Sonic Youth: o lindo e renegado ‘NYC Ghosts & Flowers’

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Foto: Lindsay Brice

Vinicius Castro

O melhor disco mais malquisto do Sonic Youth. Ou um dos melhores álbuns experimentais feito por uma banda de rock com ética punk e mergulhada no free jazz. Ou simplesmente o melhor pior disco da banda. Seja o que for, a indiferença não é uma opção. NYC Ghosts & Flowers é poesia cáustica, de sonoridade abrasiva que parece brotar de alguma traquinagem do inconsciente e, talvez por isso, seja algo tão difícil de engolir. Ele provoca. E aí, não há como passar ileso(a). Gostem ou não, não há.

O mais subestimado dos discos do Sonic Youth foi gravado em 1999; porém, lançado em 2000. Nesse recorte, nasceu depois do adeus aos anos 90 registrado lindamente por eles em Goodbye 20th Century SYr 4, que divide seu caos com a liquidez de A Thousand Leaves.

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NYC Ghosts & Flowers é um posicionamento corajoso sobre o que a banda podia, queria, e fez.

Em meio a tudo isso o álbum acontece e pede, como um bom poema, respiro. Não é o Sonic Youth urgente de “Catholic Block”, “Mote”, ou “100%”. É a versão que encanta pelo inesperado, consciente dos espaços não preenchidos e dos ruídos possíveis.

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Entre outras coisas, o décimo primeiro álbum da banda carrega um conjunto de situações inaugurais: o encerrar de uma década, o início de outra, integrantes que gravaram com instrumentos diferentes, a estreia em palcos brasileiros, um nova parceria, um novo integrante e a primeira pior nota recebida em uma resenha.

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Enquanto A Thousand Leaves se insinua a Walt Whitman, NYC Ghosts & Flowers presta reverência a Nova York e a importância da cidade para poesia beat das décadas de 60 e 70, como entrega, já na capa, a pintura de William Burroughs (X-Ray Man, de 1992). No encarte, artes de Joe Brainard e Darryl Alfred Levey (ou D.A. Levy) reforçam a presença de Nova York. Tanto Brainard como Levey transitaram pelas artes visuais e poesia durante aquelas décadas.

Isso é parte do que ajudou a definir a singularidade do disco. Tudo bem que a relação entre Nova York e o Sonic Youth sempre foi evidente, mas aqui isso aparece de um jeito terapêutico, e parte da cura ali refletida está em suas histórias.

No mesmo ano em que foi gravado, logo depois de um show na Califórnia, um caminhão com equipamentos da banda foi roubado. Guitarras, pedais, peças de bateria, tudo! Eles conseguiram alguns instrumentos, os shows seguiram e, depois do encerramento da turnê, gravaram NYC Ghost & Flowers usando algumas coisas emprestadas.

Dá pra imaginar até que ponto isso pode ter respingado no resultado do álbum, o que pra gente é positivo.

Em conversa que tivemos em 2017, Lee Ranaldo contou sobre as influências sofridas pela banda naquele período: “Estávamos começando a sentir uma conexão com a composição moderna do século 20, como Cornelius Cardew, John Cage, Yoko Ono e toda a galera do Fluxus [comunidade de artistas, compositores, designers e poetas durante as décadas de 60 e 70, que faziam apresentações de arte experimental].”

É sim sobre Nova York, mas é também sobre toda e qualquer megalópole intensa e insana. Ouve-se o transtorno e a ansiedade (“Side2Side”); o batimento cardíaco acelerado, o Television e os Stooges (“Renegade Princess”); os ratos, a solidão e a confusão do metrô (“StremXSonic Subway”); e o comportamento (“Nevermind – What Was It Anyway”).

Existe também uma beleza em contraponto. Ouve-se o sol entre os prédios, passos calmos e o afastamento da loucura do centro (“NYC Ghost and Flowers”), a musicalidade dos bairros residenciais e as galerias de arte (Lightnin’); o asceno a Lou Reed (“Small Flowers Crack Concrete”); e as mudanças de humor entre os diferentes temperamentos dos bairros (“Free City Rhymes).

Em mais uma de suas estreias, NYC Ghost & Flowers é onde Kim Gordon gravou pela primeira vez tocando um instrumento de sopro: “…a cena indie ficou meio entediante depois do Nirvana e aí a gente começou a ouvir mais free jazz. Acho que foi em NYC Ghosts & Flower que a Kim tocou trompete pela primeira vez [em Lightnin’]”, contou Lee Ranaldo.

Outra novidade é o início da parceria com Jim O’Rourke, nome conhecido no terreno dos sons mais malucos. Vale lembrar que Jim fez parte do incrível Gastr del Sol e era frequentador conhecido na cena experimental e de improviso de Chicago.

Além de produzir o álbum do Sonic Youth, ele também saiu em turnê com a banda e, mais tarde, se tornou um membro efetivo. Pensando bem, não só o acento do free jazz, mas a sonoridade de músicas como “Small Flowers Crack Concrete” e “StreamXSonik Subway” parece ter o toque de Jim.

Lee Ranaldo, Steve Sheley, Kim Gordon, Thurston Moore e Jim O’Rouke. Foto: Divulgação

Talvez a mais engraçada das inaugurações tenha sido a nota zero que o disco recebeu do site Pitchfork – foi um dos primeiros discos a “conseguir” tal “feito”. Você leu certo, ZERO!

Segundo Thurston Moore, eles adoraram a resenha e, anos depois, Brent DiCrescenzo, o autor da crítica, reconheceu o valor do disco e reescreveu suas impressões. Já o WRVU, em uma matéria que trazia a discografia da banda, simplesmente desconsiderou NYC Ghost & Flowers, além de A Thousand Leaves, “porque eles não representam o que é a banda”. Risos.

O ano de 2000 marca também a primeira vinda da banda ao Brasil, no Free Jazz Festival, com shows no Rio de Janeiro e em São Paulo. Entre alguns clássicos, o set list teve quatro músicas do então novo disco: “Side2Side”, “Free City Rhymes”, “Nevermind (What Was It Anyway)” e a faixa título, que causou uma catarse no público durante seus quase oito minutos de construção crescente, como você pode ver no vídeo abaixo.

“NYC Ghosts & Flowers”, a música, talvez seja um bom retrato daquele momento. Lee apanha retalhos de Nova York e chega a pedir “um jarro de luz de inverno”, como quem conhece bem o reflexo e as sombras de cada fragmento da cidade que sente ser sua. Mas NYC Ghosts & Flowers, o disco, nasceu na estação seguinte, e tem algo de primaveril espalhado nele. Aponta para uma direção que sai um pouco do barulho como ataque. Traz o ruído como melodia, enquanto as palavras, muitas vezes faladas, constroem uma narrativa que se movimenta entre uma tomada de ar e outra.

Sobre essas tomadas de ar, rompimentos e nascimentos, no documentário Birth of the Cool, sobre Miles Davis, há um trecho que diz que para acessar sua criatividade você precisa ter um compromisso com a mudança. Cabe muito de NYC Ghosts & Flowers, e do Sonic Youth, na frase do gênio do jazz. E se tem uma coisa que aquele apontar para um novo milênio propunha era mudança. Isso vestiu bem os sopros criativos do Sonic Youth e sua inquietação. No wave, noise, punk, experimentalismo, rock alternativo, texturas e o abstrato. Sempre há um movimento sônico valioso por vir.