tocarem. Aí já tem uma outra transferência, outro ruído. Nos outros discos eu ficava muito mais preocupado, tipo “cara, não tá saindo a coisa como eu pensei, ou de quando ensaiamos…”. Dessa vez foi o contrário. Cada coisa nova que aparecia, que fosse um ruído que não estivesse na mensagem original, a gente via o que daria pra fazer com aquilo. A gente explorou e deixou mais exposto. A questão do baixo é só de ele ficar mais na cara. No disco anterior, o YYY, tinha muito mais espaços, uma coisa sonoramente mais futurista, bem cuidada, mas você percebe que tem uma coisa artificial. Tanto na arte da capa como no som. NoYYY a gente fez uma mixagem para cada música. Esse novo foi bem o contrário. Um quarto, com paredes brancas e três caras tocando ao mesmo tempo, sem overdub e tal. A capa representa muito isso também. Ela é branca e só com uns traços para descrever isso. O ruído tem então um protagonismo bem grande nesse novo disco. Mas se vocês falam no noise rock pensando em coisas como Sonic Youth e tal, não sei se tem tanto a ver com isso.

Sounds: É que algumas bandas têm o ruído como finalidade, e pelo o que você contou pra gente, o ruído, pra vocês é constituinte.
Leandro: É. Permitir o ruído que aconteceu, deixar ele ficar por aí e explorar isso.

Sounds: É como um Big Bang da música, né? O ruído é uma explosão que, quando acontece, se transforma em música.
Leandro: Não. O ruído aconteceu além do meu intuito. Segundo o conceito do McLuhan [Marshall McLuhan, intelectual canadense], ruído é tudo aquilo que atrapalha a comunicação. No disco, o ruído são as coisas que não tínhamos pensado e que começaram a acontecer. Tanto o ruído das distorções, que as bandas de noise rock fizeram arte com isso, como também o que tem a ver com minha ideia original das músicas. Mas a construção não foi a partir do ruído.

Sounds: E as faixas? Elas foram pensadas separadamente ou você já tinha uma visão de como elas soariam como um disco completo?
Leandro: Talvez a referência mais forte seja o Guernica, quadro do Pablo Picasso. Ele não pensou: “ok, teve um bombardeio e vou colocar isso aqui, aquilo ali”. O cara tava fazendo uns estudos, pintando umas coisas sem significado, testando, e tinha tudo separado. Ele tinha que apresentar o quadro na Exposition Internationale des Arts et Techniques dans la Vie Moderne. Aí aconteceu aquele bombardeio no povoado de Guernica, ele juntou tudo e fez uma das obras mais influentes da humanidade. Na real esse disco foi isso. Do nascimento dele, até que gravássemos, se passaram seis anos. O Juan Stewart, que foi o engenheiro de som e que fez a mixagem do disco anterior, começou a falar de um álbum que eu tinha na minha casa, que eu tinha comprado, ouvido e não tinha prestado muita atenção. É um disco homônimo do Peter Gabriel (o disco também é conhecido como Melt) que não tem pratos (de bateria). Foi um álbum mítico porque foi a primeira vez que se gravou aquelas caixas e tambores dos anos 80. Aí o Juan falou pra mim “cara, por que vocês não pensam em fazer umas coisas assim? Em fazer umas coisas mais arquitetônicas na música…todo mundo toca com pratos, ele tem essa mesma função sempre, por que vocês vão fazer isso se vocês estão nessa vibe experimental de repensar tudo? ” Depois disso eu comecei a compor muito. Não músicas com começo e fim, mas estudos, como o Picasso no Guernica.

Nesse tempo eu também mudei três vezes de cidade, entre os dois discos, e eu sabia que não ia dar pra ensaiar e compor, daquele jeito de juntar todo mundo em um estúdio. Então eu comecei a fazer esses estudos. Peguei o bumbo e pensei “então tá, a melodia da música vai ser o bumbo”. Fiz um monte de músicas que tinham 15 segundos, um minuto no máximo, comecei a passar pros caras da banda, e percebi que não dava pra fazer uma música com todas elas. Depois disso, em um outro momento, assisti a um documentário sobre o Picasso e lembrei daquele jeito que ele tinha de trabalhar em que eles fazia pequenos pedacinhos e depois juntava tudo. Então eu disse “é isso aí… com todas essas pequenas ideias eu tenho que fazer isso”. Se você parar pra ouvir o disco, tem umas 30 músicas nele.

Foto: I Hate Flash

Sounds: Feitas só de pequenos trechos?
Leandro: É. A terceira faixa, por exemplo. Eu pensei “vou fazer uma música em que a caixa da bateria vai ser a guitarra”. E a caixa é mesmo a guitarra. Toda música foi pesada a partir disso. Numa outra parte era um outro trecho que eu tinha feito, então na verdade é como se fosse o Guernica. Você olha para ele, tem muitas personagens separadas que juntas formam um quadro. E o que é muito doido é que eu sempre pensei a capa desse disco como algo branco e preto, e o Guernica é branco e preto.

Sounds: Rolou uma associação inconsciente mesmo, né?
Leandro:
Sim, e quando alguém vai falar de influências, fala sempre das bandas que gosta e tal. Se eu for falar das minhas, o Guernica foi a grande influência desse disco. E dos próximos que vão vir, porque a minha ideia é que esse é a primeira parte de um total de quatro que no final vão formar um disco completo.

