DESCENDENTS Tropical Butantã - 2 de dezembro de 2016

In Bandas, Shows

Fotos: Sounds Like Us

Amanda Mont’Alvão

Quando o Descendents pisou no palco do Tropical Butantã, em São Paulo, na noite de 2 de dezembro, pelo menos 30 anos de expectativa eram finalmente transformados em realidade. O Brasil tem dessas coisas: por ser fora da rota de muitas turnês, devido à distância, acaba acumulando uma longa espera por bandas que fizeram parte da trilha sonora de muita molecada. A espera é quase vivida como dívida, e o dia do pagamento é uma grande catarse retroativa. Foi assim com o Dinosaur Jr, em 2010, e com Grant Hart e Bob Mould, que vieram separadamente em 2013 e nos inflamaram com o legado indiscutível do Hüsker Dü. Foi assim também com o Descendents, esperados desde que Milo Goes to College, de 1982, detonou pulsão de vida em muita gente com suas músicas cheias de energia juvenil.

DescendentsA banda veio à América Latina pela primeira vez por conta do álbum Hypercaffium Spazzinate, lançado este ano pela Epitaph. Não bastasse a ansiedade pelos clássicos da discografia, como “Bikeage”, “Silly Girl”, “Hope”, “Suburban Home”, “Everything Sucks”, “Coffee Mug”, “When I Get Old”, “Clean Sheets”, “I’m the One” – todos estes estavam no show, para nossa integral combustão e recebidos como presente de Natal pelo público –, as músicas do disco novo, como “On Paper”, “Shameless Halo”, “Victim of Me”, e “Smile”, traziam uma emoção renovada e acolhida com o entusiasmo de quem se deslumbra com a banda como se fosse a primeira vez.

Descendents
O disco novo tem status de confirmação. É o primeiro material inédito em 12 anos, e o que se ouve são novos e vigorosos desdobramentos das inúmeras qualidades do Descendents, como o espírito desafiador da juventude, as melodias afiadíssimas, os refrãos balanceadamente adocicados e explosivos, o impulso e o senso de comunidade do hardcore, as letras diretas que falam de particularidades sentidas como universais e as mensagens incisivas do punk, expressas por meio da rejeição à inércia ou ao conformismo.

Há tempos que o Descendents mostrou ser consciente de que a potencialidade radiofônica de suas músicas não é uma ameaça à integridade ou um flerte com a predatória indústria musical. Ter se popularizado não comprometeu sua independência criativa e sua vivência como banda de amigos que querem fazer um som juntos. Não houve medo de compor e viver o som de que se gosta porque a banda sempre pareceu mais interessada em desbravamentos pessoais, e não nos efeitos que poderia provocar no público.

DescendentsEfeitos são consequência, e o público, ao longo dos anos, foi construindo uma relação de muito respeito e admiração pela banda e pela honestidade com que trata a música. Não há publicidade ou oba-oba que dê conta de alimentar a confiança construída entre o Descendents e seus fãs e admiradores ao longo do tempo. Com isso, o que se viu ontem no show foi uma poderosa experiência de troca, bastante simbólica considerando que a intolerância à diferença tem dado o tom em 2016. Seja nas redes sociais ou nos contatos pessoais, o diálogo com o diferente parece impossível, ou muito difícil. Mas ali, durante aquelas quase duas horas de apresentação, aquelas centenas de pessoas diferentes entre si conviveram e compartilharam emoções.

Descendents
Do palco, Milo Aukerman, Bill Stevenson, Stephen Egerton e Karl Alvarez contavam uma história de permanência, escrita com o cuidado do tempo. Milo Goes to College já denunciava as intenções acadêmicas do vocalista, que acabou se tornando emblema da banda por causa da ilustração. O documentário Filmage, de 2013, mostra as várias vezes em que ele sai da banda para fazer sua formação. E quando ele voltava, as portas estavam abertas como tinham sido deixadas. A permanência, portanto, se assentou mesmo na distância. E na hora de tocarem juntos, como pudemos ver, os olhares entre cada um deles era de comunhão. As músicas que tocavam, compostas coletivamente, eram comunhão. No bis com “Spineless and Scarlet Red”, “Sour Grapes” e “Catalina”, o sentimento de despedida também era comungado.

DescendentsNo dezembro brasileiro que pedia luto e pausa – dois temas sabiamente explorados na letra de “Feel This”, também tocada no bis – o Descendents foi uma inspiração real e emocionante. E na contramão de qualquer tendência ao cinismo e à desintegração, a mensagem de “Without Love” chega como um lembrete necessário de que a música é um ritual que agrega, uma reunião das nossas melhores expectativas em uma vida que passa a cada dia: Life won’t wait for us /And love won’t heal itself / Let’s find our way /Another day goes by /We can’t live like this anymore /Can’t live without love.