Morphine Obscuro, criativo e audacioso

In Bandas, Discos
Vinicius Castro

Nas linhas de um dos poemas do português Eugénio de Andrade é possível trocarmos apenas duas das palavras, e assim capturar o que foi a vida de uma das bandas mais interessantes que esse mundo já viu: o Morphine.

Em Ver Claro, Andrade diz que toda poesia é luminosa, até a mais obscura. E que o leitor é que tem, às vezes, no lugar do sol, um nevoeiro dentro de si. Agora, troque a palavra poesia por música, e leitor por compositor. Voilà! Temos então algo que se aproxima de ilustrar o turbilhão de sensações que o Morphine consegue imprimir.

Morphine band

Formado em Boston, no ano de 1989, por Mark Sandman, Dana Colley, e Jerome Deupree, constantemente o Morphine pareceu soar como a captura de uma jam e toda a liberdade que esse momento envolve. Existe o riff, a melodia, o andamento, a troca. A partir daí as coisas se movimentam como bem entendem e a gente segue flutuando entre as intensidades e variações que essa liberdade oferece.

O Morphine pode ser rock alternativo, garage, college, indie, e até low rock, como o próprio Sandman brincou em uma entrevista, certa vez. Mas a riqueza da sonoridade estava na ausência de amarras e na forma como direcionavam sua música por um caminho mais solto, acentuado muito mais pelo instinto do que por qualquer outra coisa.

Ao todo foram cinco discos distribuídos em uma carreira relativamente curta, e repentinamente encerrada quando Mark Sandman sofreu um ataque do coração, no palco, prestes a lançar o disco mais bonitos da banda: The Night.

Era 3 de Julho de 1999. No mesmo ano, em outubro, o Morphine viria para o Brasil como um dos nomes mais esperados para tocar no Free Jazz Festival (que mais tarde viria a ser o Tim Festival).

A lembrança é ainda fresca. Era uma tarde de um fim de semana qualquer, de céu limpo e ar seco, a estação de rádio trouxe a notícia: o Morphine não viria mais ao Brasil. Mark Sandman havia morrido.

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Mesmo correndo pelas beiradas, e agradando gregos e troianos, o Morphine nunca foi unanimidade, o que é bom.

O trio soava, e continua soando, de forma única. Parte disso se deve à sua formação pouco convencional, composta por um saxofone barítono, bateria e um baixo com apenas duas cordas (?). Mas isso não foi um quadro premeditado.

A história de tal configuração aconteceu no porão da casa de Sandman, que convidou Dana para uma jam. Enquanto Sandman tocava um baixo que tinha apenas uma corda, Dana pegou um sax que ficava jogado ali no porão e começou a tocar. Foi um momento de descoberta. Eles simplesmente tocaram e experimentaram a sonoridade que acabou agradando os dois.

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O que era estranho, também gerava curiosidade e atração. E foi nessas que Cure for Pain (93), segundo disco dos caras, apresentou o Morphine pra muitas das cabeças interessadas em novidades no mundo da música.

Mas vamos voltar um pouco no nosso recorte de tempo. O primeiro disco, Good (92), não chegou com força por aqui. Fato é que, para aquela época, o registro estava alguns anos à frente do nosso entendimento adolescente. Um trio sem guitarra, usando baixo com afinação diferente, e um sax barítono em plena era grunge/ rock alternativo? Pense comigo. Era a década das guitarras e no Morphine, isso era justamente o que não havia.

Good já mostrava o diferencial de Sandman como um compositor que sabia como trazer para perto o blues, jazz, rock e a poesia. Tudo isso delineado por uma generosa dose de bom gosto.

Cure for Pain (93) chegou depois, vendeu mais de 300 mil cópias e deu início à popularização do Morphine. É até hoje mencionado como um dos melhores, por grande parte dos fãs. “I’m Free”, “A Head With Wings” e a bela e delicada “In Spite of Me” são as pinceladas mais marcantes do álbum.

O terceiro ato, Yes (95), é talvez o mais pop e linear da banda. “Honey White” abre os trabalhos em climão acelerado e, cá entre nós, lembra muito aquela famosa música trilha do filme Um Tira da Pesada, do Eddie Murphy. “Free Love”, outra entre as prediletas por aqui, é pesada. Lenta e ruidosa, ela te arrasta com a mesma eficiência do mais pútrido doom metal.

You ran away to Italy
With your psychiatrist who’s now a scientologist
So the next time someone offers you free love you know it
You better run run for shelter run for help…
For for the cynical arms of a stranger
Run for the open arms of an unknown tomorrow
Because love is expensive.

