Cólera Os 30 anos de 'Pela Paz em Todo Mundo'

In Discos, Especiais

O acolhimento, o pertencimento e o encontro como uma perspectiva de vida que fala diretamente sobre suas angústias, anseios, lutas e crenças. Por ser simples, o instrumental é inclusivo. Basta querer, pegar um instrumento, ir lá e fazer. O punk é como um encontro com aquilo que você procurou durante toda a sua vida, mas não sabia o nome, a forma que tinha ou de onde vinha. Se em seu primeiro contato com o punk você sentiu que aquilo era algo feito pra você, sim, você tem o espírito punk.

Hoje clássicos, alguns discos que nos foram apresentados despertaram esse sentimento único. Fresh Fruit for Rotting Vegetables, do Dead Kennedys, o disco de estreia do Ramones, do Bad Brains e do Minor Threat, e Hear Nothing See Nothing Say Nothing, do Discharge; o Let’s Start A War, do Exploited, e o Damaged, do Black Flag.

No Brasil, maravilhas do punk sacudiram a zona de conforto intelectual, cultural e musical de muita gente que sentiu aquela emoção citada há pouco. Entre elas estavam as coletâneas SUB, Ataque Sonoro e Grito Suburbano; o visionário O Futuro é Vórtex, do Replicantes; a poesia áspera de Pânico em SP,  do Inocentes; o retrato do subúrbio operário em Pior que Antes, do Garotos Podres; o importantíssimo e divisor de águas Crucificados Pelo Sistema, do Ratos de Porão; o barulhento e intransigente Botas, Fuzis e Capacetes, do Olho Seco; e o não tão sujo, mas igualmente importante O Concreto Já Rachou, do Plebe Rude. Junto de todos esses, e presença garantida entre as prediletas da casa estava o Cólera, banda formada em 1979 por Pierre (bateria), Val (baixo) e Redson (guitarra/voz), que usava o microfone para pregar a paz, a ecologia e a diversidade.

Ainda em 85, na época do lançamento da coletânea Ataque Sonoro, o Cólera já ganhava destaque com letras inteligentes e conteúdo rico. “Vira-Latas” era cantada aos gritos, combinada ao semblante sonhador naquelas situações em que você bola todo um filme ou clipe imaginário enquanto caminha pelas ruas.

Olhe pra essa agressão
Palavras malditas e o ódio na mão
Olhe pra aquele coitado
Pedindo desculpas e sendo socado
Olhe a justiça caída, deixada de lado os gritos de dor, olhe os atos selvagens e como ataca maldito agressor
Para que brigar, impor
Ganhar brutalmente, para quê?
Isso é primitivo e só prova o quanto idiota é você
Pra quê? Pra quê? Pra quê brigar?
Olhe os vira-latas se mordendo porque eles não sabem conversar
Mas você não é mudo e nem é burro mas parece, só não quer encarar.

Uma lição de coletividade, cidadania e um exercício em olhar para o lado e enxergar a miséria que frequentava nosso dia a dia.

O Cólera tinha um discurso mais amplo, profundo, e toda a qualidade de Tente Mudar o Amanhã, primeiro álbum da banda, ganhou ainda mais força e voracidade com o lançamento de Pela Paz em Todo Mundo, álbum que vendeu cerca de 80 mil cópias na época de seu lançamento. É um número considerável de pessoas que foram atingidas pela mensagem da banda e que, de alguma forma, tiveram sua vida mudada pelo punk e pela poesia urgente de Redson. Entre elas, pensadores, sujeitos comuns que trafegavam no dia a dia como desconhecidos, mas que se sentiam pertencentes a algo maior quando ouviam as letras da banda, e até músicos de outras bandas, como Renato Russo e sua famosa dedicatória a Redson ao cantar a música “Canção do Senhor da Guerra” em um show do Legião Urbana.

A abrangência e o impacto sintomático do Cólera foram bem longe, romperam uma porção de fronteiras e fizeram com que toda uma geração seguisse com os punhos em riste rasgando no ar, rasgando no ar!!! Então, convidamos pessoas que tiveram suas vidas atingidas de alguma forma pela força desse disco. A ideia é saber um pouco mais sobre a relação de cada um com esse clássico do punk e da música mundial. É o nosso jeito de homenagear esse grande registro e essa importantíssima banda. Viva Redson, viva o Cólera, viva o punk!

Cólera pela paz em todo mundo

Uma das minhas maiores glórias como crooner foi ter dividido o palco com o saudoso Redson em duas ocasiões especialíssimas. Para a primeira delas – um evento chamado Rock 40 Graus, organizado pelo Clemente Nascimento no Sesc Santo André, em São Paulo, no verão de 2009 -, houve, do ponto de vista emocional, um ensaio de proporções épicas. Afinal, me vi no estúdio do Mingau (ex-Ratos de Porão) em companhia, além dos três já citados, de Ari Baltazar (Fogo Cruzado e 365) e Alonso. O insólito da situação residia na importância daqueles sujeitos na formação do meu caráter: eram alguns dos heróis da adolescência e, àquela altura, meus amigos. A letra de “Garotos do Subúrbio”, dos Inocentes, por exemplo, eu tinha transcrita na contracapa do caderno da quinta série. E o Cólera era destaque contínuo entre as minhas bandas de cabeceira. Na semana do lançamento de Pela Paz em Todo Mundo, em 1986, lá estava eu nas tensas Grandes Galerias para adquirir o álbum. Ao chegar em casa, diante da vitrola, medo, existencialismo de baixa renda, questões trabalhistas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ecologia, paz atuante, entre outros tópicos. Uma profusão de significados. Uma sonoridade robusta e urgente, bem ao modo colérico. Não raro, em momentos pontuais, visito o repertório do disco e me (re)encontro. Sou imensamente agradecido, portanto. E serei sempre.
Rodrigo Carneiro (Mickey Junkies)

