SOUNDS LIKE 90’s Entrevista: Apoleon

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Na década de 90, muitas bandas no Brasil trilharam caminhos alternativos e nadaram às margens da chamada grande indústria musical.

Sem internet, Spotify, Bandcamp ou qualquer outro facilitador, a divulgação eram os shows e as famosas demo tapes, aquelas fitas cassete, gravadas muitas vezes de modo caseiro (em casa mesmo). Cena? Hoje a gente sabe que ela existia. Na época, só conhecíamos as bandas próximas. 

Era um tempo onde a maior riqueza ou sucesso estava no percurso e no resultado, e não na perseguição à fama. O importante era a música. Muitos desses grupos estavam no underground do underground e, por uma porção de motivos, não chegaram ao conhecimento de grande parte do público sedento por criatividade. Claro que não vamos conseguir falar de todos. Por isso, decidimos falar sobre as bandas que a gente viu, ouviu e quer compartilhar com vocês. A gente quer falar sobre música e registrar a história dessas bandas, e o Apoleon é um desses casos. Uma banda que a gente viu nascer e apostamos: “esses caras vão longe”. Ingenuidade da época, sonho, chame como quiser. As condições eram outras, mas a música é assim, feita de um combustível chamado amor. A marca que essa banda paulista imprimiu ficou gravada em quem pôde ver toda técnica e explosão que eles causavam em seus shows.

Pra saber mais sobre o Apoleon, conversamos com Fabio Moysés (bateria) e Gilberto Bressan (guitarra), dois dos integrantes originais, para relembrar esse tempo bom, reviver algumas histórias e trazer para os dias de hoje um pouco daqueles dias saudosos. Bem-vindos ao Sounds Like 90’s!

Fábio Moyses (Apoleon). Foto: Sounds Like Us

Sounds Like Us: Conta um pouco do Apoleon pra gente. Como surgiu, a origem do nome…
Fabio Moyses (Jo): Naquela época eu tava lendo o livro As Profecias de Nostradamus e falava de Napoleon. Napoleão é ne + destruidor. Ne significa novo e apoleon, destruidor. Novo destruidor. Apoleon significa destruidor.

Sounds: Você lembra o ano disso?
Jo: 1988.

Sounds: E como surgiu a banda? Já era uma vontade seguir pelo thrash metal, vocês já se conheciam…
Jo: Não. Eu era amigo do Giba já.
Gilberto Bressan: Foi um vizinho que apresentou a gente. Eles estudavam juntos e nós três éramos fissurados por Kiss. Isso foi por volta de 1986.. 1987. Passávamos as tardes de sábado tocando alguns sons do Kiss e Black Sabbath.
Jo: Eu tocava bateria, o Giba guitarra, gostávamos de Kiss e aí foi: “vamos nos juntar pra fazer som do Kiss”.
Giba: Começamos a compor algumas músicas, bem básicas, e marcamos um primeiro show na quermesse da igreja Nossa Senhora de Lourdes [zona leste de SP]. Era basicamente um heavy metal com letras mais “capirótica[risos]. Nessa época a amizade já estava bem fortalecida e foi um processo natural criar uma banda.

Sounds: Engraçado que o resultado não tem nada a ver com Kiss né?
Jo: Nada! A primeira demo de ensaio tinha vocal gutural porque eu ouvia Napalm Death e falei: “olha, que vocal legal”. Era o que eu conseguia fazer. Depois entrou o Silvio, um baixista estranho, uma pessoa muito estranha. Ele saiu pra entrar o Mortinha, de Jundiaí, que ficou pouco tempo na banda.

Sounds: Mortinha?
Jo: É! Ele assinava Little Death nas letras [risos]. Depois disso veio o Murillo e a gente conseguiu o Sérgio como baixista. Foi a primeira formação que rendeu alguma coisa, que foi a nossa primeira demo, Murder in Mind. A gente compôs 4 sons.
Giba: Nesse período ainda tivemos um vocalista chamado Marcos, que fez alguns ensaios e alguns shows, mas meses depois o Murillo assumiu os vocais. O Glauco “Joinha” entrou pra tocar baixo em 1991 já. Ali realmente foi o ápice da banda. Essa formação rolou até 1992, por ironia do destino, e creditando o fato a um pouco de falta de maturidade geral, infelizmente eu acabei sendo “saído” da banda que havia formado. Passei um bom tempo sem conversar e conviver com alguns deles, mas há anos atrás resolvemos todas essas pendências do passado e somos amigos até hoje.

