Talvez seja um consenso que este 2018 foi um ano muito, muito difícil para os brasileiros. E a música, mais uma vez, nos ajudou a respirar, a criticar e a construir alternativas de vida. Pra nós dois, música nunca foi apenas entretenimento; tanto que os discos abaixo salvaram muitos dos nossos dias.
Mantendo a tradição, cada um escreveu sobre os álbuns mais legais que o outro ouviu. Dois deles foram unanimidade aqui. O critério de “mais legais” é bem subjetivo e representa aqueles de que mais gostamos. O retrospecto musical é muito positivo: discos aguardados, discos imprevistos e e descobertas que pretendemos acompanhar ao longo dos anos. Para acompanhar a leitura, fizemos uma playlist com as faixas favoritas de cada álbum. Então dá o play para deixar o seu fim de ano mais leve/pesado/fofo/contemplativo/fantasmagórico/barulhento.
Os discos mais legais de 2018 da Amanda descritos pelo Vina:
DAUGHTERS – You Won’t Get What You Want
Sem dúvida alguma, Mickey e Mallory Knox versão 2018 assumiriam o Daughters como trilha romântica para seus momentos mais íntimos e psicóticos. É “rock doidinho”, como chamamos carinhosamente. Mas em You Won’t Get What You Want as doideras ficaram mais lineares e sombrias, dando contorno a sensações mais assustadoras. Ouçam “Less Sex”. É a celebração do encontro entre o Nine Inch Nails e o Depeche Mode em algum canto do inferno. You Won’t Get What You Want é um passo à frente nessa volta tão aguardada, pela Amanda e pelo público, do Daughters.
HUEY – Ma
(não sou capaz de opinar)
CAR SEAT HEADREST – Twin Fantasy
Isso é muito bom. E eu poderia parar por aqui, mas vale esmiuçar o que Will Toledo tem de melhor: a entrega. É justamente essa entrega a responsável por toda a comoção em torno do Car Seat Headrest. Toda emoção delineada nas músicas parece estar realmente em ebulição em cada uma das vezes que você ouve esse disco. Não há como passar ileso ao Car Seat Headrest, até porque a Amanda escuta isso quase todos os dias…hahaha. “Bodys” é um musicão, e Twin Fantasy conversa de perto com os, assim chamados, desajustados da juventude millennial. A Amanda diz que eles são o novo Weezer. Não musicalmente, mas no mood que eles oferecem traduzido para os dias de hoje; sim, eu concordo.
TROPICAL FUCK STORM – A Laughing Death in Meatspace
Só o nome Tropical Fuck Storm já seria digno de qualquer lista. Sensorialmente, a banda parece ter saído de algum filme dos irmãos Cohen. É frenético, meio doido, espontâneo. É rock barulhento. Três meninas e um cara. Todos com uma aparência de quem parece ter vindo dos tempos de Dogtown, mas na verdade o quarteto vem da Austrália e faz um som apaixonante, emocionalmente desengonçado, e com uma vibe meio setentona. Deu pra perceber que é bem difícil classificar o que esses quatro malucos fazem. Na dúvida, ouça. E ouça alto.
CLOUD NOTHINGS – Last Building Burning
O Cloud Nothings é uma banda que respira puberdade em aceleração total. E Last Building Burning é um disco que expira a explosão que envolve essa fase da vida. O mais legal é que, não só nesse disco, mas nos anteriores também, o Cloud Nothings consegue ter um parâmetro de boa dosagem entre a simplicidade do pop com a sujeira do noise. É um disco bem legal.
THE DODOS – Certainty Waves
Entre as bandas que a Amanda me apresentou, o Dodos é, entre algumas outras, a nossa banda de domingo. Sabe aquela trilha perfeita pra cozinhar, tomar um bom drink, e curtir o domingão? É isso. Nesse novo trabalho eles parecem ter deixado o domingão de lado e resolveram migrar para a terça-feira, e isso deixou o disco mais “sério”. Ah, e Dodos, muito obrigado pela pegadinha ao final de “Ono Fashion”. Eu caí, e ri depois.
Guided By Voices – Space Gun
Corre Robert Pollard! Corre, aproveita enquanto ainda existe CLT e reclame seus direitos e méritos pelos serviços prestados ao rock alternativo. Sério, se tem um cara que produz em larga escala, e discos de qualidade, é o Robertinho e sua turma. Embora o Guided By Voices nunca tenha sido exatamente a minha banda de cabeceira, desde que me descobri amante do rock alternativo, lembro de a banda sempre ser citada. E realmente é uma grande banda. A Amanda sempre fala deles, e com razão. Entre tantos já lançados, Space Gun é de fato um belo disco. Tem aquele sabor de década de 80/90 e que jamais ficará datado nas mãos de quem respira, expira e transpira tal música. Pollard não para, e a gente agradece.
