Kiko Dinucci: Sesc Pompeia – 15 de fevereiro

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No último sábado, 15 de fevereiro de 2020, vimos e ouvimos cantos e encantos forjados em ventre secular. Teve o chão dos terreiros, o batuque, cordas de um violão reencontrado e vozes, várias delas, equilibradas por quatro damas da nossa música, cada uma com sua dose de bença atiradas sobre Kiko Dinucci, que na ocasião, trazia a público novo disco, Rastilho.

Aos poucos as cadeiras do SESC Pompeia foram perdendo espaço para vozes e mais vozes ansiosas que tomaram conta do teatro. Algumas delas trocavam impressões sobre o recente disco, outras falavam amenidades enquanto uma pequena parcela parecia se preparar para o ataque que sofreriam muito em breve.

Maraísa, Dulce Monteiro, Graça Reis, Juçara Marçal e Kiko Dinucci. Foto: Helga Simões

E quando os falantes anunciaram o início do show, o teatro mergulhou em um silêncio intimidador que faria João Gilberto sorrir satisfeito. Nem um pio! O coral formado por Dulce Monteiro, Graça Reis, Maraísa e Juçara Marçal ocupou suas posições e o palco ficou pequeno diante de tanta força. Kiko, sentado de frente para elas, olhava como quem se ampara, reconhece e agradece.

Assim como no disco, a instrumental “Exu Odara” abriu os caminhos da noite emendada em “Olodé”, onde Kiko dedilha, arranha e chega a puxar a corda pra fora do braço do violão tirando som de algum lugar entre o instinto e seu carinho pelo Sonic Youth.

Ele canta, o coral responde e a gente mergulha junto em Jovelinas, Clementinas, Ivones. O passado se transfere às vozes de hoje. Veio até uma lembrança dos almoços de domingo enquanto o coro de “A Maioria Sem Nenhum”, da dobradinha Elton Medeiros e Paulinho da Viola, ecoava pela casa. Ao final, gritos e longas palmas em volume generoso romperam o silêncio que vivia ali segundos antes do último acorde.

Juçara Marçal e Kiko Dinucci. Foto: Tomás

Dali por diante o que se viu e ouviu foi um tanto de punk, de samba, partido alto, dos pontos de terreiro, os batuques distribuídos entre as cordas de um violão que responde aos ataques de Kiko, que invoca e emite vibrações do seu instrumento.

É fato que o violão traz os signos da música brasileira. Mas nas mãos de Kiko, o instrumento ganha nova direção, um elo de possibilidades fora dos padrões. O toque grave evoca o baixo, a base, enquanto o resvalo em cordas mais finas traz o agudo, que em Rastilho é um detalhe que acende pela compreensão e diálogo estabelecidos pelos tons do instrumento. Os cantos do coral também respondem ao violão de Kiko e formam um contraponto incrível entre harmonia e ambiências.

“Foi Batendo o Pé na Terra”, junto com “Pisa na Macieza”, de Rosângela Macedo, nos colocaram de braços dados com raízes robustas, numa ciranda deliciosa repleta de memórias antigas e outras que estavam ganhando forma ali, ao vivo.

Kiko Dinucci. Foto: Guilherme Zorzetto

Rastilho foi gravado em três dias, registrado em fita, com efeitos orgânicos, diferentes tons e afinações. Dá pra sentir os respingos do que ferve à flor da pele e pede descompressão. É desse lugar que talvez venha certa agressividade que o disco carrega. Não é um registro leve. Ele faz suar, pensar, fritar e tudo isso ganha ainda mais músculos ao vivo.

Depois de “Vida Mansa” (José Batista/ Norival Reis), o coral de vozes deixa o palco e Kiko, agora acompanhado somente de seu violão, traz a hipnótica “Marquito” com o cuidado de trazer para o show os vocais registrados no disco. Na sequência, teve vômito na Celso Garcia, passagem pelo Parque D. Pedro, falante anunciando queima de estoque em loja de rua, liquidação total em “Febre do Rato”, uma das mais gráficas do novo disco.

Juçara Marçal. Foto: Kron

Juçara então volta ao palco para uma emocionante “Odara Elegbara”, música registrada pelo Metá Metá; além de outras duas, “Oração em Tempo de Festa” e “Gaba”, onde ela namora as notas em vocalizações aveludadas até que tudo acelera – e ao vivo acelerou ainda mais – enquanto ela espalha seus sons acompanhando o violão que cresce em acordes tensos.