Sounds: Em que ano era isso aí?
Jo: 1990.

Apoleon, ao vivo na zona leste de São Paulo

Sounds: E vocês gravaram onde a demo?
Jo: No Manhattan, um puta estúdio legal, um dos únicos da época. Ficava na Paulista.

Sounds: E foi caro, vocês tiveram que juntar grana, pedir emprestado…
Jo:
Foi. Na época não tinha como fazer em casa. A gente tinha que se virar. Não tinha esse monte de estúdio. Tinha uns 10 estúdios em SP e desses 10, dois aceitavam bandas “zuadas”, iniciantes. Quer dizer, era só pagar, mas não tinha nem estúdio pra ir atrás.

“Murder in Mind” (1990). Foto: Sounds Like Us

Sounds: E o que você fez pessoalmente para gravar? Juntou economias, fez rifa, vendeu coisa?
Jo:
Sim, meu pai ajudou, vendemos algumas coisas também. A gente conseguiu juntar um pouco de grana, mas não era muita coisa.

Sounds: Não tinha o projeto Minha Demo, Minha Vida? (risos)
Jo:
É… Foi na época da Copa de 90. Lembro que a gente gravava e ficava perguntando para uns caras lá, “quanto é que foi o jogo?” Aí fizemos essa demo, saiu na Rock Brigade, e o Sérgio saiu da banda pra entrar o Joinha.

Resenha da demo “Murder In Mind” publicada na revista Rock Brigade. Foto: Acervo pessoal

Sounds: E sempre teve essa pegada, porque o vocal lembrava muito Kreator…
Jo:
Não, o Kreator aparece muito na segunda demo. Na primeira ninguém sabia pra onde ir. Todo mundo tocava o que achava melhor e cantava o que dava.

Sounds: Queria ser o Kiss e virou uma coisa autoral.
Jo:
Não começou com a vontade de ser um som próximo de Kiss. Mas foi o gosto pelo Kiss que juntou a gente. O Kiss tá na minha vida desde sempre. Na primeira demo a gente fazia o que dava. Na segunda, a gente começou a ouvir muito thrash metal. Tanto que o som fica mais próximo do thrash europeu. É uma mistura de tudo, o som tá bem mais definido.

Sounds: “Only by Chance”, da segunda demo, remete aos hinos mais cadenciados que toda banda thrash fazia na década de 80.
Jo:
Legal isso. Eu nunca tinha parado pra pensar por esse lado.

Sounds: É, tinha “Sins of Omission”, do Testament; “Brainwashed”, do Nuclear Assault; “From Whom the Bell Tolls”, do Metallica, ou mesmo a “Bored”, do Death Angel. Não que se pareçam, mas todas elas têm aquela vibe meio de hino.
Jo:
Isso. É um som que representava todo mundo de uma época em que a galera frequentava os mesmos lugares e ouvia as mesmas coisas. A galera que colava na Galeria do Rock, Dynamo, Woodstock, todo mundo tava descobrindo esse tipo de coisa.

Foto: Acervo pessoal

Sounds: Fora o Kreator, quando vocês descobriram a identidade de vocês dentro do thrash? Quais outras bandas eram referências pra vocês?
Jo:
A gente ouvia bastante Testament, Napalm Death, Kreator, Metallica, Slayer, mas aqui (aponta para a demo) não tem nada de Slayer, por exemplo. Na minha opinião.

Sounds: Era mais um lance de DNA mesmo, né?
Jo:
Isso mesmo. É que o vocal do Murillo começou a lembrar o do Mille, mas não era intencional. Foi quando ele descobriu o jeito dele de cantar e isso rola na segunda demo.

A segunda demo, Psychonarcolife. Foto: Sounds Like Us
A segunda demo, Psychonarcolife

Sounds: Falando um pouco da cena. Tava tudo se formando nessa época né, era embrião de vários movimentos. Metal era metal, punk era punk, gótico era gótico…
Jo:
É, e salve-se quem puder.

Sounds: Hahaha… É. Como era pra você ver de perto essas cenas em formação? Tinha esse lance de ir pro centro, ver os outros movimentos e tal…
Jo:
Era fechado. Tinha que correr de careca, ponto final. Eu era heavy (risos).