O sucesso de Yes levou o Morphine a assinar com o Dreamworks e aí a história ganhou ares ainda maiores. Distribuição gigante, orçamentos encorpados e com isso, claro, as cobranças e o início dos problemas.

O quarto álbum, Like Swimimng (97), recebeu algumas críticas não tão legais, o que fez com que Sandman e o Morphine passassem a sofrer uma pressão ainda maior. Segundo Colley, a gravadora queria transforma-lo no novo Beck (risos). O reflexo dessa fase pode ser sentido no último, e melhor disco deles, The Night (2000). Foi uma espécie de resposta à gravadora que queria algo mais pop (o novo Beck – risos de novo) e acabou ganhando um Sandman ainda mais sombrio e melancólico.

The Night não era o álbum que a gravadora queria, mas foi o que fez com que Sandman e seus companheiros levassem sua musicalidade a um novo patamar, adicionando instrumentos de cordas, backing vocals e piano, por exemplo.

A gravadora não ouviu a última mixagem e masterização, e logo a banda saiu para uma turnê nos Estados Unidos. Em uma entrevista, Colley disse que lembra de sair com Sandman depois de acertarem os detalhes finais no disco, e que mesmo tendo passado por uma enorme quantidade de dor e angústia para fazer o álbum, pela primeira vez em muito tempo, ele tinha visto Sandman sorrir.

A faixa-título é uma das músicas mais lindas da carreira do Morphine. De tocante sutileza, é daquelas obras com propriedades quase cinematográficas. Sandman estava realmente muito inspirado e a gente agradece.

Na época, Sandman não queria fazer a turnê. Dizia que queria ficar mais junto da banda e reforçar mais a convivência entre os três.

Eles acabaram indo tocar na Itália e, durante um dos shows, Mark Sandman caiu! As microfonias vindas do amplificador do seu baixo reverberaram e segundos depois, veio um silêncio doído. Segundo Flavio Manieri, coordenador do festival Palestrina, haviam 5 mil pessoas presentes naquele show. Naquele momento, todas em silêncio.

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O que se sabe é que não existe ainda nenhuma versão oficial sobre sua morte. Banda, amigos e familiares nunca falaram com clareza sobre o assunto, mas por alguns veículos correu uma versão extraoficial de que uma das causas seria o envolvimento com drogas do líder de uma banda ironicamente chamada de Morphine.

Sabine Hrechdakian, então namorada de Sandman, declarou que ele não usava drogas pesadas e que na verdade ele até as recusava porque tinha visto os destroços que elas causam, e alguém com o intelecto dele não estaria interessado em obliteração. No hospital, Sandman foi declarado morto por um ataque cardíaco fulminante. Morreu aos 46 anos.

Mark Sandman sempre foi lo-fi, e naquele tempo não se sabia muito mais do que as revistas, o rádio e os primeiros anos da internet contavam. Não havia esse grande número de documentários sobre bandas ou as várias biografias que hoje, pra nossa sorte, preenchem as livrarias.

Por aqui, o reverendo Fábio Massari e o seu Lado B, programa da extinta MTV foi um dos grandes responsáveis pelo apadrinhamento da banda por aqui. Fora isso, tinham alguns vídeos do saudoso programa 120 minutes, da MTV americana, com algumas apresentações ao vivo que eram bem legais.

Para quem quiser saber mais sobre o Morphine e a história da mente por trás daquelas músicas fora dos padrões, em 2011 foi lançado Cure for Pain: The Mark Sandman Story. O documentário trata sobre a vida, a música e o ser humano Mark Sandman. Mostra o lado do artista que sempre quis deixar sua marca no mundo por meio da música. Que foi em busca da sua arte e causou incômodos ao se mostrar por vezes muito determinado e até egoísta, como mencionam algumas pessoas que conviveram com o líder do Morphine.

Sandman não foi mitificado. Passou por diversas perdas pesadas (dois irmãos morreram), suprimiu algumas delas depositando um bom tanto de amor fraterno em seus parceiros de banda, e viveu uma história que poderia ser compartilhada por qualquer um de nós, com seus erros, acertos e aprendizados em um percurso cheio de dor e amor pela música que irradiava.

Com a morte de Sandaman, de certa forma, o Morphine também acabou ali, tão fulminante quanto o ataque que derrubou uma das mentes mais obscuras e criativas do seu tempo.

O lamento é que o capítulo final dessa história deixou um buraco tão esquisito no reino dos bons sons quanto aquele inaugurado por Mark Sandman e seus comparsas de banda. Juntos, construíram toda beleza da música que o Morphine produziu. Porque, desde seu surgimento, nunca se ouviu uma banda que soasse como eles.

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