NO AGE – Snares Like a Haircut
Músicas de três acordes pra correr na beira da praia, ouvir alto no quarto ou até mesmo na pista de alguma balada. O No Age parece vir de uma turma encorajada que perdeu o medo de juntar músicas com andamentos pop, sem que isso necessariamente configure algo descartável. O som deles parece uma espécie de dream-punk-rock(?). Não sei se isso existe, mas eles usam bem as texturas aveludadas do dream pop e misturam com elementos do punk rock noventista. Talvez mais rock do que punk.
SCREAMING FEMALES – All at Once
Olha, essa vocalista ouviu muito No Doubt, hein? Em alguns momentos, o timbre de voz me lembrou a Gwen Stefani. Em outros, lembra… Tá explicadoooo. Vou revelar, Amanda ama “Love Is a Battlefield”, da Pat Benatar. E tem muito de pop punk na receita do Screaming Females, mas também há algumas variações mais pesadinhas, calcadas em riffs apoiados em fuzz. Algumas músicas – “Black Moon” é um bom exemplo – poderiam perfeitamente ser trilha de algum seriado jovem, repletos de problemas e revoltas adolescentes. Um ponto interessante, a faixa “Soft Domination” tem um quê de Fugazi na levada de bateria e aí o Vina aqui emociona.
ICEAGE – Beyondless
“Hurrah”, que abre o disco, é uma baita música. Me lembrou Strokes, o que é bem legal, porque o Iceage foi colocado como pós punk, mas, pelo menos nesse último disco, passa longe disso. Aí vem a segunda música, “Pain Killer”. Metais na composição e uma vibe meio Charlatans UK. Outra grande música. “Under the Sun” tem o jeitão do The Verve, só que mais largado. Uma bela faixa. Depois “The Day the Music Dies” pega leve carona nos Stooges, e por aí vai. Banda sem personalidade? Não, pelo contrário. A oferta é ampla, e a música também.
THIS WILL DESTROY YOU – New Others Part One
Texturas, texturas, e mais texturas. A música do This Will Destroy You é contemplativa, como tudo o que o post-rock produz de bom. Aqui não é diferente. Tem alguns ecos de Explosions in the Sky nesse disco, o que é elogioso por aqui. Não sei se minhas contemplações estão focadas nessa direção, ou se a música realmente desperta isso, mas na dança das emoções provocadas por New Others Part One, a esperança é o que parece traduzir melhor a história que esse disco conta. Experimente “Go Away Closer”. Não há letras. Há somente você, as músicas e o desejo de ir para onde você quiser que elas te carreguem.
Child Bite – Burnt Offerings
Se arriscar em regravar músicas (con)sagradas é um troço um tanto nebuloso. Claro, toda homenagem é bem vinda, mas algumas vezes dá certo, outras, dá na tentativa do Child Bite. Burnt Offerings é um registro duplo de uma banda que passeia pela sujeira do noise rock e um pouco punk. O primeiro disco é um compilado de músicas gravadas entre 2010 e 2017. Tem coisa boa. “Stag Thrall” é um bom exemplo disso. Se for pra situar um pouco a música dos caras, diria que eles bebem numa fonte repleta de Dead Kennedys e esbarram em coisas atuais, como o Clutch, por exemplo.
Os discos mais legais de 2018 do Vina descritos pela Amanda:
NENEH CHERRY – Broken Politics
Que mulher. Neneh Cherry é como uma afirmação na música. Ela soma talento, engajamento, sutileza, evolução artística e uma boa dose de inquietação musical. Seu Broken Politics é um manifesto urgente sobre as questões da atualidade. Entrega letras contundentes sobre refugiados, feminismo e política com uma musicalidade versátil que passeia pelo jazz, pelo hip hop e pelo eletrônico. Achei bem legal saber que o Four Tet a produziu. “Fallen Leaves” e “Shot Gun Shack” são faixas incríveis. O que dizer da clemência deste verso: “just because I’m down / don’t step all over me”? Que mulher.
INTERPOL – Marauder
Eu nunca tinha dado valor ao Interpol até o Vina destrinchar cada uma das músicas do Turn On the Bright Lights pra mim, demonstrando o quanto cada seção rítmica e vocal era elaborada e criativa. Só assim para eu superar o preconceito de banda-de-rolê-indie que dividia a assiduidade com Franz Ferdinand e Strokes nos inferninhos de Londrina e de São Paulo. Depois de eu reconhecer minha injustiça, a coisa mudou de figura. Muitas canções ótimas podem formar uma coletânea ou, preferencialmente, um disco inédito, como é o caso deste Marauder. O começo com “If You Really Love Nothing” dá a melancolia vivaz que esperamos da banda, passando pela apreensiva “Stay in Touch” e desembocando no entusiasmo ambivalente de “Party’s Over” que, a despeito do nome, mais parece um começo de festa.
