A complacência é o ritmo de Barítono. O tom grave também dá contorno à liberdade do autor, Rodrigo Carneiro, que passeia por construções em tinta e papel que descrevem poemas e fragmentos do cotidiano repletos de cores, dores, amores, valores e um tanto de insensatez – combustível importante da boa poesia.
Figura importante da nossa música, conhecemos Carneiro por ser a voz do Mickey Junkies, banda que, para nós ainda adolescentes, era a transa entre alguns clichês do rock com o dar de ombros ao cenário daquele início da década de 90. Enquanto muitos estavam no andamento acelerado do hardcore, o Mickey Junkies se conectava com o rock alternativo que ainda engatinhava por aqui. E Rodrigo, no palco, era um híbrido de Iggy Pop, James Brown e Nick Cave. O barítono que vem de Osasco.
Da primeira à última página, Barítono, o livro, lançado pelo Editora Terreno Estranho, é poesia brasileiríssima, cheia de um ritmo que não se traduz facilmente para outras gramáticas. E se você enxerga na palavra poesia uma coisa desinteressante, repense. A de Rodrigo é pra você que gosta de música, de beber com os amigos, e que ama e odeia suas relações.
Xico Sá é o dono das linhas do prefácio. Nele, chama Rodrigo de Carneirovsky, brincando com a escola poética russa de nomes como Maiakóvski e Anna Akhmátova, que em um de seus poemas escreveu: Bebo à casa arruinada, às dores da minha vida, à solidão, lado a lado… e a Deus que não nos salvou. A brincadeira é feliz, porque a poesia de Rodrigo é também de observação das dores, só que das ruas do nosso tempo.
Xico escreve: “Se liga num poeta capaz de juntar, no mesmo imbatível poema, ‘a regata do Kiss’ e ‘o sol d’O estrangeiro‘, de Albert Camus”.
Rodrigo viveu o punk, a new wave, a no wave, o hip hop, e hoje compartilha sua poesia no Trovadores do Miocárdio. É um inquieto construtor da palavra para que a poesia aconteça e o cotidiano vire história sob diferentes perspectivas. Inclusive sob a nossa, leitores.
Em Barítono, o autor não se prende ao soneto ou outros formatos da poesia. Ele passeia. Sem forma. Ora há rima, ora não. Ora são simples pensamentos; em outras, reflexões existenciais.
Há momentos em que Rodrigo contextualiza o leitor citando algumas referências. Como em “Residência”, onde enquanto fala de amor, traz a incrível poetisa Wislawa Szymborska, que dizia que a morte é quem sempre tem a última palavra, que “está sempre ao lado do ponto”.
Sobre sua presença no punk, traz o movimento em dos poemas mais legais do livro, e não haveria forma mais romântica de escancarar sua relação com o estilo como em “Espírito de 77”, quando ele diz:
O Punk, dizem,
tem 40 anos.
Eu, 45 –
decididamente,
deu algo errado
com o “No Future”.
Algo deu errado e Rodrigo ainda está aí. É o amor, ódio, reconhecimento, afastamento, e compreensão plena do punk. É a sobrevivência de quem viu de perto, de longe; em ambas as perspectivas, ama.
É interessante também como ele brinca com alguns dos títulos que passam a ser parte integrante de alguns dos poemas. Como em “Hesitação”, que lido em fluxo direto, com o título como parte do todo, funciona.
Hesitação
É apenas
uma questão
de timing.
Encerrado nesse ponto, já seria claro, e o foco, seria a hesitação em si, personalizada, no timing de cada um que lê. Logo, o poema inclui o leitor.
Mas ele pode ser lido também sem o título, funcionando de outra forma, mais ortodoxa, talvez. Aí então, o protagonismo cai sobre os ombros do tempo.
É apenas
uma questão
de timing.
sugere, risonho
e debochado
o cronômetro
que corre.
No recorte presente, em que vivemos um descaso com a importância da cultura, da educação, e das artes em geral, Barítono é o efeito colateral que vai contra tudo isso.
Xico batizou seu prefácio de Um livro para levar para toda a vida. De fato é. Leitura visceral, onde se perde a máxima de Fernando Pessoa, que pedimos licença para discordar, porque Rodrigo é de uma geração de poetas que não fingem que é dor a dor que deveras sente. Porque está tudo ali, às claras.
Barítono
– Editora: Terreno Estranho
– Ano: 2018
– Número de Páginas: 80