A Escandinávia é uma região localizada ao norte da Europa e que abrange a Dinamarca, a Suécia e a Noruega. Num sentido mais amplo, o termo pode também incluir a Finlândia, as ilhas Feroé e a Islândia.
Dentro de um recorte da boa vida, recentemente a Suécia foi eleita o segundo melhor país para se viver. Ultrapassou a Noruega, que também incentiva seus moradores a qualificarem seus dias nesse planeta. A qualidade do meio ambiente e o equilíbrio entre lazer e trabalho são os dois principais atrativos ranqueados no quadro qualitativo das terras suecas. Já a Finlândia figura no décimo lugar entre os melhores países para se viver, mas ocupa o topo da lista no que diz respeito a educação, um indicador que está entre os mais valorizados nas avaliações da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Para completar, chegamos à Dinamarca. Considerado o país que tem a população com o maior índice de felicidade, lá o estresse maior deve ser provocado pela dificuldade em conseguir um lugar para estacionar sua bicicleta.
Então, por que em países com esses índices altíssimos de satisfação com a própria vida, as pessoas que ali vivem ainda encontram motivos para questionar, se revoltar e combater um sistema que parece perfeito? Se o desejo combativo vive da insatisfação presente em cada um dos nós, quais seriam as insatisfações que movimentaram o ímpeto de alguns jovens que vivem nesses países aparentemente tão perfeitos a gritarem de forma ruidosa usando o punk e o hardcore como veículo? Essa é a nossa questão. E como fãs de algumas bandas vindas dessa região, resolvemos dividir esse especial em três partes. A primeira, você já está lendo. A segunda vai ser uma entrevista com uma das bandas mais importantes dessa cena, e a terceira, uma seleção dos discos decisivos pra você mergulhar fundo nas bandas criadas daquele lado do planeta e conhecer os efeitos e motivações que elas tiveram para criar sua música, sua identidade, e fazer com que sua mensagem ultrapassasse fronteiras e ecoasse no underground de todo o mundo.
Um fato bem interessante é que, no fim dos anos 80, comecinho dos 90, as bandas do chamado punk nórdico chegavam por aqui com total bênção dos punks brasileiros. Bandas como Ratos de Porão e Olho Seco citavam nomes como Rattus, Lama e Rystetiit como influências contemporâneas. Não à toa, essas eram as bandas que tocavam mais rápido por aqui. E mais, havia quem visse, e ouvisse, semelhança nas fonéticas da língua finlandesa e do nosso português. Houve uma bela troca de energia entre os jovens contestadores de lá e daqui. Era um universo paralelo pertencente a uma mesma galáxia. Faziam o mesmo tipo de som mesmo sem saberem, por um tempo, da existência umas das outras. Quando os discos começaram a chegar por aqui, a identificação foi imediata e a descoberta foi mútua.
Na questão social e econômica, o punk brasileiro vinha das ruas, da insatisfação com o sistema e da necessidade de se organizar contra algo que não estava bom. Eram turmas, gangues, blocos de um encontro com o que as pessoas buscavam como fio condutor de suas vidas.
Vivíamos uma ditadura e se você usasse uma roupa preta, corria sério risco de tomar geral da polícia pelas ruas do centro e periferia das capitais. Se a cor de uma roupa já era motivo, imagine quem realmente carregava no visual, com jaquetas de couro, cabelo moicano, alfinetes pelo rosto, rebites espalhados pelas roupas, botas e uma raiva desafiadora nos olhos? Enquanto a Escandinávia impera com seus países nas listas de melhores lugares para se viver, por aqui a história era, e ainda é, outra. Pobreza, falta de políticas públicas decentes, descaso com a sociedade, corrupção, violência, ditadura, abuso de poder por parte da polícia militarizada e a luta diária por uma vida digna. Sem falar que as portas da cultura estavam fechadas, trancadas e soldadas por uma política arbitrária disfarçada sob o nome de protecionismo econômico. Em outras linhas, “vamos valorizar o que se cria em terra brasilis“. Historinha, né? Nada mais era do que a tentativa de controlar o que o povo via, ouvia e digeria. Sem esse intercâmbio cultural/musical, e dada a dificuldade de discos chegarem no Brasil, fica a pergunta: que raios esses dois lugares tão, mas tão distantes, tinham em comum? A insatisfação, o desejo e aquela raiva desafiadora borbulhando nos olhos. O punk!
Na Finlândia, o punk nasceu por volta de 77, mas foi em 78 que o bicho pegou de verdade. O Sex Pistols tinha um show marcado em Helsinki naquele ano, mas um artigo em um jornal local, ainda mais incendiário que a mítica dos ingleses, criou um marketing um tanto negativo sobre eles e alguns protestos contra o show começaram a rolar. Resultado, os Sex Pistols tiveram que cancelar os shows porque um ministro local negou a visita da banda ao país. Esse acontecimento ficou marcado na história e ajudou a plantar a semente para a primeira leva do punk nórdico. O primeiro registro de um lançamento punk por lá é I Really Hate Ya, do Briard, que tinha em sua formação Andy McCoy, que depois veio a fazer parte do Hanoi Rocks, uma banda de hard rock das boas. Ainda nessa primeira onda, o Ratsia foi uma banda um pouco mais conhecida. Eles ainda faziam o punk rock tradicional, menos veloz. Uma coisa mais ligada à fórmula tradicional dos Sex Pistols, Ramones e Buzzcocks.