WILL HAVEN – Muerte
Quando se chega a uma catarse, imagina-se que o momento anterior tenha sido de muito sufoco, claustrofobia e perrengue. É esse turbulento antes e redentor depois que experimentamos ao ouvir Muerte, do Will Haven. Talvez a banda tenha se irritado com Sacramento, sua terra natal, tanto quanto a Ladybird de Greta Gerwig. Talvez. Nem todo mundo deve curtir um solzinho desértico com palmeirinhas. Antítese do clima californiano, Muerte é perrenguento, barulhento, dramático, desordenado, pesado nas batidas e caótico nos riffs. E tudo isso é bem elogioso pra nós.
SNAIL MAIL – Lush
O vozeirão lindo e levemente inseguro de Lindsay Jordan combina bem com seus 19 anos. Reúne a delicadeza e a força que vemos nas canções do disco de estreia, Lush. Nome por trás do Snail Mail, ela integra uma interessantíssima geração de compositoras/guitarristas que merecidamente tem se destacado na imprensa mundial, a exemplo de Angel Olsen, Katie Crutchfield (Waxahatchee) e Courtney Barnett. “Pristine” e “Heat Wave” são belas amostras do encantamento de Lindsay pelo college rock americano da década de 90 e pelo indie canadense dos anos 2000. Já as baladas cabisbaixas “Stick” – que tem um lindo crescendo – e “Anytime” dão o tom introspectivo que cativa pela sua identificação. A juventude promete, mas não é isenta de angústia.
ECHO LADIES – Pink Noise
Acho que se o Ecad da Suécia baixasse aqui em casa, ia rolar uma cobrança pela execução enfática do refrão de “Apart” – a favorita do Vina. De fato é um ótimo refrão, cantado com a doçura hesitante de Matilda Bogren e dramaticamente sintetizado. Fez com que me lembrasse de bandas como Neaux e Pity Sex, em que a suavidade vocal faz um belo arranjo com o pós punk, o dream pop e o shoegaze. O trio sueco vai agradar em cheio aos fãs dessas sonoridades e especialmente a quem curte o Joy Division – é, sei que esta referência é uma carta na manga absolutamente clichê ao escrever sobre música, mas aqui ela cabe direitinho. Um disco para introspecções residenciais e também para extroversões baladeiras.
WIEGEDOOD – De Doden Hebben Het Goed III
Fui fuçar o significado dessa frase impactante que num tenho ideia de como pronunciar e descobri que é “os mortos estão bem”. Acho que isso reforçou meu imaginário mórbido sobre o Wiegedood. Eu visualizo o black metal desses belgas numa trilha sonora do True Detective (temporada 1 como referência, a 2 num dá), rasgando climas de suspense com uma massa sonora perturbadora e muito veloz. A “Doodskalm” pareceu um belo plano sequência de inquietação e vibe negativa. Pensando bem, eles tão mais para o equivalente sonoro do Suspiria, do Dario Argento.
DESALMADO – Save Us From Ourselves
Taí um disco sem meias palavras para um 2018 baseado em mentiras. As letras de Save Us From Ourselves, dos paulistas do Desalmado, não nos deixarão esquecer da hipocrisia, do discurso bélico e do autoritarismo presente no discurso de muitos brasileiros em uma das épocas mais críticas de nossa jovem democracia. Nada mais justo que esse esporro verbal venha acompanhado de um instrumental agressivo, imponente e incansável, representado por riffs elaborados e ferozes, rasgos virulentos no baixo e batidas lancinantes de um grind fronteiriço. Desde a potência rústica da homônima “Save Us From Ourselves”, que transcende a bela herança deixada pelo Roots, do Sepultura, até a causticidade de “Corrosion” e a dramaticidade de “Bridges to a New Dawn”, a sensação é de um trem em alta velocidade supostamente descarrilado, mas plenamente no controle de seu destino.