Sounds: Verdade, não era headbanger, era heavy…hahaha.
Jo:
É, eu era heavy.
Giba: Mas foi uma época fi mágica. Era comum irmos em ensaios de outras bandas, e outras bandas assistiam nossos ensaios. As idas à Galeria [do Rock] e à Woodstock eram sempre um evento, era nossa ida a Meca, lá a gente participava do cenário metal que estava crescendo. Lembro dos amigos do I.M.L, do Critical Mass nos ensaios. As amizades entre bandas ficavam cada vez mais fortes. Armávamos shows no Bixiga, em Casa de Cultura, em festivais…
Jo: Não se misturava muito. Os carecas tinham o rolê deles, os punks também, e a gente tinha o nosso. Nunca teve treta entre a gente, que eu me lembre, nunca nada sério. E era todo mundo muito inocente. Tudo gente com 17, 18 ou 19 anos no máximo, e era legal, a gente se unia. Ficamos amigos do pessoal do Brainwash, do Ale, que hoje tem o Ancesttral, com o Manslaughter, o I.M.L.
Giba: Foi um período bacana para o underground paulista, tinha muita banda. A gente era meio-irmãos de bandas como Skyscrapper, I.M.L., Brainwash, Sacred Curse, Battery e tantas outras. Mas, por outro lado, ainda éramos os moleques fãs de metal e pirávamos em bandas brasileiras como Sepultura e MX (inclusive, fomos assistir aos ensaios deles). A gente respirava heavy metal.

Apoleon ao vivo no Persona (1990)

Sounds: E como era o processo todo de marcar show, gravar e distribuir a demo?
Giba:
Sempre foi complicado, mas era o padrão da época. Dentro da banda, a gente se dividia. Eu cuidava da parte de trocar correspondência, o Murillo e o Jô marcavam shows. Na época, eu já trabalhava e tinha acesso a uma máquina de xerox, e durante a noite ficava tirando cópia de capa de demo, cartaz de show, flyer. A segunda demo já rolou com uma tranquilidade um pouco maior, estávamos mais maduros, com uma infraestrutura. Gravamos no Estúdio Army47, no Brooklyn, que era do Arthur, guitarrista do Salário Mínimo.
Jo: A gente saía do estúdio com uma fita master, copiava as fitas e ficava lá, gravando de fita pra fita e depois levávamos na Dynamo.

Apoleon ao vivo na Dynamo (1991)

Sounds: Na da Santa Cecília, né?
Jo:
Isso, perto do Mackenzie. A gente gravava e saía distribuindo. Lembro de sair com uma caixinha de fita Sony cheia de deminho [risos]. Levava lá e falava “olha, posso deixar duas demos aqui?”. Aí o cara te dava um contravale. Depois você devolvia pra ele e, se ele não encontrasse a demo lá, é porque tinha vendido. Aí ele te dava a grana. E mesmo assim tinha cara que dava “balão”.

Sounds: Sério?
Jo:
Tem um cara que tá até hoje na Galeria. Não vou lembrar o nome, mas ele me “guentou” duas demos do Apoleon [risos].

Sounds: Se vocês fossem gravar hoje em dia, teria uma outra qualidade, fato. Se na época tivesse rolado um cuidado maior com produção, daria pra chegar perto de um Mutilator ou MX? Você acha que rolaria isso?
Jo:
Acho que eles estavam em outro momento.
Giba: Teria uma qualidade muito superior. Acho que faltou um pouco de sorte e talvez um pouco de maturidade para levarmos a banda para esse nível que vocês citaram, de um MX, Mutilator, Taurus, entre outras da época que tiveram registro em vinil e conseguiram uma exposição maior. A gente tava no caminho certo e, em comparação com outras bandas que tiveram alguma repercussão (modéstia à parte, algumas delas acredito que estavam até abaixo da nossa qualidade), tocávamos bem, tínhamos boas músicas e nosso show ao vivo era bem alinhado.

