Neneh Cherry antes da Neneh Cherry

In Bandas
Vinicius Castro

Com a maravilhosa “Buffalo Stance”, do disco de estreia Raw Like Sushi, lançado em 1989, Neneh Cherry balançou nossos corações adolescentes e imediatistas entregues às distorções do heavy metal e ao combativismo punk.

“Buffalo Stance” sacudiu o mundo todo. Entrou direto nas paradas inglesa e americana como um furacão até então desconhecido do grande público. Naquele final de década, Raw Like Sushi foi responsável por fazer frente a Prince e Madonna, que eram os donos das paradas de sucesso quando essas ainda eram fortes variáveis que determinavam o sucesso de um(a) artista. Aliás, vale lembrar que, em seus 20 e poucos anos, Neneh chegou a ser apontada como “a nova” Madonna.

Mas a história de Neneh já vinha sendo construída tempos antes. Ainda adolescente, ela saiu da casa dos pais, nos EUA, e passou um tempo viajando entre Estocolmo, Londres e Nova York. Foi nesse mesmo período, mais precisamente quando tinha 16 anos, que seu padrasto, Don Cherry, apresentou-lhe o The Slits, banda punk/ pós punk da época.

Leia também as edições anteriores de “A banda antes da banda”

“Eu morava em Nova York e estava começando a sair por lá. Estava ouvindo Slits, X-Ray Spex e descobrindo o reggae. Vi o Bad Brains, que tocava uma mistura de new wave, rock experimental e reggae, pela primeira vez no Tier 3”, contou à Pitchfork. Ela ainda disse que conheceu Ari Up, vocalista do Slits, e se mudou pra Londres. “O Slits era a banda dessa época para mim… Ari e eu tivemos uma jornada tão maluca que nos tornamos irmãs. Me mudei para a casa da mãe dela e depois mudamos para um squat em uma casa que ficava na estrada”, completa Neneh.

Ela chegou a contribuir com Slits por um curto espaço de tempo e gravou os backing vocals de faixas como “In the Beginning There Was Rhythm”. Ouça abaixo:

“Buffalo Stance” tem um cantinho especial na nossa memória. Mantém a força, charme e, quando toca, ainda nos arranca um sorriso diferente. Mas, antes do single, Neneh Cherry fez parte de um grupo de músicos inventivos chamado Rip Rig & Panic, banda que o Pop Matters chamou de “os verdadeiros dadaístas do punk”.

Algumas publicações localizam a banda dentro do pós punk, mas a imprevisibilidade cometida por eles era tanta que bastam apenas alguns acordes pra entender que o Rip Rig & Panic deu de ombros aos limites e abusou com graça de uma elasticidade criativa corajosa. Em seu jeito desprendido de fazer música, eles acabavam por abraçar o free jazz, dub, punk e a música africana sem qualquer receio ou necessidade de se encaixarem em prateleiras.

Rip Rig and Panic em um squat, em Londres (1981). Foto: David Corio

O Rip Rig & Panic nasceu em 1980, em Bristol, Inglaterra. Funcionava meio que como um coletivo de músicos incríveis formado pelo guitarrista e saxofonista Gareth Sager e o pianista e saxofonista Mark Springer, que vinham do The Pop Group – que de pop não tinha nada e fazia um pós punk britânico à la PIL ou Gang of Four. Completavam a formação do Rip Rig & Panic o baterista Bruce Smith, o baixista Sean Oliver e Neneh Cherry, ainda bem novinha, procurando seu timbre, coisa que ela diz ter conseguido encontrar graças ao disco Germ Free Adolescents, do X-Ray Spex. Nada mal!

Nos discos há a sensação de que tudo ali soa desenfreado e dentro de uma linguagem única, conjugada sobre um aparente, somente aparente, caos.

As músicas têm aquele clima de jam session: são livres, com evoluções e digressões quase que hipnóticas. Vão pra onde o espírito aponta. Sobre o processo de composição da banda, Sager contou: “Sean, Bruce, eu ou Springer criávamos um groove ou uma melodia e qualquer um poderia improvisar por cima… A coisa toda era bem orgânica”.

Andrea Oliver e Neneh Cherry. Foto: David Corio

Para Neneh, o som do Rip Rig & Panic cabia em uma definição mais pragmática: punk jazz. Com a banda, ela gravou quatro discos: God (1981), I Am Cold (1982), Attitude (1983) e Kill Me in the Morning (1985) – este último lançado sob o novo nome da banda, Float Up CP.

Os dois primeiros álbuns são mais experimentais. Em God, Neneh ainda é creditada como musicista convidada. É um disco mais calcado no improviso e no free jazz, coisa que se repete em I Am Cold, que traz a participação de Don Cherry. Ambos os discos eram comercialmente fadados ao submundo, o que na verdade é parte do charme da coisa toda. Ainda assim, em I Am Cold, a sensualmente nervosa “Storm The Reality Asylum” traz Neneh segura em uma linha de vocal que já daria indícios de como ela viria a imprimir sua voz em um futuro não muito distante dali.

Ainda em 1981, entre o primeiro e o segundo disco, o Rip Rig & Panic chegou a gravar a famosa Peel Session, nos estúdios da BBC, sob o comando do DJ e entusiasta incurável dos mais esquisitos e belos sons, John Peel.

E se o que delineou os dois primeiros álbuns do Rip Rig & Panic foi a libertinagem indisciplinada, você há de convir que qualquer nota fora do caos soaria mal aos ouvidos, e foi o que aconteceu com a chegada de Atittude.

É o registro mais fora dos padrões não padronizáveis oferecidos por eles, mas é também onde Neneh alcança seu maior destaque junto ao Rip Rig & Panic.

Entre as faixas, em “Sunken Love” ela traz toda força e sensibilidade que virariam suas características principais nos álbuns solo. Ela é calcada em uma simples linha de piano e batidas orgânicas que funcionam como uma espécie de cabeçalho de uma voz apressada para o tempo em que vivia. Ali surgia um dos princípios praticados por nomes como Massive Attack, no que anos mais tarde viria a ser traduzido como trip hop. Grande música!

Dois anos depois do lançamento de Atittude, o Rip Rig & Panic gravou o disco Kill Me in the Morning sob o nome de Float Up CP. Não é um álbum marcante, mas é soul music de qualidade. Nele sobra o talento de Neneh Cherry, mas falta a audácia indomável do Rip Rig & Panic.

De lá pra cá, como falamos no início, Neneh Cherry estreou em carreira solo com o sucesso de Raw Like Sushi e ainda gravou mais quatro discos. O último deles, Broken Politics, foi um dos melhores lançamentos de 2018. Neneh também gravou um disco com o The Thing, dois com o grupo de trip-hop CirKus, além de dezenas de colaborações com outros artistas.

Um artigo sobre Kill Me in the Morning sintetizou: Neneh Cherry canta como uma tempestade. É isso! Há nela um canto cheio de alma, força, história. Um canto que emociona. Uma tempestade que nos atende e, até hoje, não passa.

Neneh Cherry, em 1981. Foto: David Corio