Amanda Mont’Alvão
Desde que uma jogada de marketing se tornou o ancestral embrião do hip hop, o mundo da música vem provando que as origens de uma revolução nem sempre fazem jus ou combinam com as mudanças alcançadas.
Se hoje Kendrick Lamar dá voz de urgência à maior tensão racial vivida pelos Estados Unidos desde a segregação institucionalizada nos anos 60, fica difícil imaginar que o berço da combinação entre rimas, batidas e samples tenha sido uma banda inventada de última hora por um executivo que buscava lucro. Estamos falando da Incredible Bongo Band, criada pelo americano Michael Viner para a trilha sonora de um filme e responsável pela gravação da música “Apache”, que, após cair nas mãos do DJ Kool Herc e ganhar uns scratches, mudou para sempre a história da música mundial ao se tornar o primeiro sample.
Ao contrário da improvável ligação entre uma jogada da indústria fonográfica e o duro realismo de Lamar, alguns começos davam uma ideia do “estrago” irreversível que seria feito adiante. Este é o caso do disco de estreia dos Beastie Boys, Licensed to Ill (Def Jam), que em 1986 já instalava as bases de um revolucionário percurso criativo baseado na capacidade de absorver e liquidificar referências.
Referências variadas sempre foram uma marca dos Beastie Boys, uma banda que transitava com facilidade por círculos improváveis. A turnê podia tanto acompanhar o Dead Kennedys, o Reagan Youth, o RUN DMC, o Public Image Ltd ou a Madonna. A turma de amigos incluía Darryl Jenifer, do Bad Brains; Harley Flanagan, do Cro-Mags; e Rick Rubin, criador da gravadora Def Jam. Billy Idol se declarou fã antes mesmo de o primeiro disco sair.
Criada em 1980, a banda era originalmente um quarteto: Mike D (Michael Diamond) nos vocais e na bateria; MCA (Adam Yauch) no baixo; John Berry na guitarra e Kate Schellenbach na bateria. Esta foi a formação do EP de estreia Polywog Stew, lançado em 1981 pela gravadora independente Rat Cage. “Holy Snappers”, uma das músicas do registro, mostrava a influência do Bad Brains e do Dead Kennedys.
John e Kate saíram logo depois desse registro e no lugar entrou Ad-Rock (Adam Horovitz). Em 1983, a formação definitiva dos Beastie Boys lançou o EP Cooky Puss, que já flertava com o hip hop e com a cultura do scratching. As apresentações passaram a incluir um DJ.
Mas foi em 1986, em um tempo de disseminação do hip hop, de auge do punk e do começo do hardcore, que Licensed to Ill – uma referência ao filme License to Kill, da saga 007 – veio ao mundo. Trinta anos depois, este é um álbum que reafirma sua presença na discoteca básica de fãs de hip hop. Ou de hardcore. Ou de punk. Ou de heavy metal. É a somatória criativa de três pós-adolescentes fãs de guitarras altas, rimas e beats funkeados. Uma construção musical ainda sem forma definida, usada a serviço de narrativas imaturas e infames sobre garotas, armas, drogas, festas e uma Nova York vivida sem limites.
As rimas traziam situações do cotidiano, mas sem qualquer problematização. Não que fossem apartadas da realidade; porém, elas traziam uma realidade vista apenas pelo ângulo da diversão e expressa, várias vezes, por uma linguagem chula. O único engajamento era com a diversão, com brincadeiras imbecis e com comportamentos exagerados. Tinham 21 anos e pareciam não querer crescer. Inventavam histórias e zombavam da imprensa, dando a ela a “superficialidade” com que eram julgados. Era como se pedissem, “não nos levem a sério”.
Curiosamente, aqueles tempos não eram muito propícios para a diversão: no começo da década de 80, os Estados Unidos ainda se recuperavam dos horrores da Guerra do Vietnã e lidavam com a gestão de Ronald Reagan, que estava decidido a reerguer a economia do país custe o que custasse – mesmo que gerando intolerância às diferenças. Em Nova York, os distritos enfrentavam a especulação imobiliária ao mesmo tempo em que colhiam os prejuízos do desemprego de seus moradores. É no mínimo sintomático que uma banda alienada à realidade tenha sido tão bem recebida pelos americanos. Alguma expressão artística precisava extravasar, de modo lúdico e despretensioso, as dificuldades da época. Claro que houve rejeição, e o outro lado da moeda os colocava como indecentes e como uma ameaça aos valores da tradicional família americana.
