Há um trecho do documentário A Band Called Death (2013) em que os irmãos Dannis e Bobby Hackney contam o momento em que quase pertenceram à Arista/Columbia Records. O presidente da gravadora, ainda que muito entusiasmado pelo som da banda, rejeitava o nome Death a todo o custo. E os integrantes, sem qualquer suporte de assessoria de imprensa, insistiram no nome, criado pelo irmão David Hackney. Não à toa, era ele quem batia o pé com mais determinação.
Mas David não tinha criado apenas o nome. Ele tinha concebido um conceito visual, um logo, e também predeterminado uma autoestima e uma confiança genuínas que mais tarde fariam do Death um exemplo de resistência e de credibilidade. Afinal, a indústria musical não estava preparada para um nome tão pesado e negativo para a sociedade ocidental. Também não estava preparada para aquela leitura densa e frenética do groove perpetuado pela conterrânea Motown – o Death é de Detroit, Michigan. Como se chamava aquilo que estavam fazendo em 1971, construindo músicas vigorosas e, ao mesmo tempo, espiritualizadas, de levada acelerada, e funk sobrecarregado?
Um show do The Who havia inspirado aqueles três irmãos a montarem uma banda, e a verve naturalmente musical do pai e da mãe tinha dado espaço para que se enfiassem num quartinho e fizessem quanto barulho achassem necessário.
Com a alcunha da morte, esses irmãos, na verdade, foram a banda do “quase”. Quase desistiram. Quase cederam. Quase estouraram. Quase se anularam. Quase passaram em branco.
Em 77, o punk reinou em absoluto, e o Death, que já fazia punk antes do punk, acabou.
Entre as gravações de 1975 e a redescoberta pela gravadora Drag City, em 2008, rolou muita água. A indústria fonográfica não tem tanto apelo ou poder, a curadoria musical é feita por milhares de ouvidos e David, o irmão que falou “um dia vamos ser reconhecidos”, morreu antes de o Death ganhar vida entre seu próprio público. Para nosso deleite, os rolos de gravações foram preservados a pedido de David.
Ao subir ao palco do Sesc Belenzinho na calorenta quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016, Dannis e Bobby Hackney, hoje acompanhados pelo guitarrista Bobbie Duncan, reavivaram aquele extenso intervalo de quase 40 anos.
Detroit a São Paulo não é o tipo de trajeto que bandas extremamente independentes sonhem percorrer. E quantas bandas de altíssima qualidade nós vimos desistir em menos de cinco anos? Quantas delas insistiram e deixaram o tempo oferecer sua contribuição? Quantas persistem e chegam à nossa frente mais deslumbradas com nossos rostos do que o contrário? Porque foi isso que recebemos do Death naquele dia: deslumbramento e música pertencente a um tempo de incertezas. Música, portanto, para nossos dias.
Bobby agradecia várias vezes e dedicava as músicas ao falecido irmão David. Dannis saía da bateria e interagia alegremente com o público, que aliás, foi respeitoso: não conversou durante a apresentação, ouviu com atenção as músicas novas e saudou a banda com entusiasmo. “Keep on Knocking” e “Politicians In My Eyes”, os singles relançados em 2013, foram os pontos altos. Mas as novas canções “Playtime”, “Relief”, “The Times” e “Story of the World” mostraram uma banda afinada para renovar o punk grooveado pelo qual é conhecida e tiveram um retorno vibrante.
Ali naquele palco era bem fácil reconhecer o valor do Death, depois que já fomos atropelados pelo punk e sabemos o valor do DIY (faça você mesmo). Até parece que a resistência deles foi uma tarefa tranquila e que só pedia um tantinho de paciência.
É fácil reconhecer o valor dos três irmãos negros num momento em que fica cada vez mais urgente admitir a existência do racismo e agir sobre ele. É fácil reconhecer que o Death merece tudo que está colhendo, ainda mais nas condições do Sesc, em que o ingresso é acessível e a estrutura, impecável (duas ressalvas, porém: estava insuportavelmente quente e parecia que caberia mais gente ali).
Bom seria se pudéssemos “provar” mais e mais bandas por ingressos acessíveis assim, ao vivo, sem precisar de uma gravadora nos dizendo que essa música é “isso” ou “aquilo”. O Death é exatamente a subversão dessa lógica de mercado, que define o que deve estar ou não no circuito da cultura: a banda foi barrada pelo filtro cultural da indústria, e trazida à tona por anônimos de fóruns de internet. O Death, portanto, merece todo o nosso respeito.