Quando deixamos o festival Rock Station na noite fria e cheia de garoa do último domingo (5), lá no Espaço das Américas, a pergunta que mais parecia ressoar era “o que faz um festival de música ser foda de tão bom?”. Porque parecia que a gente tinha acabado de viver a resposta pra ela.
Em um festival incrível – na nossa concepção, claro, pois isso é bem subjetivo – você tem a oportunidade de ver um medalhão (Bad Religion) tocando e comprovando por que ele ostenta este rótulo tão nobre; de finalmente cantar músicas sensacionais que há décadas você só cantava no seu quarto (Pegboy); de sentir muito orgulho da fúria musical de certos brasileiros (Dead Fish); de relembrar por que melodias são tão cativantes e combustíveis no punk rock (Samiam) e de conhecer, da maneira mais legal possível, uma banda de que você nunca tinha ouvido falar (Teenage Bottlerocket).
À parte esses motivos pessoais, tem coisa que é unânime na hora de reconhecer que um festival foi muito bom. Como organização na entrada e nas filas dos caixas, limpeza do chão e dos banheiros a todo momento, muitos seguranças e funcionários espalhados pela casa, fácil acesso (metrô Barra Funda) e pontualidade nos shows – no Bad Religion, o atraso foi de menos de 10 minutos, só para terem ideia do tipo de exceção de que estamos falando. Outro ponto a favor foi o valor dos ingressos para 5 atrações, sendo 4 delas internacionais – a pista mais cara era de R$ 160. Barato certamente não é, porém é acessível se pensarmos que se paga R$ 32 para assistir cada banda.
Mas tem uma ressalva importante. Num festival de punk rock, você espera ouvir uma massa sonora encorpada e poderosa, bem alta, com guitarras, baixo e bateria em comunhão. E a técnica de áudio está ali para garantir que a experiência explosiva do palco chegue aos nossos ouvidos com a mesma intensidade – daí a importância gigantesca de as bandas passarem o som antes dos shows. Só que algo se perdeu na mesa de som. Difícil não perceber um Samiam se apagando no palco, com vigor caindo progressivamente, ainda mais se considerarmos que eles são mais cancioneiros e sem entradas tão rápidas quanto o Teenage Bottlerocket. No Pegboy, as três primeiras músicas padeceram de ausência do som da guitarra e do baixo e de uma bateria que parecia pipocar. Mas a partir da quarta música a regulagem estava à altura da potência impetuosa do quarteto de Chicago. Ainda que a entrada do Dead Fish tenha sido com bateria abafada e guitarra tímida, todo o restante foi um atropelo sonoro de primeiríssima, culminando no som redondinho e robusto extraído da apresentação do Bad Religion.
Às 15h30, o Teenage Bottlerocket, que é de Wyoming, subiu ao palco para entregar influências californianas no seu punk rock melódico ensolarado. O baixista Ray Carlisle e o guitarrista Kody Templeman revezam os vocais, mas as sutilezas de Templeman soaram como melhor companhia aos arranjos, pelo menos ao vivo. Não houve arrebatamento de carisma sonoro, mas eles visivelmente estavam cheios de energia no palco e satisfeitos por tocarem no Brasil. A empolgação se refletiu bastante na plateia durante as primeiras músicas. Foi um bom começo para o Rock Station.
A experiência seguinte, com o Samiam, fez um certo degrau na energia. A banda é bastante querida do público brasileiro, as letras capturaram uma solidão universal e as melodias e refrãos confessionais marcaram a adolescência de muita gente. Portanto, era esperada uma certa catarse quando eles subissem ao palco. Mas nem mesmo clássicos adorados como “She Found You” e “Full On” arrancaram a emoção esperada de que os assistia. Pouco a pouco, as músicas iam chegando com vibração mais tímida, e em se tratando de algo tão vivo quanto um show e a relação com sua plateia, não seria estranho que a banda tivesse sido contaminada pelo desânimo. Apatia do público? Som que não chega à plateia por motivos técnicos?