JUDAS PRIEST – Firepower
À parte os comentários sobre este grande e renovador representante do rock clássico, olha essas letras: já na abertura, Rob Halford condena: poder de fogo / tirando vidas. Daí na “Evil Never Dies” ele alerta que o mestre do engano / te pega pela mão e leva para o palácio dos condenados / ele te manipula / e brinca com os seus medos / seu grito final é música para os ouvidos dele. Daí na “Never the Heroes” ele esbraveja que nunca heróis, fomos feitos para lutar / nunca heróis, fomos apenas sacrificados na guerra. Quando chega na “Children of the Sun” ele acusa você é o ódio que derrota a humanidade / mentiras torturantes que conduzem os cegos. Tio Rob, deus do metal e adorado inclusive em ambientes homofóbicos, tem muita coisa importante para falar sobre nossa vida em sociedade, hein.
SEPTIC TANK – Rotting Civilisation
Dorrian Aventureiro. Catapish! Piada podre, eu sei. Mas veja bem, o cara pode botar no Linkedin que integrou o Napalm Death, o Cathedral e o Septic Tank. O Vina adora e acompanha tudo que o Lee Dorrian faz. E nossa, com razão! Que disco sensacional. Este Rotting Civilisation é a podridão necessária, expurgada e ruidosa compatível com o esmaecimento deste 2018 lotado de notícias asquerosas. Que a arte carregue a agressividade, e não os atos e intolerâncias que temos visto. É um disco que me lembrou a velocidade sujona do Motörhead e o atropelo engajado do Discharge. Deviam distribuir este disco nas escolas para ensinar sobre sublimação da raiva e “portas do inferno” metafóricas.
SUMAC – Love in Shadow
A julgar por essa primavera que anda fazendo cosplay de verão, o Sumac é uma banda pra se ouvir no frio ou no ar condicionado. Experimente passar calor ouvindo o looping maníaco distorcido de “Arcing Silver”, que belezinha. Dá um bem-estar danado. O baixo fantasmagórico que preenche o álbum faz parzinho com a voz tortuosa do Aaron Turner e aí o banquete se completa com a guitarra espiralada. Algo como um encontro entre o Neurosis, o Isis e A Bruxa de Blair. É um disco que definitivamente não te deixa à margem, imune aos seus efeitos. E isso é uma baita qualidade.
Rastilho – O Prego e o Caixão
A urgência define esta estreia da banda paulista Rastilho. Uma coleção de onze rasgos verbais fulminantes acompanhados de guitarras ásperas, um baixo contundente e granulado, e uma bateria desenfreada. Uma matemática sonora de turbulência calculada para que a revolta decole, a violência ecoe e a mensagem de “basta!” circule em mundo consumista, injusto e misógino, como apontam “Condicionado ao Consumo”, “Sistemas” e “O Corpo Rebelde”. O quadro pintado pela realidade não é nada bonito, mas dele nasce a potência engajada, inconformista e crust do quinteto.
Nossas unanimidades em 2018:
IDLES – Joy as an Act of Resistance
O Idles trouxe de volta o processo sadio que envolve um disco. O nome, a capa, as letras, os timbres, a criatividade, as músicas. Uma equação que, na objetividade do hoje, caiu um pouco em desuso. Eles conseguiram fazer com que as conversas girassem em torno das músicas “I’m Scum”, “Samaritans”, “Danny Nedelko” ou “Gram Rock”, e não só das músicas 3, 4 ou 10.
Joy as an Act of Resistance é cria da intolerância aos imigrantes e refugiados, do preconceito contra os gays, e do autoritarismo que vem assustando o mundo. É cria do Brexit e da cultura de que o diferente é uma ameaça. Cria de um mundo que está se fechando em condomínios, e não vivendo a comunidade. Dentro disso, as músicas contagiam porque ali tem um fator determinante: é transparente. É real. Tem raiva e ironia, tipicamente britânica e, dentro disso, consegue ser lindo.
Entre linhas simples descendentes do punk rock, o álbum trouxe frescor ao rock que anda deveras bunda mole. O batismo já é um statement: Joy as an Act of Resistance. Um estado que abraça os desgarrados e maiorias. Sim, maiorias, goste você ou não. E é tudo isso que faz do Idles, em toda sua urgência, uma banda do nosso agora.
SHAME – Songs of Praise
Os também ingleses do Shame nos encantaram com sua voracidade nas letras, nas melodias e na postura no palco. Rock juvenil em plena combustão, mas pretensioso na mesma medida da espontaneidade. Esta é uma estreia cheia de vigor, causadora de um impacto semelhante a quando ouvimos o homônimo do METZ ou o Attack on Memory, do Cloud Nothings. Vocais vociferados contrastam com linhas de baixo subterrâneas do pós punk e guitarras ruidosas do noise. São herdeiros do The Fall, mas escrevem novos caminhos, especialmente sintonizados com os anseios e questionamentos situados em uma época de muita oferta tecnológica, mas pouca conexão. Experimente ouvi-los a partir da sequência “Concrete”/”One Rizla”.