Replicantes – O Futuro é Vórtex Os 30 anos de um disco que vai além do punk

In Bandas, Discos

O Replicantes sempre foi uma banda inteligentemente distante dos arquétipos que rondam a psiquê do punk que, em grande parte, mirava sua voracidade em críticas sociais e protestos direcionados ao sistema, as desigualdades, e sua ira contra a política imposta pelos grandes poderes. Não que eles deixassem de lado estas premissas, mas suas letras traziam um outras provocações, revoltas e uma esperta ironia que lhe servia de combustível.

A distância geográfica também foi amiga. Longe de São Paulo, onde o punk foi semeado pela desigualdade social, violência e a necessidade de alguns jovens pertencerem a algo que determinasse o rumo de suas angústias; e distantes de Brasília, onde “a turma” vinha descobrindo os Ramones, Buzzcocks e o Sex Pistols, o Replicantes tinha sua base no Rio Grande do Sul.

Replicantes
Foto: Acervo Carlos Gerbase

Longe das referências da sua época, essa distância talvez tenha sido o super trunfo dos gaúchos, que conseguiram manter sua liberdade criativa sem se prender musical, lírica e esteticamente ao jeitão tradicional de expurgar toda aquela atitude repleta de rebites.

Se por um lado o punk em SP trazia sua postura politizada, no resto do Brasil o lance era focado em um discurso contra sentar e esperar que algo viesse de algum aceno por esse viés.

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Wander Wildner. Foto: Acervo Carlos Gerbase

Era 1986, se por um lado o chamado rock brasil era agraciado pelo grande Cabeça Dinossauro, do Titãs, e a Plebe Rude lançava O Concreto Já Rachou, o punk dava vida a discos imprescindíveis como o primeiro do Lobotomia, o Descanse em Paz, do Ratos de Porão, e a coletânea Ataque Sonoro, que lançada um ano antes, revelou bandas que entortariam de vez os ouvidos de muita gente. E aí, no meio de toda aquela sede por explosão sonora e velocidade, uma música veio pra ficar e ganhou o status de hino: “Surfista Calhorda”.

Um hit com vocal rasgado, punk rock daqueles pra dançar chutando o ar cruzando os braços em sincronia (ah, os anos 80!), e uma letra que falava diretamente a um grupo, uma situação, um fato.

Replicantes
Foto: Acervo Carlos Gerbase

A formação inicial, e considerada clássica, tinha Carlos Gerbase (bateria), Wander Wildner (vocal), Cláudio Heinz (guitarra) e Heron Heinz (baixo). Logo os caras gravaram um EP (relançado recentemente pela Nada Nada Discos) com quatro músicas: “Rock Star”, “O Futuro é Vortex”, “Surfista Calhorda” e “Nicotina”. Essas duas últimas viraram sucesso nas rádios gaúchas e prepararam o terreno para que a banda soltasse o primeiro disco, O Futuro é Vórtex, de 1986.

A banda assinou com a RCA e, para gravar esse que seria o primeiro registro full da banda, mudou para São Paulo; afinal, era aqui que o movimento acontecia. A receita está toda ali: a sonoridade do Ramones, a acidez do Sex Pistols e um pouquinho da cena punk californiana. O Replicantes deu origem a um disco cru e cheio de energia.

O Replicantes assinando o contrato com a RCA para gravação de O Futuro É Vórtex
O Replicantes assinando o contrato com a RCA para a gravação de O Futuro É Vórtex. Foto: Acervo Carlos Gerbase

Os resquícios da ditadura vivida por aqui ainda faziam faixas serem censuradas. A execução pública de “Choque”, “Mulher Enrustida” e “Porque Não” foram vetadas pela censura federal sob a alegação de conter palavras de baixo calão. Esta última, no nosso disco, veio picotada na frase: “Eu quero que o Caetano vá pra puta que o pariuO samba me da asma, bossa nova é de foder, prefiro tocar bronha e punkar até morrer”. O palavrão, claro, foi banido da faixa.

O futuro é vórtex replicantes
Foto: Sounds Like Us

O Futuro É Vórtex é um disco recheado de grandes músicas. O disco abre com a predileta da casa, e um dos refrãos mais legais da história do punk nacional:

Mas nossos filhos serão mutantes
Queria tudo como era antes
O sol nunca mais vai brilhar
Aqui dentro do abrigo nuclear.

Era o forte canto de “Boy do Subterrâneo”, que tinha como cenário a Guerra Fria e o pavor que assolava aqueles tempos: a guerra nuclear. Muitas bandas daquela época abordavam esse tema, e não só as de punk. No thrash metal, Nuclear Assault, Sacred Reich e o próprio Metallica recorriam a esse recorte por estarem vivenciando aquilo muito de perto.

O engraçado é que mesmo tendo a alma punk, O Futuro é Vórtex foi um disco, de certa forma, rejeitado pelos punks mais radicais da época e as letras afastavam a banda das rádios mais populares.

Gravação do clipe de "Surfista Calhorda"
Gravação do clipe de “Surfista Calhorda”. Foto: Acervo Carlos Gerbase

Mesmo assim, “Surfista Calhorda” virou hit e graças a ela o disco caiu no gosto, ouvidos e na boca de um público que cantava a música nas festinhas de garagem, nas baladas mais alternativas ou gritando alto no carro. “Surfista Calhorda” invadiu as rádios e era tocada na programação normal de algumas emissoras.

O disco ainda traz “Censor”, que fala sobre como um indivíduo, parte de toda uma estrutura, tinha o poder de classificar com apenas uma carimbada, uma obra e tirar de circulação aquilo que poderia ser parte da história cultural de uma determinada época. Arte definida por um carimbo.

Replicantes
Foto: Acervo Carlos Gerbase

“Ele Quer Ser Punk” e “Hardcore” eram bem diretas e autoexplicativas. “Hippie-Punk-Rajneesh” tem um refrão bizarro que fala sobre todas as fases e modas que um cara assumiu porque estava apaixonadão por uma garota.

Replicantes
Foto: Acervo Carlos Gerbase

O Futuro é Vórtex traz um Replicantes que, na época, passou a ser a banda de quem andava de skate ouvindo uma fita com o disco gravado no walkman. Do surfista, que não era calhorda e tomou de assalto aquele hit que afrontava os ditos falsos surfistas, e dos punks que estavam sempre prontos pra uma festa com os (Dead) Kennedys porque eles é que sabiam o que era hardcore.

O Replicantes também era uma banda presente entre os que gostavam do rock brasil daqueles tempos de Plebe Rude, Ira e 365. Conseguiram, de uma forma especial, ser a banda de muitos sem se prenderem a um só universo.

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