The Cure Os 30 anos inspiradores de "Standing on a Beach"

In Bandas, Discos

Certos discos são parte de nossas vidas como qualquer órgão vital. Ou se tornam tão próximos que, passando longe do sentido figurado, você realmente não consegue imaginar a sua vida longe dele. Standing on a Beach, que hoje, dia 6 de maio e 2016, comemora seus 30 anos, é um desses casos.

Contrário à direção que o tempo aponta, é um registro que completa 30 anos isento daquele cheiro de coisas que ficaram guardadas. É um disco presente. Standing on a Beach foi coroado com uma poderosa capa, daquelas de super-herói, que lhe deram o poder de viajar no tempo e sobreviver sem qualquer desgaste ou nostalgia vergonhosa. É uma visita a aromas, dimensões e a uma época que transpirava novidades.

Standing On A Beach. Foto: Sounds Like Us

Mais que uma compilação de singles, Standing on a Beach é uma coletânea de possibilidades que alcançou um diagnóstico raro: ser visto como um disco e não como um aglomerado de hits. É o disco que fez do The Cure um dos nomes com maior presença na nossa estante de LPs e que, pra muita gente, abriu caminho para um vale de sonhos em preto e branco com trilha suportada por nomes como Sisters of Mercy, Fields of Nephilim, the Mission, Christian Death e Mecano, por exemplo. Uma seleta turma de presença garantida no Retrô, Cais, Der Temple e outras casas paulistanas que fizeram a alegria de quem queria novidade nos anos 80 e buscava um canto pra chamar de seu e escutar boa música.

“Boys Don’t Cry” era a trilha que acompanhava aéreos e tubos no programa Realce, da TV Gazeta. Aquele hit gótico-pop teve grande destaque na época, mas a música que abre o disco foi durante um bom tempo uma das nossas queridinhas. “Killing an Arab”, foi também o primeiro single da banda, lançado em 78. É pós-punk rasgado, seco e com aquele timbre “pra dentro” e andamento marcado. A música é uma referência à obra O Estrangeiro, do escritor francês nascido na Argélia Albert Camus, sobre um homem que mata um árabe na praia. É mais uma reflexão sobre a filosofia existencial que impulsiona esse ato do que a ação propriamente dita. Ou efetuada. O fato é que a música rendeu polêmica por ser mal interpretada – alguns entenderam que ela estimulava o preconceito contra os árabes – e a banda começou a mudar letra durante as turnês, cantando “Killing Another”, “Kissing an Arab” e “Killing an Ahab”.


Vale lembrar que, a versão em CD de Standing on a Beach ganhou mais quatro faixas e foi rebatizada de Staring at the Sea. Seguiremos aqui o tracklist da versão do LP, que em seguida traz a já citada “Boys Dont´t Cry”, sempre presente nas pistas, lançada no disco de mesmo nome que nada mais é que a prensagem americana e australiana de Three Imaginary Boys.

“Jumping Someone Else’s Train” é mais acelerada, com riff bem simples e melódico, daqueles que você se pega cantando vez ou outra. “A Forest” traz um Robert Smith contemplativo em versos como I hear her voice, calling my name / The sound is deep / In the dark… preenchidos por partes instrumentais mais longas. Ela e “Play for Today” também foram lançadas originalmente no segundo disco dos caras, Seventeen Seconds (80), e ainda mantêm o clima pós-punk nos timbres e andamento mais linear.

“Primary” e “Other Voices” são do disco Faith (81), mas é em “Charlotte Sometimes” e “The Hanging Garden”, as preferidas da casa, que o chão se abre e a vibe desce mais que o nível da água no Cantareira. Acredite, isso é um elogio. São músicas lindas, com timbre soturno, o ambiente dominado por fumaça, melodias pegajosas e uma certa beleza na junção de tudo isso. Daquelas que te imobilizam e o universo passa a ser só você e elas, numa comunhão elegante, tribal e escura. “The Hanging Garden” foi lançada em Pornography (82), um dos melhores discos deles, se não o melhor, junto com o Disintegration (89).

E se a música fosse uma força vetorial, “Let´s Go to Bed”, “The Walk” e “The Lovecats” seriam vetores positivíssimos. Em uma ordem cronológica, talvez a primeira seja a que traga a mudança mais brusca no andamento e revela que o The Cure é uma banda cheia de possibilidades e detentora de nuances corajosas sem que eles precisem sair do ambiente que dominam. “The Walk” tem ritmo festeiro oitentista, cheia de cores e guiada por sintetizadores. Por uma relação que talvez só Freud – nascido no mesmo dia deste disco – possa explicar, criamos um vínculo de parentesco entre ela, “Blue Monday” do New Order e “Just Can’t Get Enough” do Depeche Mode.