Na reta final do show, Rodrigo Ogi dividiu o palco com Kiko cantando uma de seu disco, Crônicas da Cidade Cinza, e o nome já entrega, Ogi é mesmo um cronista dessa selva que oprime e oferece o mundo pra quem o mundo já tem. “O sol que eu confiro e já não respiro capital de giro… Já pensei em ser autônomo…”, que antecipa um conto que onde a vida imita a arte: “É muito forte o veneno do homem que até o capeta vomita”. Ouvir essa ao vivo era uma das nossas curiosidades e lá, testemunhas oculares da perdição do tal João, não deu pra descolar o violão de Kiko seguindo o flow de Ogi. Ou o contrário.

Roftigo Ogi. Foto: Helga Simões

Ao vivo, “Rastilho”, a música, também foi a encarregada do sacode final. Cada imagem trazida pela letra conversava de perto com as imagens da linda capa idealizada por Pablo Saborido e diz muito sobre os dias que correm. As flores secas já não exalam o perfume que roubaram de alguém, morreram. A cartela de remédios, vazia, não vai mais amaciar os sintomas, muito menos mascarar o que já extrapola os sentidos. E as frutas, tropicais, que passaram do tempo, apodreceram junto com o caminhar dos moribundos por um temporal que mal começou.

É a música mais emocionante do disco. Curta, mas do tamanho da potência que carrega. Ninguém pode parar. Nem fé, amor ou sorte. Vamos explodir, vamos explodir, vamos explodir e um batuque carinhoso, no próprio violão, sustenta o cortejo do laiá laiá, que se despede num misto de beleza e dor num só canto.

Maraísa, Dulce Monteiro, Graça Reis e Juçara Marçal. Foto: Tomás

Teve bis, desses que parecem que ainda vão durar um tempo. A noite terminou com os pensamentos sobre o que tínhamos presenciado naquele teatro. No dia seguinte nos demos conta do impacto. O show ainda era palpável e reverberava aqui e ali, como um filme que fica passeando pela nossa compreensão e ganha novos significados com o tempo.

Sobre Rastilho, muito se falou, e se escreveu. Sobre os ecos de Baden Powell, Edu Lobo, Gilberto Gil, Dorival Caymmi e tantos outros nomes, mas a história é a do aqui e agora, ao vivo. E esse presente é de um Kiko mergulhado em notas livres de qualquer “é tipo isso… tipo aquilo”. E essa liberdade é condenatória, como disse Sartre.

Na forma como abraçou novamente o violão, Kiko mostra uma alegria em ser condenado a ser livre. O violão é dele. A música é dele. O som é dele. O batuque é dele. É como comentou Juçara, ele não se reiventa, “porque já está tudo ali”. Esse ali, estreou lindamente ao vivo, com Kiko acessando a si mesmo, ascendendo Rastilho em diferentes afinações, canções e cantos. Condenado a ser livre.

Foto: Kron

Kiko Dinucci: Sesc Pompeia, 15 de fevereiro de 2020.

Kiko Dinucci com as Pastoras: Graça Reis, Dulce Monteiro e Maraísa
“Exu Odara” (domínio público)
“Olodé” (Kiko Dinucci)
“Foi Batendo o Pé Na Terra” (Kiko Dinucci) e “Pisa na Maciesa” (Rosângela Macedo)
“Vida Mansa” (José Batista/ Norival Reis)

Kiko Dinucci – Solo
“Marquito” (Kiko Dinucci)
“Febre do Rato” (Kiko Dinucci)
“No Meio do Povo” (Catoni/ Sérgio Fonseca/ Joel Menezes)
“Habitual” (Kiko Dinucci)
“Dadá” (Kiko Dinucci)

Com Juçara Marçal
“Gaba” (Kiko Dinucci)
“Odara Elegbara” (Kiko Dinucci/ Juçara Marçal)
“Oração Em Tempo de Festa” (Geraldo Filme)

Com Rodrigo Ogi
“Corrida dos Ratos” (Rodrigo Ogi)
“Veneno” (Kiko Dinucci/ Rodrigo Ogi)

Com as Pastoras: Graça Reis, Dulce Monteiro e Maraísa
“Tambú e Candongueiro” (Kiko Dinucci)
“Rastilho” (Kiko Dinucci)

Bis
“Foi Batendo o Pé na Terra” (Kiko Dinucci)