Vinicius Castro
Toda forma de ruptura jamais comprova sua riqueza e importância sem carregar grandes cicatrizes. Não só aquelas ao alcance dos olhos, mas as que se escondem sob trejeitos, recolhimentos e subjetividades. Algumas grandes obras parecem vir daquele canto mais profundo da alma onde essas cicatrizes se recolhem. Um lugar pouco visitado, mas que uma hora grita e precisa vir à superfície.
Até a gravação de seu quarto disco, Deftones, lançado em 2003, a banda vinha num crescente desenfreado. Adrenaline tinha tudo de que um primeiro disco precisava para acontecer. Juventude, objetividade, letras urgentes e uma necessidade de cavar seu pertencimento.
Around the Fur é uma afirmação e descoberta. Um real chega pra lá na tal maldição do segundo disco. Lindo de ponta a ponta, mostra uma banda mais madura e inteligente, que colocou na mesma página suas origens oitentistas e influências do punk/hardcore feito na costa leste. É como se o Depeche Mode emprestasse sua melancolia ao Bad Brains com uma pitada daquele metal feito nos anos 90. Até hoje Chino Moreno diz ser seu disco preferido. A gente concorda, claro.
Em seu ápice criativo, lançaram White Pony. Melodias pop, peso, técnica, experimentos e uma gravação impecável levaram o Deftones a um patamar mais elevado de reconhecimento popular. Como dissemos, até aqui, o crescimento foi hiperbólico.
Dois anos depois, quando foi lançado, Deftones provocou certa azia na alma de quem não esperava algo tão ríspido. Não era pra menos. Era necessário certo reforço para digerir o peso desse disco, algo que a banda ainda não tinha explorado. E quando digo peso, não é só nas músicas, mas também na vibe. Deftones é um disco “pra dentro” em todos os sentidos e isso salta, grita.
É importante lembrar que, muitas vezes, um grande álbum pode não exercer grande impacto logo de cara. Ele precisa ser descoberto nas entrelinhas, entendido, devorado vorazmente e, principalmente, contextualizado. Diferente da clareza que seus predecessores traziam, esse é, por uma conjunção de fatores, um disco emocionalmente dark e talvez ousado demais para o seu momento.
Em termos de contexto interno, Chino, já no White Pony, tinha começado a compor não só as letras, mas também algumas linhas e riffs de guitarra, o que causou um certo desconforto em Stephen Carpenter. Chino chegou a contar que, no início das composições de White Pony, Stephen não estava sendo tão produtivo quanto ele gostaria; desta forma, o vocalista pegou a guitarra e começou a escrever algumas coisas. Com o tempo isso foi virando uma constante.
Ainda sobre o cenário que gerou o quarto disco, Chino, que hoje fala abertamente sobre isso, estava em uma relação perigosa com as drogas na época de composição.
Ele chegou a dizer à revista inglesa Kerrang que durante a gravação estava consumindo algumas drogas e que nesses momentos sentia sua criatividade diminuir, e isso era o seu maior medo. Sobre o assunto, em uma outra entrevista, dessa vez ao site argentino Rock, ele conta que reconhece qual era o problema: “Eu não acreditava em mim. Compunha, mas não acreditava em nada que fazia, nem achava que fosse bom. Tudo o que eu criava parecia horrível e não tinha ninguém para me dizer se as músicas eram boas ou não. Foi um período muito ruim”.
Ainda sobre o assunto, ao Louder Sound ele diz: “Você chega a uma idade e vê que tudo foi fácil porque eu não prestei atenção em nada… Eu simplesmente fugi e culpei todo mundo ao invés de olhar para mim mesmo. Então tive que lentamente aprender a me responsabilizar por mim mesmo… Nós éramos muito disfuncionais”. E se a vida imita a arte, dá pra dizer que Deftones, o álbum, é tão disfuncional quanto o momento em que ele foi concebido.
Essa foi também uma fase em que ele enfrentou alguns problemas na voz. O abuso do substâncias desandou o vocal de Chino, fato que parte do público pôde constatar em shows da época.
Chino ainda completou dizendo que tudo isso precisa ser interpretado como um aprendizado: “…honestamente eu não tenho muitos arrependimentos. Mesmo que tenha sido foda, muitas vezes eu me diverti muito. E isso me fez ser quem eu sou hoje. Se eu nunca tivesse tentado nada e nunca tivesse tido essa experiência, quem diria onde eu estaria sentado agora?”
Depois do sucesso de White Pony, que foi quando começou toda essa loucura em que eles mergulharam, em Deftones a banda vivia dentro e fora dos palcos toda a rebordosa que o disco transmite. Além disso, eles também partiram em busca de um caminho diferente do que eles mesmos haviam desenhado até ali.
A princípio o disco se chamaria Lovers, nome de uma música que saiu junto com o single de “Hexagram”, e aí está o ponto que envelopa esse grande registro. É um disco de amor em sua condição mais cinza e amarga. Um amor que demorou dois anos para se concretizar. O dobro de White Pony.
A faixa que abre o disco anuncia uma mudança na forma como sempre inauguravam seus predecessores: “Bored” (Adrenaline), “My Own Summer” (Around the Fur) e “Feiticeira” (White Pony). Todas elas eram grandiosas. Mas “Hexagram” não tem a mesma disposição, ainda que seja também grandiosa à sua maneira. É uma faixa desesperada. É agressiva sonoramente, e funciona quase como um grito por mudança baseado em andamentos abrasivos.