Fabio Moyses (Apoleon). Foto: Sounds Like Us

Sounds: Vocês tinham conhecimento se a banda era conhecida fora de São Paulo?
Jo:
A gente tinha fã. Tem vídeos, como o da Dynamo, que dá pra ver galera cantando. Não sabiam as letras, mas sabiam a hora que entravam os berros e tal. Era muito louco, bicho. Mas fora de SP não teve muita coisa. Rolou Osasco. Chamaram a gente pra fazer um show numa pista de skate. Os caras ficavam falando “manda abraço pro Morro do Sapo Branco”. E o Murillo ignorando. “Manda abraço pro Morro do Sapo Branco”. E ele nada. Aí o mano mostrou a cintura e disse, de novo, “MANDA ABRAÇO PRO MORRO DO SAPO BRANCO”. Aí o Murillo “um abraço pra galera do morro do Sapo Brancoooo” [risos]. Aí a galera “AEEEEE…” [mais risos].

Sounds: Nessa época não tinha muito lugar pra tocar
Jo:
Não tinha. Tocamos bastante no Retrô e na Dynamo. A gente tocou com o Sextrash lá uma vez e o vocal… como ele chamava mesmo?

Sounds: Oswaldo, mas assinava Oswald. O falecido Oswald…
Jo:
Isso. Magrinho, baixinho. Ele chegou com uma cabeça de bode na cintura, cara. Muito visual metaleiro. Ele fez o show inteiro com a cabeça de bode presa na cintura. Aí acabou o show e ele “alguém aí por favor abre a algema aqui”. Era um cinto com uma algema e ninguém achava a chave [risos].

Sounds: O Apoleon soaria parecido hoje?
Jo: Até hoje a gente se reúne pra tocar isso aqui [aponta para as demos]. Eu, o Murillo e o Glauco. A gente se juntou, tocou cinco sons e saiu de prima. Claro que erramos, mas saiu meio que de prima mesmo, inteiras.

Sounds: Depois de tanto tempo?
Jo: Depois de 24 anos.

Foto: Divulgação

Sounds: Tinha alguma cobrança entre vocês de chegar a algum lugar?
Jo:
A banda tava crescendo bastante, mas a gente era uma banda que deixava acontecer as coisas. A gente não era uma banda ativa. Eu sempre fui assim, com banda não seria diferente. E começou a crescer, o Pig Machine [a outra banda do Jo] também.
Giba: Tenho certeza de que a gente fez o melhor para a época, dentro das nossas limitações. Obviamente almejávamos o próximo passo, como gravar um disco, fazer shows maiores, mas era uma cobrança nossa, mesmo.

Sounds: O Pig Machine era na mesma fase?
Jo: Não, foi depois. Acabou um e começou o outro. E o Pig Machine era pra não parecer o Apoleon, que era mais técnico e tal.

Sounds: Mas por que deu merda?
Jo:
O Murillo foi chamado pra tocar no Genocidio.

Sounds: Sim, na época do Hoctaedrom (Genocidio) né?
Jo:
Isso. Ele saiu pra fazer esse disco. Ele entrou no Genocidio, começou a ensaiar e o Apoleon acabou, deu preguiça. Aí montamos o Pig Machine. Também, até achar um guitarra que tocava aquilo né… hahaha.

Sounds: E hoje, quando você vê a facilidade que é a galera gravando em casa, o que você acha disso?
Jo:
Eu acho isso do caralho! A galera gravar em casa, porque qualquer um pode fazer a música que sente e espalhar. Alguém sempre vai ouvir.

Sounds: Você é contra o lance do famoso “na minha época era melhor…”
Jo:
Nem era [risos].

Sounds: É complicado, porque os saudosistas piram nesse lance, mas no início dos anos 90 era difícil ter banda. Não tinha onde tocar, a aparelhagem era horrível, não tinha estúdio de ensaio, era ruim para divulgar. Aí ficam nesse lance de “ah, nos 90 que era bom”. Cara, vale o saudosismo, mas esse lance de que era melhor é meio relativo.
Jo:
É, não tinha estúdio pra marcar ensaio. Você tinha que tocar numa garagem, na casa de alguém, no quartinho. A gente ensaiava na minha casa!

Sounds: Quanto investimento financeiro e profissional você colocou no Apoleon?
Jo:
Se pagou. Porque isso aqui [aponta para as demos] não tem preço pra mim. É a minha história. Isso foi gravado em outra moeda, cara. E se bobear, a gente gravou uma demo em cada moeda [risos].

Foto: Divulgação