Sounds: Vão ter mais três então?
Leandro: Isso. Por isso a capa desse é um underline. O próximo vai ter dois underlines, depois um underline e um traço, depois um underline e dois traços. A minha ideia é pegar todos esses pequenos personagens que eu fiz de música e colocá-los em um outro quadro musical. Fica até difícil falar desse disco porque eu já tenho o próximo quase fechado (risos). Uma outra coisa que aconteceu, que foi uma influência bem grande, foi o Leptospirose. Quando os ouvi, pensei “cara, essa é uma banda que faz barulho”. Quem me mostrou a banda foi o baterista atual, quando fui fazer um show na cidade dele. Ele me mostrou também o Patife Band, que eu não conhecia e hoje acho incrível. Fiquei ainda mais doido por eles quando os vi ao vivo, em São Paulo. O Tatuagem de Coqueiro, do Leptospirose, é um disco muito doido. A construção rítmica das músicas é contemporânea, mas se você não para pra ouvir, é uma banda punk igual a outras mil que tem por aí. Isso foi uma influência muito grande pra mim também. Foi um jeito de fazer o contrário do que tínhamos feito antes.

Sounds: É o que você espera que as pessoas enxerguem no Falsos Conejos hoje? Que consigam perceber que as músicas não são somente experimentais, mas sim arquitetonicamente construídas e pensadas para isso?
Leandro: Se o nosso show for bom, as pessoas têm que achar que foi uma coisa natural, que aconteceu, que os caras estão improvisando…

Sounds: Não é como olhar o Guernica e enxergar cada um dos elementos separadamente, e sim olhar a obra com um todo.
Leandro: É! Minha intenção é essa, mas muitas vezes as pessoas acharam que a gente era uma banda de improvisação.

Foto: I Hate Flash

Sounds: Pensando nisso, vocês acham que o Falsos Conejos está mais perto de um lance experimental ou de coisas como o pós rock, por exemplo?
Leandro: O pós-rock também tem muitas definições. Pós-rock são todas aquelas bandas que se parecem com o Mogwai? Ou são aquelas bandas que, com os instrumentos usados no rock, tentaram fugir do que é o rock? Se é a segunda opção, sem dúvida o Falsos Conejos é uma banda de pós-rock. Mas se pós-rock for as bandas que se parecem com o Mogwai, que tem muitas, e que eu não acho isso ruim, sem dúvida o Falsos Conejos não é uma banda de pós-rock. É a antítese disso.

Sounds: O interessante é que esse novo disco traz mesmo um outro jeito de construir a música de vocês. Não sabemos se por conta desse tempo entre um disco e outro, ou por uma maior maturidade…
Leandro: Eu concordo. Fica ruim eu falar da minha própria maturidade, né (risos)…

Sounds: Fala em terceira pessoa como você fez no começo. O Pelé faz isso…
Leandro: (risos) O Maradona também faz a mesma coisa…

Foto: I Hate Flash

Sounds: Você acha que o público ainda enxerga o instrumental como uma música cabeçuda?
Leandro: Então, pra mim, música instrumental são três coisas. A primeira é um grande erro. A segunda é música que poderia ter vocal, mas a banda escolheu não ter, como se o vocalista tivesse faltado ao show. A terceira tem a ver com aquela coisa da pesquisa estética, de procurar outras formas e estruturas. Ou seja, vamos aproveitar que não temos aquela regra da música popular, que tem que ter uma pessoa cantando, que precise encaixar as letras seguindo as regras da poesia, e vamos tentar construir uma outra coisa. [A Falsos Conejos faz parte do primeiro grupo e do último também]. Se música cabeçuda significa um cara que parou pra pensar nas músicas, o Falsos Conejos também é isso. Eu faço as músicas na minha cabeça e depois passo para o meu instrumento. O mais importante é fazer a música que eu gosto. Se alguém me considerar um músico cabeçudo, então é óbvio que vão ser músicas cabeçudas. Acho que pra esse disco, cabe mais dizer que é math rock do que o pós-rock. Ele é muito matemático. Todas as músicas foram pensadas seguindo regras matemáticas e aquilo que falei antes, de colocar instrumentos que já têm uma função para fazerem uma outra função, é matemática pura. Acho que essa resposta vai além do instrumental. Tem mais a ver com a proposta de cada artista ou banda. Acho meio estranho pôr no mesmo saco uma banda como o Pata de Elefante e o Elma só pelo fato delas não terem vocal. Eu adoro as duas mas não acho que sejam do mesmo gênero.

Sounds: E você tá satisfeito com esse disco novo?
Leandro: Tá acontecendo comigo o que eu quero que aconteça com as pessoas. Eu tô ouvindo pela terceira vez e achando cada vez melhor. Por exemplo, essa relação que eu fiz com o Guernica, foi uma coisa que eu descobri hoje. O disco foi gravado em março de 2017. As músicas foram fechadas em 2016. Dois anos depois eu ainda tô achando coisas nele. Satisfeito eu não vou ficar nunca, mas acho que este é um disco coeso, muito fechado e com um peso estético muito maior do que o anterior.

Próximos Shows do falsos conejos:

Mini tour “-_”
25 de outubro Ass Cecília – São Paulo, SP
26 de outubro Brangança Paulista, SP
27 de outubro Sujinhos – Rio Claro, SP.
28 de outubro Festival a Idade da Terra em Trança – Sapopemba, SP.

Foto: Divulgação