Na evolução dos tempos, o Napalm Death é a voz de muitos e o espelho para boa parte daquilo que reconhecemos como lealdade musical. Em pouco mais de três décadas dedicadas ao barulho, eles seguem fiéis a sua música, experimentos, seu público, mas principalmente, aos seus conceitos dentro e fora dos palcos.
Danny Herrera entrou na banda em 91, pouco depois de Mark “Barney” Greenway e Mitch Harris, que já estão juntos por aproximadamente 26 anos. Shane Embury é o nome mais antigo dentro da banda e vive, respira e se dedica ao Napalm Death desde um pouco antes da gravação do clássico From Enslavement to Obliteration, lançado em 88, e é com ele que a gente foi conversar.
Aqui você tem um papo de fãs sobre algumas curiosidades, e a história do Napalm Death, que tentamos costurar em uma linha do tempo permeada por altos e baixos, perdas, separações, posicionamento político e religioso, discos excelentes e outros nem tanto. Todo um universo que faz com que hoje o Napalm Death vá muito além de existir apenas como banda. É como uma entidade que faz com que a gente mantenha vivo aquele sentimento genuíno de cumplicidade e admiração. Shane foi super atencioso com todos os assuntos e o resultado é uma entrevista que reforça a certeza de que o Napalm Death é a banda que te faz reconhecer o seu lugar no mundo e descobrir que ele é feito de conteúdo, blast beat e uma postura violentamente bela dentro da arte.
* Leia também a parte 1 deste especial, com a discografia da banda.
Sounds Like Us: Oi, Shane. Antes de mais nada, conta pra gente como está sua vida agora?
Shane Embury: Oi! Minha vida tem estado extremamente ocupada, como se eu nunca parasse. Às vezes você respira fundo, olha pra trás e percebe que os anos passam voando.
Sounds: Você já gostava do Napalm Death? Como foi sua entrada na banda?
Shane: Eu virei fã do Napalm quando os vi tocando em um clube punk local, o The Mermaid, que fica em Birmingham, em 30 de março de 1986. Eles ainda eram um trio e foi antes de gravarem o Lado A do Scum. A gente ficou bem amigo e eu passei a segui-los e a viajar com eles nas turnês, na mesma van. Acho que, em retrospectiva, foi natural eu me juntar a eles e o primeiro convite veio do Nic Bullen, fundador da banda, para tocar guitarra no Lado A e Lado B, mas eu perdi a cabeça.
Acho que minha segunda chance foi logo depois de o Scum ter sido lançado, para substituir o Jim Whiteley. Eu tinha um monte de músicas escritas que já apareceriam no segundo disco e no primeiro Peel Sessions. Eu me arrependo de não ter entrado na banda na primeira vez, ter tocado já no primeiro disco teria sido demais. Eu estava nas trocas de fitas k7 do Lado A pelo mundo afora antes de ele se tornar um disco. Eu estava no Scum em espírito, eu acho (risos).
Sounds: O Metallica, com o Kill Em’All, e o Bad Brains eram consideradas as bandas mais rápidas no início dos anos 80. Veio o Slayer com o Reign in Blood e acelerou mais. Mas aí vocês deram outro significado para o que seria tocar rápido. Você consegue lembrar do que vocês queriam quando decidiram acelerar tanto? O que vocês pensavam e como decidiram pelo grindcore?
Shane: Tinham algumas bandas no underground mundial que já estavam ampliando os limites da velocidade na música extrema. O Napalm Death simplesmente foi ficando mais rápido em parte por causa do Mick Harris, baterista na época, e também pelo fato de que todos nós éramos fãs das trocas de fitas que rolavam e estávamos escutando muitas bandas que vinham de todo lugar do mundo. Alguns amigos meus estavam felizes com o Metallica. Eu sempre quis ser mais rápido, por isso era uma coisa que parecia ser natural para nós.
Sounds: Depois do Acüsed e do Split do Concret Sox com o Heresy, vocês foram o terceiro lançamento da Earache Records. Você ainda consegue se lembrar da sensação de ter nas mão um disco que já na época era algo bem diferente e vanguarda? Como você enxerga o Scum hoje em dia?
Shane: Oficialmente, me juntei à banda quando o Scum foi lançado e não me surpreendeu que as pessoas estivessem amando o que elas estavam ouvindo. Eu tinha trocado a fita com a gravação do Lado A com alguns amigos ao redor do mundo, então, acho que, em parte, isso ajudou, mas eu acho que o disco é uma experiência intensa já no instante em que você o coloca. Acho que era a hora certa!
Sounds: Te causou algum espanto a saída de Lee Dorrian da banda? Perguntamos isso porque vocês vinham evoluindo e crescendo muito. Mentally Murdered é excelente e na época, ninguém esperava que aquela formação se dissolvesse.