Na década de 80, o punk ficou mais rápido e agressivo por lá. Nascia o hardcore escandinavo, que ficou bem conhecido e foi muito cultuado por aqui e pelo mundo. Entre alguns nomes, o Terveet Kädet influenciou inúmeras bandas. A primeira vez que tivemos contato com um disco dos finlandeses foi em uma daquelas economias da semana, em que você junta todo e qualquer trocado e deixa de comer o lanche na escola pra comprar um disco. Era o início dos anos 90 e o disco era o hoje clássico Black God (84), lançado por aqui alguns anos depois devido ao atraso das coisas chegarem no Brasil. O Rattus foi outra banda que conseguiu esculpir uma assinatura original no hardcore. Eles ainda estão na ativa. Ainda teve o Kaaos, uma das mais rápidas e lendárias do anos 80, e o Riistetyt, que já puxava mais pro lado dos reis do D-Beat, o Discharge. Esses talvez tenham sido os nomes mais fortes vindo de uma parte daquela região, a Finlândia. Mas nem só dos finlandeses vivia o punk/hardcore nórdico.
A Suécia também tinha uma boa representatividade. Entre as mais legais estava o Svart Parad, que tinha um vocal mais gutural e durou pouco tempo, de 84 até 86. O Asta Kask, o Mob 47 e o maravilhoso Totalitär foram bandas importantíssimas para formação e consolidação dessa cena. Já a Noruega e a Dinamarca tinham nomes menos conhecidos, mas poderosos como o Svart Framtid (Noruega) e o Electric Deads (Dinamarca).
Para nós aqui no Brasil, o punk nórdico era algo cult. A New Face Records foi um selo importantíssimo. Eles lançavam por aqui os discos das bandas de lá, encurtando a distância geográfica entre os dois continentes e aproximando mais do que nunca as mensagens, pensamentos e posturas que edificavam a ética punk.
Vale lembrar que, principalmente no metal, a Finlândia é conhecida pelas bandas que exportou, mas o punk nórdico também foi muuuuito importante para a cena local e mundial.
Quando o som dessas bandas chegou por aqui, a Escandinávia já vivia a sua segunda geração do movimento. Como em toda construção de uma cena com forte DNA, dois fatores chamavam muito a nossa atenção: a língua e a violência daquele tipo de som que estava sendo feito por lá. Em uma entrevista que fizemos com o Jão, guitarrista do Ratos de Porão, ele contou que o Fábio (vocalista do Olho Seco e dono da Punk Rock Discos) fazia umas fitas que ele chamava de Lançamento 1, Lançamento 2. “Eu lembro que era o Lançamento 6, que pra mim, pro Betinho e pros caras dessa época, era um clássico porque apareceu tudo de uma vez. Tipo o Kaaos, Rattus, Terveet Kädet, Lama, então a gente ficava: ‘caralho, de onde que é essa porra!’. A gente não tinha informação: ‘que porra de língua é essa que esse cara tá cantando?’.”
De fato a estranheza aproximou as primeiras bandas daqui com as de lá e, se para nós o fator da língua já era algo bem interessante, para eles também. O Força Macabra, da Finlândia, é um belo exemplo da curiosidade e intercâmbio linguístico que rolaram entre os países. Formado em 91, o Força Macabra é uma banda que canta em português. Isso mesmo, uma banda da Finlândia que canta na nossa língua. Inicialmente eles tocavam punk/hardcore e hoje em dia caíram mais pro lado do crossover, e sempre citaram como influências algumas bandas brasileiras dos anos 80 como Armagedom, Lobotomia, Ratos de Porão, Dorsal Atlântica, MX, Anthares, Chakal e Sarcófago.
A globalização e a aceleração da informação foram duas coisas bem positivas pra quem tinha sede de conhecer e ouvir coisas novas. Mas ao mesmo tempo que saciaram a nossa curiosidade em pesquisar e ir atrás para descobrir o que acontecia do outro lado do mundo, também parecem ter, de certa forma, arrancado o caráter contestador do punk que antes, por aqui e lá, era um ato político de postura e luta por ideias e ideais. De uns bons anos pra cá, é algo mais visual e pouco ameaçador. Sem afronta. Mas o velho Punk’s Not Dead ainda vale de lema. Hoje, algumas bandas ainda têm a energia, a ideologia e a resistência para manter viva a alma daquele punk/hardcore feito no início dos anos 80.
O importante é que a bandeira do punk ainda carrega princípios que, por mais que a idade chegue e o mundo se globalize, não vão perder jamais a força de combater e acreditar em algo que faça nosso coração bater acelerado ao som de riffs diretos e ávidos gritos.
Leia também:
HC Escandinávia – Parte 2
HC Escandinávia – Parte 3