Público apático ou mais blasé não costuma ser uma realidade de shows de punk rock. Mas talvez a diferenciação entre pista simples e pista premium (o que não faz sentido nenhum no hardcore) acabe forçando os fãs ardorosos a ficarem longe de seus ídolos por motivos financeiros, o que é lamentável. A maior empolgação quase sempre vem da pista simples, que certamente se esbaldaria se pudesse estar colada na grade. Nosso palpite é que o show do Samiam teria mais receptividade se o som do palco não tivesse sofrido as perdas que mencionamos antes e se os fãs pudessem ficar mais perto.
Por outro lado, quando o Pegboy entrou, possivelmente era uma banda desconhecida de muita gente no festival. O quarteto é de Chicago, uma cidade que não é lembrada quando se fala de punk – o Rise Against é uma exceção atual, mas mesmo na época mais emblemática do gênero, nos anos 80, poucos se destacavam, como o lirismo necessariamente ácido do Articles of Faith e o Naked Raygun com seu punk engajado e nada comprometido com os clichês do gênero. Uma curiosidade: o guitarrista John Haggerty saiu do Naked para formar o Pegboy, que presenteou a década de 90 com quatro EPS e três discos fenomenais. Se ao ouvi-los você sentir uma certa sensação de obscuridade alternativa, bingo: a banda é parte significativa do grande legado da Touch & Go Records, conhecida por tesouros do noise rock e do alternativo. O primeiro lançamento da Quartestick Records, um braço da gravadora Touch & Go, é a estreia do Pegboy em EP, Three-Chord Monte.
Esperado por alguns, mas ovacionado por milhares. No domingo o Pegboy foi conquistando um a um com seu carisma e som inflamado. Larry Damore, o vocalista, fazia piadas com o próprio cansaço – “na próxima música eu preciso tocar guitarra – fan-fucking-tastic!” – e o contornava com muita interação com o público: desceu mais de uma vez para cumprimentar as pessoas, surfou sobre a galera, cantou bem perto da grade, sentou e deitou no palco. Estava se sentindo em casa. John Haggerty se divertia com a reação do público, enquanto seu irmão Joe Haggerty e Mike Thompson faziam estardalhaço na cozinha. “Strong Reaction”, “Field of Darkness” e o excepcional cover de “That’s When I Reach for My Revolver”, do Mission of Burma, imprimiram a marca de uma noite inesquecível.
Quando as cortinas se abriram para os capixabas do Dead Fish, a pólvora deixada pelo Pegboy dava início a um verdadeiro incêndio. O vocalista Rodrigo preenchia todos os cantos do palco, física e sonoramente, e a banda expurgava sua notória revolta em riffs, linhas e batidas incansáveis. O público cantava junto e pulava sem parar, ostentando certa disposição que os dois velhinhos aqui invejavam. Enquanto “Noite” virou um emocionante coro, “Zero e Um” e “Sonho Médio” reafirmaram os status de hinos ao vivo. Se o objetivo da 89 FM, que comemorava 32 anos com o festival, era mostrar as razões pelas quais o punk rock e o hardcore conquistam corações e mentes, ali estava o Dead Fish ilustrando os argumentos.
Depois o Bad Religion inspirou algumas doses de calmaria, mas temporárias: o quinteto veio frenético, rasgando “Recipe for Hate” em uma alfinetada apropriada para o ódio tão frequentemente incentivado pelas lideranças do Brasil e dos EUA. “Do What You Want”, “Stranger Than Fiction” e “21st Century” tinham a firmeza dos 40 anos de estrada associada à vitalidade de quem acredita que a música pode questionar e quebrar as certezas do mundo. Os caras não são veteranos adorados à toa, e enquanto Greg Graffin continuar apontando caminhos e perguntas necessárias, milhões vão seguir.
Uma curadoria bem pensada é como uma engrenagem que funciona, retroalimentando o próprio ambiente. No caso do Rock Station, as bandas escaladas confirmaram a alegria de se tocar no Brasil, e o investimento em um evento voltado exclusivamente para o culto à música era refletido nas centenas de garotas e garotos comprando camisetas de suas velhas e novas bandas favoritas, relembrando os melhores momentos dos shows e fazendo planos para o festival do ano seguinte.