Shane: Bem, como eu disse, esses caras não eram da formação original e este é o enigma sobre o início do Napalm Death. A gente era jovem e não conversávamos muito, e eu acho que o Bill e o Lee não estavam felizes e decidiram que queriam coisas diferentes, assim como Mick fez quando deixou a banda, em 91. No começo, fiquei chateado quando eles saíram, pois a banda era o meu mundo, mas essas coisas acontecem. Hoje eu posso olhar pra trás com carinho e grandes memórias. Claro, nós ainda somos grandes amigos e, como dizem por aí, todas essas coisas acontecem por alguma razão!
Sounds: A gente vê o Napalm Death como uma banda corajosa por sempre se dispor a correr riscos e criar de acordo com o que vocês querem fazer. Sentimos isso em discos como Scum, Harmony Corruption e Diatribes, por exemplo, onde vocês caminharam para algo novo e que sempre funcionou como combustível para renovar a música de vocês. Isso é reflexo das origens punk, e da proposta da banda em sempre se colocar um desafio criativo e seguir por caminhos diferentes?
Shane: Isso talvez seja um paradoxo quando algumas pessoas disseram que a gente tinha se vendido em discos como Diatribes, mas, pra mim, teríamos nos vendido se a gente não se arriscasse e testasse nossos próprios experimentos. Criativamente, nessa época a gente aprendeu muito não só no Napalm Death, mas também em nossos projetos paralelos. Quatro de nós vivemos na mesma casa por muitos anos, então a gente dividia muitas ideias de pra onde queríamos ir, e os nossos álbuns da década de 90 são reflexos do que éramos musicalmente. Acho que, em retrospectiva, coisas boas saíram desses registros e nos ajudaram a alcançar a nossa produção criativa de agora.
Sounds: Os anos 90 foram ingratos para o metal, mas em compensação, no lado mais extremo, surgiram discos incríveis, principalmente no death metal. Nessa fase, vocês absorveram outras influências e numa matéria bem legal da Decibel Magazine você diz que o Strap it On, do Helmet, foi uma das referências na época do Diatribes. Como você analisa a fase entre o Fear, Emptiness, Despair e o Music from the Exit Wound onde além da música, vocês também vieram com uma proposta visual diferente, como no logo por exemplo?
Shane: Alterar o logotipo talvez não tenha sido a melhor ideia, mas pareceu apropriado na época, pois, como disse antes, todos nós estávamos ouvindo um monte de bandas mais pesadas e tudo foi tomando forma na maneira com que nós queríamos apresentar o Napalm Death. Parecia lógico pra gente e parte disso funcionou, e outra talvez não. Esses discos são vistos com mais carinho hoje do que quando eles foram lançados. Bandas como Helmet e Sonic Youth se tornaram muito interessantes pra mim ritmicamente, e a gente queria experimentar outras batidas. Tocar mais rápido parecia ser a melhor saída!
Sounds: Algumas pessoas se assustaram com o uso de vocais limpos em “Cold Forgiveness” ou mais “cantados” como na música “Inside the Torn Apart”, mas o From Enslavement to Obliteration já trazia uma das músicas mais intensas de vocês que era “Evolved As One”. Vocês tiveram receio de lançá-la lá em 88 e logo como primeira faixa do disco? Qual o conceito por trás dessa música e você acha que os gritos de your weak minds funcionam até hoje?
Shane: Eu acho que a gente era muito novo e não pensava muito sobre isso. Nós apenas seguimos nossos corações. O material lento e mais dark é um reflexo da realidade do início do Napalm Death e também traz os sons mais industriais e mais dark vindos do Swans ou do Missing Foundation. Eu gosto do fato de o From Enslavement… começar dessa forma, assim como o Apex Predator. É inesperado.
Sounds: Pra gente, o Enemy of Music Business é um dos melhores discos. “Next on the List” é uma música completa e ficamos feliz de vê-la no setlist do último show em São Paulo. Como tava o clima dentro da banda na época de composição desse disco? Você acha que ele é uma volta ao grindcore?
Shane: É um possível retorno ao grindcore, mas ao mesmo tempo, se você comparar esse disco com o Scum, ainda assim os dois são muito diferentes! Eu acho que nossa raiva tinha retornado e parecia certo avançar novamente em direções mais extremas. “Next on the List” e “Taste the Poison” eu compus originalmente para fazer parte de um split com os suecos do Nasum, mas no fim das contas elas se tornaram o início do disco Enemy of Music Business.
Sounds: Vocês tinham uma boa relação com o John Peel? Você sente falta de um cara como ele que colocava Alien Sex Fiend, Cocteau Twins, Thin Lizzy, Napalm Death e tantas outras bandas diferentes pra tocar e registrava esses grandes momentos da música?
Shane: Na verdade, ele era um conhecido nosso. Eu o encontrei algumas vezes e, claro, quando fui convidado para ver sua coleção de discos foi inacreditável! Eu acredito que ninguém tenha chegado ao lugar dele ou tenha tido o mesmo entusiasmo pelas diferentes faces da música. O Napalm Death e outras tantas bandas devem muito a ele… mas ele não pensaria assim. É, ele faz falta!