Além disso, tamanho envolvimento com a graça e com a irresponsabilidade colocou à prova até mesmo a capacidade criativa do trio. Era comum atribuírem os bônus ao co-produtor Rick Rubin, fundador da Def Jam. Felizmente, o tempo mostrou que aqueles moleques descuidados eram sim capazes de agregar camadas e mais camadas de invencionices ao hip hop.
Uma característica impressionante dos Beastie Boys é a facilidade com que criam diferentes climas em um mesmo disco, costurando, de maneira genial, as infindáveis possibilidades que os samples prometem. “The New Style”, a segunda de Licensed to Ill, por exemplo, tem guinadas improváveis a partir das batidas secas de um hip hop gangueiro típico dos anos 90.
A partir de um sample da bateria de “When the Levee Breaks”, do Led Zeppelin, e da guitarra de “Sweet Leaf”, do Black Sabbath, “Rhymin And Stealin” dava a tônica dos riffs pesados e batidas carregadas trazidas do heavy metal. O flow vinha mandatório.
“She’s Crafty” mais uma vez recorda Led Zepellin, pelo riff de “The Ocean”. As batidas aqui são mais tribais e secas. A faixa descreve um encontro com uma beastie girl. Sobram referências a uma mulher objetificada. O modo pouco respeitoso dirigido às mulheres mais tarde foi revisto pelo trio. O documentário The Punk Singer, sobre a líder da banda feminista Bikini Kill, Kathleen Hanna, traz uma bela cena sobre a conscientização dos conteúdos misóginos a partir da convivência de Ad-Rock com ela. Eles são casados desde 2006.
Em uma espécie de rap starwarsiano de tempo desacelerado, “Posse in Effect” sampleia Beside, Juice e Joeski Love para narrar o que seria o estilo de vida do hip hop. “Slow Ride” vem mais tropical e funkeada, ao estilo da Incredible Bongo Band. Na sequência vem “Girls”, um som garageiro meio robótico que traz o lúdico do disco em seu auge. À época não houve preocupação com a letra. Hoje ela certamente renderia críticas.
“Fight for Your Right” marca uma das verves mais veementes do gosto dos Beastie Boys pelo heavy metal. O clipe se tornou um grande clássico e sintetiza bem o espírito do trio no começo da carreira: despreocupados com as consequências e decididos a causar. Junto com “Sabotage”, do disco Ill Communication, a faixa permanece como uma das mais poderosas e emblemáticas deles.
“No Sleep till Brooklyn” também evoca o heavy metal e ainda traz um solo de guitarra de Kerry King, do Slayer. Dois anos depois, o Stiff Little Fingers fez um cover incrível da música, adaptada para “No Sleep Til Belfast”.
“Paul Revere” ecoa seus graves em uma narrativa que remete a Clint Eastwood e aos beastie boys tratados como bad boys. “Hold it Now, Hit It” é bastante funkeada e talvez seja o momento menos roqueiro do álbum. É o antecedente perfeito para a impulsiva e dançante “Brass Monkey”.
Originalmente composta pelo Run DMC em 85 e descartada logo após a gravação, “Slow and Low” foi pedida pelos Beastie Boys como um cover. Acabaram fazendo uma nova música, mantendo a maior parte da letra. Tem até referência ao ao Sugarhill Gang: “What you see is what you get/And you ain’t seen nothing yet” é um trecho de “8th Wonder”.
Finalizando o disco, “Time to Get Ill” sintetiza bem as colagens que marcam o grupo. Tem Barry White, Creedence Clearwater Revival, Stevie Wonder e Led Zepellin na mesma faixa, interagindo tão naturalmente que nem mesmo aqueles pout-porris das propagandas da Som Livre conseguiriam. É música criada dentro da música.
Parte desta combustão criativa que só melhorou com o tempo pode ser explicada pelo espírito colaborativo do trio, que realmente trazia todos os integrantes na composição dos flows e na escolha dos samples. Assim como as possibilidades sonoras eram inúmeras a partir de colagens, o mesmo se via com a linguagem, desfiada em rimas bastante marcantes. Desde o princípio até a triste morte de MCA, em 2012, os Beastie Boys exerceram, na prática, uma resistência ao individualismo que Reagan tanto queria pregar.