Vinicius Castro
“Esse som é muito gringo!” Na distante década de 80, essa era uma forma comum e elogiosa de fazer referência a um disco, música ou banda. A variação do tal “elogio” também era frequente: “Isso não fica devendo em nada para os gringos”. Devendo? O “ser gringo” nos colocava em um lugar de ter que provar algo, como se não soássemos bons o suficiente. Era assim, na régua do “parecer gringo”, que a qualidade do metal feito por aqui parecia buscar força para se firmar.
Schizophrenia (1987), do Sepultura; Theatre of Fate (1989), do Viper; e Pay For your Lies (1989), do Korzus, foram registros que ajudaram na transformação do “esse som é muito gringo” para algo como “esse som também pode ser muito nosso”.
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Mas a qualidade dos discos feitos por aqui foi construída ao longo do tempo. Os estúdios estavam se desenvolvendo em relação à música pesada. As produções não eram das melhores e o desconhecimento dos equipamentos também era um fato. Em alguns casos, e não há exagero nisso, alguns técnicos de áudio mal entendiam o funcionamento de um pedal de distorção. Mas tudo isso nunca foi obstáculo para impedir o ímpeto das bandas em gravarem suas demos e discos, em organizarem seus shows e consequentemente fincarem seus nomes na história da nossa música.
Como parte da cena mineira de nomes como Sepultura, Sarcófago, Holocausto e Chakal, Into the Strange (1988), do Mutilator, também foi importante no estabelecimento qualitativo do metal feito no Brasil.
O segundo disco dos mineiros é muito menos celebrado do que merece. Foi um salto e tanto de técnica se comparado ao que víamos e ouvíamos por aqui naquele tempo. Ainda que a fúria contida no clássico Warfare Noise I seja irretocável e Immortal Force também tenha suas qualidades, em Into the Strange a coisa ganhou tintas mais nobres.
É um autêntico disco de thrash metal. E isso é algo curioso de puxar na memória, já que o Brasil foi berço de uma rápida explosão de bandas de death/thrash. Porém, na sonoridade clássica do thrash, a coisa foi ganhando musculatura gradativamente.
Entre as mais conhecidas, o Anthares e os já citados Sepultura e Korzus fizeram bonito. Pelo subterrâneo, o Apoleon e o Brainwash eram ótimos, mas não chegaram a gravar discos. Já na virada da década de 80 para 90, Acid Storm, Hammerhead, Leviaethan e Attomica (da fase Disturbing the Noise) são alguns nomes que ganharam atenção no cenário, eram autênticos “thrashers”.
Além do som, Into the Strange trazia outra novidade. A formação estava diferente de Warfare Noise I e Immortal Force. O guitarrista Alexander “Magoo” assumiu também o vocal e para a outra guitarra a banda trouxe C.M. Já na bateria e baixo estavam Armando Sampaio (ex-Holocausto) e Kleber, respectivamente.
Gravadas e mixadas no JG Studios, em Belo Horizonte, as músicas do disco justificam a aura de clássico. De início, e já assustando quem esperava por algo mais sujo, “Raise the Strange” e “Vanishing in the Haze” mostram que houve ali um certo polimento. Não era o Mutilator “à moda antiga”, mas a essência ainda estava lá. “Lost Words” conversa com algo de Possessed (fase Beyond the Gates) e algumas estruturas do já citado Schizophrenia (principalmente lá pelos 2:30). A forma de Magoo dividir as estrofes e encaixar os vocais lembra um pouco o que o Max Cavalera fazia naquela fase do Sepultura.
“Lost Words” e “Fighting in the Past” são aulas de como conseguir, de forma criativa, variações sobre o mesmo andamento. Duas músicas que, caso tivessem ganhado o mundo, sem dúvida alguma fariam companhia aos grandes clássicos do estilo. Na faixa-título os solos ganham destaque. Cheios de alavancadas dissonantes, são a confirmação do trajeto escolhido pelo Mutilator daqueles tempos, algo à la Testament e Anthrax dos primeiros discos.
É importante lembrar que aquele era um período em que bandas de thrash incluíam faixas instrumentais em seus registros. O Metallica, com “The Call of Ktulu”, e o Testament, com “Confusion Fusion”, são dois bons exemplos. O Mutilator não ficou de fora. “Five Minutes Beyond the Walls” mostra que a banda estava atenta ao que vinha da Bay Area, na Califórnia, e de uma forma muito natural, sem qualquer exagero. Ao final, é de “A Place to Go” a função de finalizar o nosso clássico de uma forma impecável.
Pra gente não importam os números ou as métricas de venda. Ao final, o que conta mesmo, é a sua relação com discos que se tornam, por algum motivo, o seu clássico. Into the Strange é um desses casos. Está lá, entre os grandes. E cada audição faz com que o tempo pareça ter passado depressa demais para o Mutilator.