Entrevista: Murillo Leite (Genocidio) Os 20 anos e a reedição de Posthumous

In Entrevistas


Já no primeiro lançamento, o Genocidio se mostrou uma banda detentora de um ingrediente ainda escasso para a maioria dos nomes contemporâneos à sua história. A soma de atitude, disposição e autenticidade deram à banda, já nos seus primeiros anos, um status de cult.

The Grave (88) é um cartão de visitas brutal. Death metal primitivo e já com uns toques que caracterizariam dali em diante a identidade da banda. Depression (90) revelou mais da identidade da banda. O mix de som tribal, orgânico e atonal carimbaram de vez o que seria o som do Genocidio. No terceiro lançamento, Hoctaedrom (93), a evolução foi notória e ali , ao lado de Sarcófago, Korzus e Sepultura, se consagrariam como um dos grandes nomes do metal nacional.

No auge do crescimento e impulsionado por uma maturidade serena, Posthumous (96) foi forjado em criatividade urgente, e em 2015, a banda resolveu antecipar as comemorações de 10 anos desse já clássico. A reedição tem nova arte gráfica e alguns bônus que são verdadeiras relíquias. Na época, o disco trouxe algumas mudanças na formação e nas composições. Hoje, nessa reedição, ele comprova que o Genocidio sempre teve a evolução como objetivo, suas raízes como comprometimento e a inquietação como estímulo.

Sounds Like Us: Posthumous é de 96, certo? Quais lembranças vocês têm do Genocidio na época do lançamento? Qual era o momento de vocês como banda? Conseguiam ter estrutura para gravar e fazer shows?
Murillo Leite: Sim, é de 96, mas o processo criativo levou dois anos para ser concluído. Foi uma época muito intensa e com uma dinâmica de acontecimentos que gerou conflitos internos profundos. Vivíamos um dilema enorme, tínhamos acabado de assinar contrato com uma gravadora de renome, havíamos encarado alguns meses de estúdio, por sinal uma infraestrutura digna de banda grande, mas entre nós as coisas não iam muito bem. Talvez não estivéssemos preparados para dar este passo, apesar de que musicalmente estávamos bem cientes do rumo que a banda havia tomado. Infelizmente, somente dois shows foram realizados após o lançamento do disco, pois o clima na banda estava péssimo. Após o segundo show houve o rompimento e o Genocidio precisou reformular o line-up quase que integralmente no final de 96.

Sounds: É um disco com raízes fortes doom metal. As guitarras são ásperas, pesadas, mas eu acho que muita coisa nele gira em torno de experimentos. Não digo música experimental, mas o literal do termo mesmo, de testar diferentes caminhos dentro da criatividade de vocês. “Ways” termina com uma pegada quase Voivod, a tríade “Lilit and Nahemah”, “The Sphere of Lilit” e “The Sphere of Nahemah” é uma trama muito bem amarrada e “Goodbye Kisses” foi gravada com violão, violinos, além de ter vocal feminino. Ainda vale citar “Illusions” que tem um riff quase crust. Vocês acham que esse é o disco em que você mais experimentaram criativamente?
Murillo: Concordo com você sobre o aspecto doom, ele já havia sido injetado na banda em Hoctaedrom, mas no Posthumous ele ficou evidente em diversos momentos do disco. O Genocidio é o tipo da banda que não trabalha sob a luz da obviedade, essa é nossa marca registrada, portanto, estávamos imersos no universo do doom metal, como Paradise Lost e Anathema, e buscamos influências em bandas clássicas como Pink Floyd, Black Sabbath, The Sisters of Mercy e também em bandas pouco conhecidas aqui como Dead Can Dance. Até então, ter um vocal lírico feminino era algo inédito em termos de Brasil e de certa forma raro no âmbito mundial, foi uma aposta que acreditávamos ser muito impactante para a cena. Experimentamos bastante, não sei se foi o disco que mais fizemos isso, mas que expandimos nosso horizonte musical, isso é inegável.