Paint the streets in white!
Death is the standard
Breach for a complex prize!
As letras de Chino nunca foram literais e, num disco como esse, mais do que nunca era preciso mergulhar no sentimento que ele queria transmitir. Na estrofe destacada há pouco, o desejo de mudança soa imediato. Estruturalmente, nas primeiras audições, “Hexagram” me parecia conectada à “Rickets”, do Around The Fur.
“Hexagram” também apresenta parte da estética que o Deftones assumiria dali pra frente, resultado do namoro de Stephen com as guitarras de sete e oito cordas, iniciado depois da gravação de White Pony e que foi, em parte, influência dos suecos do Meshuggah.
You’re a star
You blaze
Out like a sharp machine
Like a whale’s moan
“Needles and Pins” mantém o foco nas relações desconfortáveis alinhadas a um riff lindo em que Stephan consegue traduzir um mal-estar em looping. Nela, além de uma linda linha de baixo, Chi Cheng também empresta seus berros, nos lembrando a falta que ele faz e como ele era uma peça importantíssima na banda.
“Minerva” é um hit forte, baseado em acordes dissonantes de guitarra que criam uma atmosfera densa. É o Deftones trazendo o shoegaze para o metal, o que funcionou muito bem. São camadas e mais camadas de guitarra captadas. Stephen e Chino chegaram a citar o Hum como referência para um tipo de som de guitarra com cara de anos 90 e em “Minerva” isso fica bem evidente.
Em “Minerva é importante destacara também a participação de Frank Delgado e seus synths que criam uma cama de distorção e ambiências que cooperam com o clima shoegaze da faixa. Uma resenha da época dizia que o single era um ato promovido pelo encontro das características do Deftones com a fase Siamese Dream, do Smashing Pumpkins.
Na sequência, “Good Morning Beautiful” e “Deathblow” são ótimas. A primeira é mais quebrada. Um trabalho lindo do baterista Abe Cunningham, que desde White Pony parecia buscar um groove que ganha força no disco homônimo. Já “Deathblow” parece uma roda viva angustiante que se intensifica ainda mais depois dos três minutos.
Uma das melhores, não só do disco, mas da discografia da banda, “When Gilrs Telephone Boys” é uma boa amostra de que uma música pode ser pesada, esporrenta e ainda assim, extremamente emocional. É sem descanso ou alterações de andamento. Ela vem, se instala, evolui, cresce um pouco mais, te rouba o ar e vai embora, depois de seus quase cinco minutos de tensão que parecem ilustrar uma vida enjaulada aos gritos de I hope we never do meet again.
“Battle-axe” tem um dos riffs mais legais do disco. Uma equalização bem dosada entre peso e groove. Já “Lucky You” remonta o experimentalismo iniciado com “Teenager”, em White Pony e traz a colaboração do DJ Crook (Team Sleep) e Rey Osburn, vocal de algumas bandas, entre elas, o Ghostride que também contava com uma galera do incrível Will Haven.
Sob acordes dissonantes, “Bloody Cape” explode. A chamada de guitarra (meio “Be Quite and Drive”?) acomoda uma intensidade que desmorona do início ao fim. E entre muito peso e melodia, “Bloody Cape” se aproxima da urgência dos primeiros discos da banda.
Em um espaço que parece que nunca será novamente ocupado, a marcha solene de “Anniversary Of An Uninteresting Event” pega pesado:
On the waves you make for us
But not since you left have the waves come
The bar is dead
And the rockets rain is keeping you wet in your deathbed.
E assim, depois dela, “Moana” acena para Saturday Night Wrist, que seria lançado três anos depois. Há quem diga que, assim como em “Hexagram”, existe um teor político em ambas as letras, mas a gente não acredita muito nisso. Nessa dinâmica um pouco mais ensolarada, digamos, do que o resto das faixas, o quarto disco do Deftones se despede.
Uma das edições lançadas em CD trazia um mini documentário da gravação e outros cinco vídeos, cada um sobre um dos integrantes da banda. Vale muito a pena assistir.
É algo bem difícil ser o sucessor de um sucesso gigante como White Pony, mas Deftones é uma parte essencial na carreira da banda. Um disco que carrega um climão de músicas lado B e pede uma aproximação desarmada.
A revista Spin escreveu que “em seu quarto álbum, o Deftones está triste… Os fãs comentam bastante sobre a obsessão de Chino pelos Smiths, mas Deftones não se parece como The Queen Is Dead (disco do Smiths). Ele parece soar como alguém que está ouvindo The Queen Is Dead enquanto se corta com um clipe de papel”.
Ao vivo, a banda não costuma tocar um grande número de músicas desse álbum, assim como as de Saturday Night Wrist. Segundo Chino, “Elas são do nosso período mais sombrio”.
Aos berros, em “Hexagram”, a morte é um padrão. O fim necessário para que possamos seguir. O subestimado Deftones é um chamado de quem precisava expurgar algumas dores, seguir com algumas cicatrizes e isso não tende a ser palatável como um refrão radiofônico.
O quarto disco do Deftones é como um desatar de nós onde os “nós” eram eles mesmos dispostos a entregar suas angústias. Por isso ele é tão especial. Porque ele é pessoal. São como marcas da vida, esse caminho sinuoso que conta a história de cada um de nós.