Em “The Lovecats” a gente tem mais um sintoma da coragem criativa da banda. O climão jazzy faz você bater os pezinhos e te leva para um papo estreito com as músicas que embalavam os passos de Charleston nos cabarés dos anos 20. Ousado e inovador na sonoridade do The Cure. E pensando na mistura de referências é, porque não dizer, sofisticado para a época.

Entra “Caterpillar”, originalmente presente no The Top (84), seguida por “In Between Days”. Essa última é pop até o osso, ganhou clip e chegou até a servir de vinheta para um programa da Rede Globo, chamado Clip Clip da TV Gazeta. Uma tentativa frustrada do plim plim em pegar carona no então consagrado Clip Trip. A música também foi trilha de novela. Sim, e de novela global. Selva de Pedra trazia “In Between Days” em sua trilha sonora. Originalmente ela foi lançada junto com “Close To Me” no disco The Head On The Door (85).

O The Cure é daqueles nomes que respingam suas diretrizes e princípios em diferentes obras e nomes da música mundial, e Standing on a Beach ocupa um lado confortável na nossa memória afetiva. Um espaço aconchegante e repleto de aromas, gostos e paisagens rebuscadas a cada encontro e sem a mínima pré-disposição a se tornarem lembranças distantes. Como dito, é um disco presente, atual e disposto a construir novos cenários em todos os cantos, encantos e desencantos dos nossos sete sentidos. Ou mais.


“Meu primeiro contato com o The Cure aconteceu justamente por meio da fita K7 de
Standing on a Beach. Não sei ao certo precisar o ano, mas imagino que tenha sido um pouco antes da primeira apresentação deles aqui em São Paulo, no Ginásio do Ibirapuera. Lembro até o dia, foi em um 1.º de Abril, dia da mentira, mas o show foi bem real. Eu era moleque e não conhecia a fundo a obra deles, mas tinha o
Standing on a Beach. Detalhe que o K7 vinha com os lados B dos singles, então eu até que conhecia um pouco mais do que os hit (risos). Tenho esse K7 até os dias de hoje, bem guardado por sinal, uma relíquia pessoal que me traz altas e poderosas memórias de uma época de descobertas diárias”.
Renato Malizia (The Blog that Celebrate Itself)

“Vou começar pelo clichê mais surrado de todos: “esse disco mudou a minha vida”. Foi o primeiro disco internacional que comprei, ainda criança, graças a “In Between Days” tocando no rádio e na abertura do Clip-Clip. Lendo o encarte, eu não conseguia entender como era possível uma banda variar tanto de estilo em tão pouco tempo. A alternando pop alegre e quase infantil com a fase niilista e desesperada do Pornography – até hoje meu disco favorito, e é ele que eu levo no subconsciente quando tocamos com a Herod. Pensando agora, não consigo lembrar de nenhuma outra banda que tenha essa pachorra de lançar um disco como o Pornography, e meros seis meses depois, lançar “Let’s Go To Bed”, um pop alegre e dançante. Era um sintoma de transtorno bipolar traduzido em música; várias bandas dentro de uma só.

Na mesma época, consegui uma das maiores raridades da minha parca coleção: a versão em cassete do disco, com diversas raridades no lado B – outro momento de “mudança de vida”, e talvez a que mais definiu essa síndrome de arqueologia da qual eu sofro hoje. Minha história com o The Cure foi crescendo aos poucos, comprando os discos que saía no Brasil e outros que eu conseguia importar das versões argentinas (eles costumavam traduzir os títulos de músicas, e minha cópia do Three Imaginary Boys se chama Tres Chicos Imaginarios). Depois fui tristemente deixando a banda meio de lado, durante uma época em que crescia e descobria outras coisas, como acontece com aquele velho amigo que segue um caminho de vida diferente do seu. Até quando, trinta anos depois, culminou na maior história da minha vida – a da Herod ter recebido o convite para abrir os shows do The Cure em 2013, escolhido pessoalmente pelo próprio Robert Smith. No camarim, enquanto ele nos visitava, cumprimentava cada um de nós e dizia o quanto ele admirou o nosso trabalho, me passou toda a discografia dele pela minha cabeça e o quanto aquele cara estava ali mudando a minha vida – mais uma vez. Olha aí, fechei com o mesmo clichê surrado. Mas emoção é assim mesmo”.
Elson Barbosa (baixista Herod / proprietário do selo Sinewave)