‘Bestial Devastation’, disco de estreia do Sepultura, ganha edição especial

In Discos
Amanda Mont’Alvão e Vinicius Castro

Na década de 80, época em que Bestial Devastation, o primeiro registro do Sepultura, foi lançado, a gente literalmente sonhava com materiais que representassem o valor que aqueles discos tinham. Isso porque muitos lançamentos de punk e heavy metal distribuídos por aqui chegavam com um encarte incompleto ou mesmo sem este item. Não tinham as letras, informações sobre onde os discos haviam sido gravados, mixados, masterizados, quem produziu, quem criou a arte da capa e da contracapa, os agradecimentos, textos adicionais e por aí vai.

Hoje os tempos são outros. As prensagens nacionais estão mais cuidadosas e as edições especiais ganharam espaço nas estantes, algo impensável no Brasil do Plano Bresser e da inflação assustadora.

Luva externa do box (2023). Foto: Sounds Like Us

De uns anos pra cá, um trabalho minucioso de curadoria, pesquisa, apuração e organização vem agraciando os fãs de bandas que cravaram seu nome na história da música mundial. É o caso do Sepultura e seu Bestial Devastation, que compõe a gênese do metal extremo mundial e em 2023 ganha uma reedição caprichada feita pelo projeto Três Selos (Assustado Discos, EAEO Records e Nada Nada Discos/Discos Nada) junto ao selo Brasas, em um box recheado de curiosidades e imagens imperdíveis, que consolidam a importância do álbum.

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Aqui no Sounds Like Us celebramos iniciativas como essa, e nas linhas a seguir você pode acompanhar relatos exclusivos de como nasceu esse importante tributo ao Sepultura.

Disco revolucionário para alguns, puro barulho para outros, uma origem discreta para outros tantos. A estreia do Sepultura já anunciava a mudança de rumos do metal, mas talvez isso só tenha ficado claro com a passagem dos anos.

“Durante muito tempo e para muita gente, esse disco não representou muito mais do que uma curiosidade, uma nota de rodapé na carreira do Sepultura, algo lembrado como o início de uma jornada que desembocou na parte realmente importante da carreira deles…”  – Pedro Carvalho, editor de conteúdo do box.

Livreto, case de fotos preto e branco e coloridas. Foto: Sounds Like Us

Bestial Devastation foi lançado originalmente em 1985, ano em que algumas sementes do metal extremo foram lançadas, em favor de uma sonoridade sem precedentes até então.

É importante lembrar que naquele mesmo espaço de tempo era difícil saber o que estava rolando no bairro vizinho, quanto mais em outra cidade, estado ou país. O acesso que tínhamos a uma sonoridade mais agressiva era por meio de discos como o Hell Awaits (Slayer), Black Metal (Venom) e Apocalyptic Raids (Hellhammer). Mas alguns outros nomes também vinham conquistando os ouvidos de quem apreciava som mais pesado, e bandas como Mantas, Poison e Slaughter tiveram suas demos rodadas em toca-fitas de headbangers ao redor do mundo. E naquele mesmo 1985 o Possessed lançou a sua clássica estreia, Seven Churches.

Para além do metal, exemplificado nas bandas citadas acima, o Discharge e o hardcore feito na Escandinávia por bandas como Terveet Kädet e Rattus eram partes igualmente decisivas na construção da sonoridade do Sepultura.

A multiplicidade de referências, a sensação e o impacto que o disco teve ficam explícitos nas falas de Max e Jairo em entrevista ao Sounds Like Us, em 2015 (leia a entrevista na íntegra).

“Eu e o Max curtíamos muita coisa hardcore. O Paulo era mais pro lado melódico, como o Iron Maiden. O Iggor também vinha com algumas ideias… Em algum tempo já conseguimos inserir alguma coisa mais hardcore na banda também, mas de forma bem sutil” – Jairo Guedz (Troops of Doom)

“(…) Muitas pessoas comentaram que o nosso som era tão bom quanto o de bandas como Kreator. Na época, a revista Kerrang deu uma coluna inteira para o disco, por ser a primeira banda brasileira de metal. Fomos uma espécie de pioneiros, embora a gente não soubesse disso” – Max Cavalera (Cavalera Conspiracy/Soulfly).