Sounds: A gente é apaixonado por vinil. Qual a sua relação com os LPs? Você se lembra o primeiro disco que comprou e o último?
Shane: Ao longo dos anos, minha relação com vinil tem sido cada vez menor, embora eu ame gravar splits com bandas do mundo todo. Ainda adoro vinil, mas agora, com uma filha pequena, minhas prioridades financeiras são diferentes! Mas eu ainda amo lançar vinil e sempre estou de olho nas edições especiais. Meu primeiro disco foi o Blockbuster, do Sweet. O último vinil que eu me dei um outro dia foi o novo 7’’ do Doom. Eu não tenho comprado nada por um tempo, eu diria.
Sounds: Como foi trabalhar com o John Zorn e como você enxerga o resultado dessa parceria registrada no disco Utilitarian? Dentro do estilo de vocês, daria pra dizer que ele é um disco mais experimental?
Shane: O Utilitarian continua de onde o Time Waits for No Slave parou. Ele tenta misturar muitas formas do som extremo. Convidar o John Zorn para participar do disco depois de tantos anos pareceu a coisa certa a fazer quando ouvimos a “Everyday Pox”. Fico feliz que ele tenha aceitado, pois deixou a música mais maníaca e abriu as portas para outras colaborações que eu tenho em mente.
Sounds: Como foi fazer aquele show no festival Roadburn só com as músicas mais “lentas”?
Shane: Foi muito, muito legal e interessante. Um grande amigo nosso, Costin, havia criado, para essa ocasião, diferentes vídeos para cada uma das músicas e a iluminação era bem escura. Eu acho que nós poderíamos ter tocado as músicas de um jeito melhor, mas como um primeiro show dessa natureza, foi muito bem e acho que algumas pessoas ficaram surpresas. Eu adorei e espero que tenhamos a chance de fazer algo assim de novo, em um palco maior e com um PA (sistema de som) mais alto.
Sounds: Vocês sempre tiveram posições políticas contundentes. Como você enxerga esse plebiscito que resultou na saída da Inglaterra da União Europeia?
Shane: Bem, minha esposa votou por mim para a permanência na União Europeia porque eu estava aqui no Brasil. Eu vejo alguns pontos, mas, infelizmente, muitas pessoas no Reino Unido não estão olhando o macro – muitas pessoas no Reino Unido nunca viajaram para outros lugares e não enxergam o que existe fora de lá e como social e culturalmente o Reino Unido poderia prosperar. Claro que existem outras muitas e muitas questões, mas eu estou muito triste.
Sounds: O grindcore está presente na sua vida desde 1986 e muitos costumam associar o gênero a uma juventude impulsiva, como se houvesse uma data de validade para o grind. O Shane pai de família ainda se sente representado pelo estilo?
Shane: Eu amo música pesada desde que eu tinha 10 anos e o rock desde que eu tinha 7, e isso não vai mudar. Nesse momento, eu estou escutando um disco de uma cantora dinamarquesa chamada Agnes Obel no quarto do hotel em Santiago (Chile). Está tão longe do grind como você pode imaginar – há sempre espaço para outros tipos de música e, como um fã de todos os tipos de música, não se surpreenda com alguns projetos que possa lançar com o tempo, já que quero expandir o que eu faço criativamente enquanto eu puder. Mas o grindcore está no meu coração pra sempre!
Sounds: Se você pudesse criar uma playlist com as 10 músicas que mais representam esses 35 anos do Napalm Death, quais seriam?
Estas são as músicas que o Shane enviou pra gente:
Sounds: Quando você topou nossa entrevista a gente ficou muito feliz. Dizemos isso porque a gente lá no início dos anos 90, no nossos quartos, crianças, ouvindo várias e várias vezes no mesmo dia os discos do Napalm Death na vitrola, olhando o encarte, lendo as letras, nunca imaginamos que um dia estaríamos te entrevistando. Você um dia imaginou que chegaria até aqui com a banda? Conseguiu realizar seus sonhos dentro da música?
Shane: Acho que sou muito sortudo. Nunca imaginei que fosse chegar tão longe, algumas vezes parece um sonho. Destino ou karma, chame do que quiser. As etapas traçam o caminho que virá. Eu espero que em algum lugar exista um documento com tudo o que eu e os membros da banda no passado e no presente alcançamos, para poder olhar pra trás quando eu estiver mais velho. Será algo especial. Vou me perguntar a mesma coisa de novo? Tudo isso realmente aconteceu? E as turnês com algumas das minhas bandas favoritas? As grandes pessoas que conheci ao longo do caminho e os músicos que me inspiraram. Ainda tenho sonhos para realizar na música e, finalmente, essa terá sido a maior recompensa. Quando estou em casa e vejo minha filha dançar AC/DC, percebo que a vida é boa e essa é uma sensação muito boa. Ainda há um longo caminho para percorrer. Muito obrigado pela entrevista.