Sounds: Ainda falando sobre a tríade. O curioso é que muitas bandas brincam com o ambíguo e dividem conceitos em duas partes. Vocês criaram 3 universos para um mesmo tema. Mesmo musicalmente, “Lilit and Nahemah” é mais cadenciada, mais metal. “The Sphere of Lilit” é mais doom e melancólica. Já “The Sphere of Nahemah” tem um riff inicial quase gótico e vem em um crescente melódico bem condensado. Qual é a história por trás desses 3 temas, lírica e musicalmente?
Murillo: São dois entes ligados à sexualidade que dominavam esferas onde a infra sexualidade se fazia presente através de atos como o adultério, a prostituição e o aborto, entre outros. Compusemos essa tríade na sequência que está registrada no álbum, com as diversas camadas sonoras que formaram a trilha ideal para a inspiração lírica do Juma. Na época ele lia bastante sobre espiritismo, um tema incomum para uma banda de metal, mas que casou perfeitamente com a atmosfera instrumental que fora criada.

Sounds: Disco a disco, o Genocídio nunca virou refém da própria fórmula. Pelo contrário, vocês sempre procuraram se reinventar. Vocês acham que, na época, o Posthmous cumpriu esse papel?
Murillo: Sim, absolutamente. Foi uma evolução constante, do metal extremo e cru apresentado no EP (88), passando pelo primeiro álbum com foco experimental que fizemos – Depression (91), indo para uma estética death metal clássico em Hoctaedrom (93) até chegarmos ao patamar denso de Posthumous. Cada um com a sua própria temática lírica e com sua sonoridade peculiar, mas todos com o DNA do Genocidio.


Sounds: A entrada do Daniel no baixo e o fato de você assumir efetivamente os vocais trouxeram uma evolução muito significativa para a banda. Além disso, apesar de o metal estar passando por uma fase não muito frutífera, era um momento de muita evidência pra vocês. Vocês fizeram poucos shows de divulgação desse disco, certo? Pode contar pra gente o que aconteceu nessa fase?
Murillo: Esta mudança na formação ocorreu no fim de 94 e foi muito importante para nós, pois o Marcão não estava na mesma sintonia que nós havia alguns anos e tal ajuste nos deu uma grande motivação para concluirmos o material que sairia sob o nome Posthumous. Estávamos muito unidos e conscientes do que queríamos naquele momento, além disto, havia uma grande expectativa em torno do lançamento do material, fruto da evidência que a banda tinha conquistado até então. 1996 foi um ano muito estranho para o metal, o Metallica havia lançado um álbum que se configurou como uma afronta à cena metal, o maior expoente da música pesada brasileira, Sepultura, sofreu uma mudança radical em sua formação, ou seja, dois dos “cabeças de chave” do estilo estavam passando por períodos transitórios e isso afetou o cenário como um todo. Nós estávamos atravessando um momento extremamente conturbado, em que a nossa imaturidade suplantou as conquistas da banda na época e pôs abaixo todo um trabalho de anos. Fizemos somente duas apresentações após o lançamento do álbum e ¾ da banda (eu, Daniel e Juma) saíram pelo ambiente desfavorável citado anteriormente.

Sounds: Eu sei que é difícil mensurar, mas como vocês sentem que o público que não ouviu o disco na época vai reagir a essa reedição?
Murillo: O Posthumous é um enigma que jamais decifraremos (risos). Foi lançado em um momento repleto de adversidades, teve mínima promoção na mídia, mas ainda assim atravessou esses quase 20 anos sendo considerado como um dos maiores álbuns de metal feitos no Brasil seja pela mídia ou pelos fãs. A Roadie Crew o elegeu como um dos 60 álbuns mais importantes da cena brasileira e este fato atesta a relevância dele. Creio que o material ainda é atual, uma vez que alguns dos elementos contidos nele tenham assumido o ar de vanguarda e acabaram sendo explorados por outras bandas posteriormente. Estamos muito curiosos para ver a reação daqueles que nunca o ouviram, pois é estranho falar isso, mas vai ser a primeira vez que efetivamente promoveremos este álbum.


