Vinicius Castro
De tempos em tempos, novas descobertas parecem funcionar como um lembrete de o quanto é lindo estarmos totalmente despreparados para o inédito. Só assim há espaço para o encanto, o entendimento, a troca. Só assim há espaço para o que é de fato novo.
Descobrir os “porquês” que envolvem um disco é emocionante. Seus meandros, detalhes, casos, acasos, e a vida que brota de cada música pode ir muito além das próprias músicas. A beleza mora nos detalhes que precisam ser abraçados, desejados, cultivados.
Quando foi lançado, Every Red Heart Shines Toward the Red Sun era mais um entre tantos outros discos de post rock instrumental que chegavam naquele momento, mas o segundo registro do Red Sparowes tinha uma emoção diferente.
Com a entrada de Greg Burns (baixo, guitarra e pedal steel), a banda formada por David Clifford (bateria), Josh Graham (guitarra), Bryant Clifford Meyer (guitarra, synth e piano), e Andy Arahood (guitarra), aprimorou o que havia feito pouco antes em At the Soundless Dawn (2005), ou seja, alta carga de emoção e um passeio por dinâmicas sofisticadas e livres.
Diferente de contemporâneos que ficaram até mais conhecidos, como Explosions in the Sky, Pelican ou Russian Circles, a música do Red Sparowes se aproveita um pouco mais do progressivo do Pink Floyd e do clímax inspirado em nomes como Mogwai.
Every Red Heart… é baseado na história do Grande Salto chinês, em 1958, quando Mao Tse Tung e o Partido Comunista traçaram um plano de desenvolvimento acelerado para que o país viesse a se tornar uma nação altamente desenvolvida.
No papel, um plano ousado. Fora dele, uma tragédia de dimensões estratosféricas.
Um dos pilares desse planejamento atendia pelo nome de Campanha das Quatro Pestes, que pretendia exterminar ratos, moscas, mosquitos e pardais (em inglês, sparrows) – parte do nome da banda.
Mao Tse Tung dizia que cada pardal que ciscava pelas plantações do país consumia por volta de 4 quilos de grãos por ano.
A solução? Os chineses foram convocados por Mao para ir às ruas caçarem pardais. Seus ninhos foram destruídos, ovos quebrados e os filhotes mortos.
Segundo um artigo do Estado de S. Paulo, há relatos de pardais que morreram de cansaço. Com medo, muitas aves não pousavam e voavam até caírem do céu, cansadas. Uma chuva de pardais. Os que sobreviviam, tinham ali, em poucos segundos, seu destino ceifado por pessoas cegas, surdas e mudas na defesa das palavras de seu “líder” – entre longas aspas.
Na parte interna da capa de Every Red Heart… há três menções a frases ditas por grandes pensadores; entre elas, uma de George Bernard Shaw que diz: The art of government is the organization of idolatry (A arte do governo é a organização da idolatria). Frase que diz muito sobre o fato, mas também traduz os dias de hoje.
E a tragédia não parou por aí. Além dos grãos, os pardais também se alimentam de insetos. Com a morte das aves, os gafanhotos se multiplicaram e destruíram plantações. Com isso, parte do povo ficou sem ter o que comer. Alguns números apontam para a morte de quase 50 milhões de chineses. Mataram pardais e morreram de fome.
O Red Sparowes é uma banda com convicções que vão além da música, e Every Red Heart… é um registro que reforça isso de forma sensível.
Conhecer a razão que envolve o disco faz com que as músicas assumam um papel de trilha imagética perfeita. No batismo, não são somente títulos longos. Do primeiro ao último, juntos, os nomes das músicas montam um curto texto que contextualiza o ouvinte e contam uma história. Dá até pra dizer que Every Red Heart… é um peça, como a de um teatro, dividida em oito atos.
1- “The Great Leap Forward Poured Down Upon Us One Day Like a Mighty Storm, Suddenly and Furiously Blinding Our Senses.” (O Grande Salto caiu sobre nós um dia como uma poderosa tempestade, repentina e furiosamente cegando nossos sentidos)
2 – “We Stood Transfixed in Blank Devotion as Our Leader Spoke to Us, Looking Down on Our Mute Faces with a Great, Raging, and Unseeing Eye.”
(Ficamos hipnotizados em uma devoção vazia enquanto nosso líder falava conosco, mirando diretamente nossos rostos emudecidos com seu olho grande, furioso e cego)
3 – “Like the Howling Glory of the Darkest Winds, This Voice Was Thunderous and the Words Holy, Tangling Their Way Around Our Hearts and Clutching Our Innocent Awe.” (Como a glória uivante dos ventos mais sombrios, sua voz era trovejante e as palavras, sagradas, envolvendo nossos corações e abraçando nossa inocente admiração)
4 -“A Message of Avarice Rained Down and Carried Us Away into False Dreams of Endless Riches.” (Uma mensagem de avareza caiu sobre nossas cabeças e nos levou para longe em falsos sonhos de riquezas sem fim)
5 – “Annihilate the Sparrow, That Stealer of Seed, and Our Harvests Will Abound; We Will Watch Our Wealth Flood In.” (Elimine o pardal, este ladrão de sementes, e nossas colheitas serão abundantes. Assistiremos à riqueza nos inundando)
6 – “And by Our Own Hand Did Every Last Bird Lie Silent in Their Puddles, the Air Barren of Song as the Clouds Drifted Away. For Killing Their Greatest Enemy, the Locusts Noisily Thanked Us and Turned Their Jaws Toward Our Crops, Swallowing Our Greed Whole.” (E, por nossas próprias mãos, todos os últimos pássaros se deitaram em silêncio em suas poças, o ar árido de Song quando as nuvens se afastaram. Por matarmos seu maior inimigo, os gafanhotos ruidosamente nos agradeceram e viraram suas mandíbulas em direção às nossas colheitas, engolindo toda nossa ganância)
7 – “Millions Starved and We Became Skinnier and Skinnier, While Our Leaders Became Fatter and Fatter.” (Milhões de pessoas morreram de fome e ficamos extremamente magros enquanto nossos líderes se tornaram mais gordos)
8 – “Finally, as That Blazing Sun Shone Down Upon Us, Did We Know That True Enemy Was the Voice of Blind Idolatry; and Only Then Did We Begin to Think for Ourselves.” (Finalmente, como aquele sol escaldante que brilhou sobre nós, sabíamos que o verdadeiro inimigo era a voz da idolatria cega; e só aí então começamos a pensar por nós mesmos)
Em seu silêncio verbal, Every Red Heart… se traduz por meio de uma outra linguagem. Tem o peso, as camadas e as texturas que parecem estar sempre na frequência necessária para que a gente entre na viagem a que se propõe.
Como os títulos, as músicas também são longas viagens por largas paisagens; mas, ainda assim, de tamanho insuficiente para ilustrar tanta dor e descaso com a vida de milhões de pessoas que morreram naquele período.
Every Red Heart… diz muito sobre o nosso desequilíbrio. Sobre não questionarmos o que nos é imposto, a crença nas palavras de ditadores e a cegueira epidêmica que causa um mal muitas vezes irreversível. Mas talvez ainda haja tempo. Para admirar esse disco, mergulhar em seus significados e para não morrermos pela crença em falsos líderes.