Foto: Sounds Like Us

Bestial Devastation é um registro cru e o trabalho de remasterização para o relançamento do álbum foi preciso e cuidadoso ao não influenciar no humor do disco. Ouvimos os dois LPs (1985 e 2023) em sequência por aqui e pudemos perceber que, na reedição, a emoção da época está preservada. De diferente há apenas alguns momentos em que a remasterização trouxe mais luz a trechos que, na prensagem original, nos parecem mais enterrados.

“…ter esse material com uma remasterização cuidadosa, informações que dão o sabor da época e contextualização histórica oferece uma experiência muito mais legal para o ouvinte. Ouvir música não é um ato passivo. Você não simplesmente absorve o som, você o pensa, interpreta e processa ativamente dentro da sua cabeça, conforme suas referências e experiência. O pacote todo é fundamental para a gente conseguir acessar tudo o que está ali da melhor maneira possível” – Pedro Carvalho

A música rude e primitiva produzida por Jairo “Tormentor”, Iggor “Skullcrusher”, Max “Possessed” e Paulo “Destructor” era assustadora e encantadora em medidas muito próximas. Por conta disso, não seria justo com a história que Bestial Devastation ficasse somente à sombra de sua época, já que sua relevância corre até os dias de hoje.

“É um trabalho de um pioneirismo incrível, um dos primeiros lançamentos de death metal em vinil no planeta, lançado dois meses depois do primeiro álbum do Possessed. E tudo isso feito por adolescentes de Belo Horizonte sob condições precárias, completamente por fora da indústria cultural e sem apoio de ninguém além deles mesmos, da cena underground local e da Cogumelo [gravadora por onde saiu o primeiro disco]” – Pedro Carvalho

Bestial Devastation 1985 / 2023
Foto: Sounds Like Us

Diogo Cunha, da Brasas [um dos selos responsáveis pelo box] conta que a ideia de relançar Bestial Devastation surgiu a partir do trabalho que Mateus Mondini (NadaNada Discos/Três Selos) vem fazendo com o relançamento de títulos importantes do punk nacional e raridades que nunca antes tinham vindo à tona.

“Sendo metaleirinho, e de BH, foi meio que natural querer registrar versões desses discos que não apenas reproduzem o som, mas também recuperam e eternizam um pouco do que foi aquele momento com todo o acervo fotográfico e de imagem existente. Daí nasceu a ideia do Brasas, e não tinha um título melhor pra começar do que o Bestial Devastation – Diogo Cunha (Brasas)

O novo Bestial Devastation ganhou capa gatefold impressa em material resistente. O box traz também uma coleção de 24 fotos coloridas e 24 em preto e branco, de deixar qualquer álbum de família com inveja. Acompanha ainda um livreto com 54 páginas, impresso em risografia com artes, flyers, artigos, documentos da época e o registro de uma história oral, com parte da nossa entrevista com Iggor, Jairo e Max realizada em 2015.

Foto: Sounds Like Us
Foto: Sounds Like Us

“O grosso do material que eu usei veio de uma série de entrevistas feitas nos anos 2000 por Sávio Vilela. Ele começou a escrever um livro sobre essa história, mas o projeto foi interrompido por causa de reviravoltas da vida profissional. Recentemente ele cedeu a mim todo o material, em áudio. Eu já tinha na cabeça um roteiro do que seria importante contar, então, amarrei as entrevistas numa narrativa com começo, meio e fim. O que eu não encontrei no material do Sávio eu acabei achando com vocês, no Sounds Like Us, e gravei um depoimento do João Gordo. O que mais me impressionou foi como esse texto fica mais legal quando é lido junto com o material gráfico e o som do disco. Você sente o cheiro da época, vira uma experiência audiovisual quase que como um documentário” – Pedro Carvalho

Completam o box três grandes pôsteres que replicam material da época. Entre eles, o de divulgação do show que a banda fez em um ano depois do lançamento do disco em São Paulo, junto ao Overdose, na Heavy Metal – “A maior casa de rock da cidade”- , que ficava na Vila Carrão, zona leste de São Paulo.

Mais do que um disco, o relançamento de Bestial Devastation é um verdadeiro documento da nossa música. Um registro importante do metal extremo reconhecido mundialmente e que foi criado e produzido numa época onde as fronteiras eram muito mais definidas e aparentemente intransponíveis. O Sepultura rompeu com boa parte delas. E parte dessa expansão de possibilidades dentro do metal extremo leva a assinatura de Bestial Devastation.