Sounds: Como surgiu a ideia de relançar o Posthumous e por que reformular a arte gráfica do álbum? Vão ter alguns bônus nessa edição?
Murillo: Já tínhamos em mente relançá-lo, assim como fizemos no aniversário de 20 anos do Hoctaedrom, e o Tullula da Mutilation Records mais uma vez abraçou a causa propondo novamente o formato Digipack para esta versão. Na verdade, antecipamos o lançamento, pois em 2016 a banda completa 30 anos de estrada e um álbum de inéditas já está em fase avançada de composição; além disso, não queríamos encavalar a divulgação de ambos os discos. A arte gráfica foi reformulada já que a original não nos agradou nem na época então, foi como se pudéssemos reescrever a história sob uma nova perspectiva. Perna fez um trabalho gráfico maravilhoso mais uma vez, criando uma nova e belíssima capa e adicionando nosso logotipo nela, fato que não ocorreu na versão original. A parte sonora foi totalmente remasterizada pelo nosso guitarrista Rafael Orsi, o que proveu ao áudio mais qualidade. Teremos 4 bonus-tracks inéditos e mais do que isso, verdadeiras relíquias do Genocidio, pois trata-se de versões extraídas de uma demo de 94, ainda com o Marcão nos vocais. Agradecemos muito aos nossos ex-bateristas Juma e Fabio por nos ajudarem no resgate deste material histórico!

Sounds: Quando vocês gravaram com vocal feminino, talvez muita gente tenha atribuído a vocês uma certa influência de bandas como The Gathering, Theatre of Tragedy, Paradise Lost entre outras da mesma safra. Mas Tom Warrior já havia feito isso e outros nomes fora do metal, como Dead Can Dance e Sisters of Mercy. “Goodbye Kisses” foi a primeira experiência da banda nesse sentido? Como foi o processo até chegar no resultado final dessa música?
Murillo: Tínhamos as referências que você citou e foram a partir delas que criamos o conceito de compor uma música que apresentasse o Genocidio adotando uma estética sonora desse porte. Foi uma música que possuía um tema melancólico, baseado na morte de uma amiga próxima da banda e chegamos ao consenso de que somente uma voz feminina poderia dar a textura que letra pedia. A Irene Sailte, excelente cantora lírica, foi indicada por uma pessoa em comum e um dia veio ao nosso encontro para escutar as bases compostas no violão e entender a nossa ideia. Fizemos um ou dois ensaios no máximo, mas foi no estúdio que “Goodbye Kisses” realmente tomou a forma que conhecemos hoje, com as estupendas performances da Irene e do violinista Flávio Geraldini.


Sounds: Por diversos motivos, esse é um relançamento, de certa forma, póstumo. Vocês estão dando nova vida a uma obra que logo depois do seu lançamento teve sua existência interrompida. Hoje o nome do disco faz mais sentido pra vocês? Esse relançamento pode ser encarado como uma maneira de retomar algo que, na época, não foi vivido por divergências e por outras circunstâncias?
Murillo: Eu me encontrei com o Juma há um tempo para pegar o K7 da demo de 94 e ele me disse: “Cara, que inocência a nossa de colocar o nome do álbum como algo já morto, é claro que ia dar zica, né?” (risos). Mas na época achamos impactante e traduzia todo o conceito que estava por trás das letras e das músicas, e até hoje enxergamos desta forma. Creio que a única coisa que me incomoda é o fato de o Daniel não estar vivo para presenciar este relançamento, mas onde ele estiver tenho certeza que ele está orgulhoso. Devemos encarar o ocorrido como algo natural e que serviu de aprendizado para todos os envolvidos, se foi assim que aconteceu é porque tinha que ser, não há arrependimentos ou sentimentos ruins entre nós hoje em dia, pois vivemos o presente e fazemos dele um instrumento para nossos planos futuros.