R.E.M 'Out Of Time': o disco que vai muito além de Shiny Happy People

In Bandas, Discos

Era uma voz fanha, com uma entonação parecida com aquelas que anunciam o próximo voo nos aeroportos. Calma, pausada. Era também uma das aulas mais legais da época de colégio. No fone, a letra de “Losing My Religion” era ditada: That’s me in the corner / That’s me in the spotlight / Losing my religion

Era 1991, São Paulo, e dezenas de adolescentes encarando aquilo como apenas mais uma aula entre tantas outras. Riam da entonação do narrador e faziam piadas.

A banda era o R.E.M e a música, já citada, tinha rompido qualquer fronteira possível de apartar uma college band, respeitadíssima no circuito independente, do sucesso e alcance estratosférico que eles conseguiram alcançar. Foi um marco vida de grande parte dos fãs de música que foram impactados pelas ondas do rádio onde “Losing My Religion” era presença cativa e cativante.

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Bem antes de Out Of Time chegar, o vídeo de “Pop Song 89” era presença cativa nos programas de videoclipe. Virou nossa faixa predileta instantaneamente. Era contagiante e, ao mesmo tempo, diferente, além de ter uma força especial, única.

O R.E.M era uma banda estranha, no sentido mais elogioso da palavra. Era também dona de uma identidade escancarada, num sentido ainda melhor da palavra. Uma banda para não ser vista apressadamente. Em alguns registros era muito pop para alguns medidores indies. Em outros, um tanto indie para os parâmetros do pop. Para nós, eles sempre foram uma grande banda. Alcançar o equilíbrio entre esses dois mundos é para poucos.

Murmur, Reckoning, Document, Green. Um bom apanhado de juventude, urgência e lirismo de alta qualidade que antecederam um marco que viria a dividir criativa e musicalmente a história da banda.

Out Of Time foi lançado três anos após o maravilhoso Green, disco carregado de lindas canções e clássicos como “Orange Crush”, “Pop Song 89”, “Get Up” e “Stand”, a mais forte delas e, até então, o single de maior sucesso da banda.

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O R.E.M sempre foi incansável e se mostrava apaixonado pela estrada. Desde seu primeiro disco, Murmur (1983), a banda vivia no ciclo compor-gravar-turnê-compor-gravar-turnê. Com isso, depois da turnê de Green, eles resolveram dar um tempo e logo se juntaram para ensaios e novas composições.

Out Of Time teve como co-produtor Scott Litt e foi gravado em grande parte no Bearsville Sound Studios, em Woodstock, Nova York, embora sessões adicionais rolaram no estúdio de John Keane, em Atenas.

Certa vez, o baixista Mike Mills disse, em uma entrevista no site Pitchfork, que a banda estava empenhada em começar o novo disco com as perspectivas experimentais que originalmente prevaleceram em Green. Veja bem, por experimentais leia-se o ato de experimentar algo novo e não tanto no sentido de uma música experimental levada às consequências tortoisianas. Mills ainda contou que em Green, o guitarrista Peter Buck estava cansado de tocar guitarra elétrica e queria fazer algo um pouco diferente. Veio daí a ideia de começar a usar novos instrumentos em algumas das músicas. A banda seguiu levando essas mudanças adiante em Out Of Time, com todo mundo trocando de instrumento e tocando coisas diferentes em algumas faixas.

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Out Of Time não é somente o disco de “Losing My Religion”. Ele experimenta, flerta com o hip-hop, traz canções altamente pop, convidados e músicas instrumentais. É um disco que tirou a banda de sua zona de conforto criativa.

Mills tocou órgão em “Low”. “Radio Song” inicia o disco sob as boas vindas do rapper KRS-One e abre caminho para Michael Stipe que, com a mesma voz elegante que há anos te dizia que era o fim do mundo e que ele se sentia bem com isso, canta:

The world is collapsing
our ears
I turned up the radio
but I can’t hear it.

Bill Berry também se arriscou. Saiu de trás da bateria para tocar baixo em “Half a World Away” e “Country Feedback”, uma das músicas mais lindas.

Somente duas músicas, “Near Wild Heaven” e “Shiny Happy People”, têm aquele apelo pop classudo que o R.E.M sabe fazer muito bem. Vale lembrar que a última conta com a bela voz de Kate Pierson, do B52’s, que um ano antes ficou famosa pela gravação de “Candy”, ao lado de Iggy Pop, no disco Brick by Brick.

“Shiny Happy People” foi sucesso mundial, entrou no top 10, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra. Mas enquanto lá a música era trilha do açucarado Marley e Eu, por aqui “Shiny Happy People” foi trilha de novela em canal aberto.

“Losing My Religion” é a música que tocou até cansar nossos ouvidos. Hit eterno e perfeito. Daqueles que te levam para uma viagem onde tudo soa harmonioso e inspirado pelo amor. É então uma clássica música de amor? Sim, de obsessão por um amor não correspondido, envolvido em palavras resignificadas de forma por vezes oculta e com sinais de esperança

I thought that I heard you laughing
I thought that I heard you sing
I think I thought I saw you try.

Antes disso, a letra começa com Stipe dizendo oh, life is bigger / It’s bigger than you. Maior que alguém. Maior que ele, que se inclui nessa equação de autoconhecimento. O verso that’s me in the corner / that’s me in the spotlight / losing my religion também poderia ilustrar a fase vivida pela banda que, sob os holofotes, luta e consegue não perder sua identidade, sua alma, sua música. Mas isso é parte da viagem de fãs. “Losing My Religion” é um mundo codificado por alguém que repete now I’ve said too much e isso é, no mínimo, cheio de poréns.

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O clipe entregava um bando de metáforas aos preguiçosos que acreditaram se tratar de uma música sobre pecados, tristezas, religião, ou a perda dela. Na época ainda rolaram algumas manifestações de grupos religiosos, mas nada é tão literal.

“Losing My Religion”, que passava de hora em hora na MTV, foi filmado pelo diretor de cinema americano Tarsem Singh, que em 2015 fez o Self/Less (Sem Retorno) e antes disso, Mirror, Mirror (Espelho, Espelho Meu), aquele com a Julia Roberts. O clipe trouxe um tratamento visual inovador para época e com uma fotografia impecável. Cada tomada parece uma obra de arte dentro de um contexto repleto de referências ao pintor italiano Caravaggio, além de imagens religiosas como São Sebastião e divindades hindus.

O vídeo ganhou dois Grammy Awards em 1992, no mesmo ano em que Out Of Time obteve o prêmio de melhor álbum de música alternativa.

O sucesso já era parte da vida do R.E.M. Em entrevista ao New York Times, Stipe contou que lembra da primeira vez que entrou na Quinta Avenida, em Nova York, e de repente todos o reconheceram. Ele ainda diz que estava pronto para aquilo, mas que mesmo assim ficou chocado.

Seguindo, “Belong” é também uma das mais interessantes. Soa quase como um mantra em toda sua narrativa com trechos como:

Her world collapsed early Sunday morning
She got up from the kitchen table
Folded the newspaper and silenced the radio…
Her world collapsed early Sunday morning
She took the child held tight
Opened the window
A breath, this song, how long
And knew, knew; belong.

Pouco depois, “Texarkana” é também um grande apelo pop. Embora creditada a Berry, Buck, Mills e Stipe, ela foi feita pelo baixista Mike Mills. Michael Stipe vinha tendo dificuldade em colocar a voz nessa música que, ao final, foi gravada por Mills. É uma das faixas que o R.E.M nunca tocou ao vivo.

“Me In Honey” fecha o disco em um clima leve. Sabe aquelas músicas com “jeito de estrada”? Daquelas trilhas boas para dirigir ou contemplar a paisagem do percurso? É mais ou menos isso, só que “Me In Honey” tem cara de estrada de volta pra casa depois de você já ter vivido a viagem de forma plena. Ela também tem a participação, embora mais tímida e não como um dueto, de Kate Pierson.

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Mesmo Out Of time tendo sido um grande sucesso, o R.E.M optou por não fazer turnês desse disco e rolaram só alguns shows pontuais. Entre eles, a banda gravou o MTV Unpplugged, uma das coisas mais lindas que a música já viu nesse formato. Talvez junto com o da Erikah Badu, Fiona Apple e a trinca de Seattle (Pearl Jam, Alice in Chains e Nirvana), esse foi um dos acústicos mais incríveis da história.

Para quem ficou preso na grudenta “Shiny Happy People”, Out Of Time pode parecer popularesco. Mas é um disco ousado e que atingiu em cheio a grande massa no auge da indústria dos CDs e da MTV.

Se na época do lançamento, muitas revistas questionaram se o R.E.M era então a maior banda de rock do mundo, com Out Of Time todos foram obrigados a repensar tal pergunta.

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Out Of Time foi um acontecimento astronômico. Um disco imprescindível para o que viria depois na música e também na discografia da banda. Out Of Time justifica, e tem uma ligação direta, com o que o R.E.M fez na sequência, no caso, o maravilhoso Automatic For the People. Justifica também a vinda de Monsters, New Adventures in Hi-Fi, até chegar no incrível Accelerate e em Collapse Into Now. Não que eles precisem de justificativas, mas Out Of Time é um troço mais importante do que a gente imagina.

O R.E.M sempre foi uma banda de muitas curvas e jamais perdeu sua dignidade pelo caminho. Out of Time revelou-se um marco na medida em que demonstrou como bandas alternativas poderiam alcançar o sucesso sem sacrificar sua integridade. Na verdade, poderia legitimamente ser argumentado que o álbum abriu o caminho para que o rock alternativo da metade dos anos 90 visse a luz do dia, e do sucesso. Nomes que vão desde Green Day e Smashing Pumpkins nos EUA ou Blur e Oasis no Reino Unido. Todos devem muito ao R.E.M.

Ainda que tenha tocado incansavelmente, a letra de “Losing My Religion” ainda sacode o campo das nossas emoções mais completas, complexas e bem vindas. Uma música linda coberta por um véu pop palatável e que salta aos olhos e corações de quem aceita o convite para mergulhar no universo criado por uma das melhores bandas que esse mundo já viu.

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