Cólera

Posso falar com propriedade que a minha escola musical veio do punk e o Cólera surgiu para mim por meio de uma fita que um amigo de escola gravou. Aquilo foi um tremendo divisor de águas, um verdadeiro tapa na cara, pois foi a primeira vez que eu senti que a mensagem das letras de um disco foi mais importante para mim do que a música em si. Foi a primeira banda que me fez refletir de verdade sobre as situações que vivemos diariamente, inclusive atualmente com essa onda de arrogância, individualismo e conservadorismo burro por que estamos passando. Em 2011, o Desalmado tocou no Punk na Páscoa e o Cólera tocou no último dia do festival. Lembro que fui trocar uma ideia com o Redson naquele dia para, mais uma vez, falar da influência que este disco teve para mim e que era uma honra tocar no mesmo festival em que o Cólera estava. Ele foi extremamente atencioso e me disse que não existia honra maior do que ver a mensagem que eles escreveram há tanto tempo ser retransmitida por meio de outras bandas, e que ele tinha certeza de que esta mensagem ajudaria muita gente. Repito aqui o que eu disse para ele naquele dia: “não só ajudou como ajuda até hoje”. Pela Paz em Todo Mundo é um clássico absoluto e sempre será! Muito obrigado Redson, Pierre e Val! “Somos vivos, mas nascemos sempre que erramos.”
Bruno Teixeira (Desalmado)

Cólera

Acredito que esse foi um dos primeiros discos que me fizeram pensar um pouco mais além do meu quarto fechado com o som no talo durante minha pré adolescência. Aquelas quatro paredes que tanto me protegiam do mundo horrível lá fora perderam a razão de ser, eu não tinha mais MEDO. SOMOS VIVOS, não devemos temer, não nascemos pra GUERREAR, mas se precisar tô dentro! MULTIDÕES de idiotas sempre oprimiram quem não se enquadra no lugar comum da tal HUMANIDADE. Eu era apenas um ADOLESCENTE, mas esses 14 hinos incluídos nesse play me deixaram ALUCINADO, não apenas PELA PAZ em todo o mundo ou pelos DIREITOS HUMANOS, mas porque VIVO NA CIDADE , nunca vou bater CONTINÊNCIA pra puto nenhum, não somos FUNCIONÁRIOS de ninguém, melhor ALTERNAR e ganhar algum por aí, seNÃO FOME!!!
Marcelo Apezzato (Hutt / Diretor dos documentários Guidable, do Ratos de Porão; e Ariel Invasor)

Redson Cólera

Pela Paz em Todo Mundo é um marco na história do punk brasileiro. Meio dos anos 80, bandas americanas e europeias já tinham lançado seus clássicos, e tinha chegado a vez de o Brasil lançar seu álbum cheio dos hinos e melodias mais marcantes na cena punk. O álbum começa com “Medo”, eterno clássico que será escutado para sempre por jovens no mundo todo: são os tambores marcando o começo de tudo ali. Melodia e letra que arrepiam sempre que escutada. A sequência não para e vai melhorando, temas que nunca ficam para trás. A pegada da gravação típica brasileira dessa época, tudo soa junto com as melhores recordações do nosso passado, de quando cada um de nós pegou esse disco pela primeira vez na vida, rolês na galeria do rock aqui de São Paulo e, é claro, todo os shows com aquele clima misto de tensão e alegria no ar. Pra mim é disparado o melhor disco do Cólera. Redson, Pierre e Val estavam bem inspirados e acertaram a mão em cheio na construção dessa obra-prima do punk mundial.
Juninho Sangiorgio (Ratos de Porão / O Inimigo / Insurgência Ópera de Protesto/ Bufo Borealis)

Cólera

Foi com o Cólera, e também com As Mercenárias, Garotos Podres, Olho Seco, Restos de Nada, Condutores de Cadáver e por aí vai, que vivi minha adolescência – sem muito acesso, nem a internet e nem a muitas lojas de disco. Era o disco desse povo que eu ia escutar na banquinha de jornal desativada de um tiozão punk, do lado da estação de trem, que vendia os discos pelo quanto você podia pagar e que se dava folga quando queria. Era uma comemoração quando a banquinha estava aberta.

Quando soube no boca a boca – e nem confirmei depois – que Redson trabalhava numa loja de xerox, foi também a forma de perceber o punk de outro jeito, na rua, comigo na labuta cotidiana, e mais próximo, como se eu mesma fosse tudo o que ouvia na música. Na época, eu também trabalhava em uma xerox e imaginava se Redson usava a máquina da mesma forma que eu ao final do expediente.

Voltando ao tiozão punk da banca de jornal desativada, ele era meu curador de música e foi quem me contou do “Pela paz em todo mundo”. Lembro de eu ter falado algo que costumava dizer quase sempre. Algo como: “Isso não é novidade. Estamos em 97!”. Mas sua resposta padrão era: “Não importa, você vai ouvir isso a vida toda.” Era isso (e foi até hoje): o disco nasce quando a gente se encontra e quando me afeta com sua potência. E esse disco entra na rotina quase 20 anos depois desse primeiro encontro de diversas formas, quando é preciso refletir sobre trabalho, sobre as próximas brechas, sobre o que é e pra quem é a arte, sobre uma vida anarquista. E no meu toca-discos sempre é dia de lançamento, com Redson presente.
Carolina Stella (fotógrafa)

Cólera

O Cólera é uma das grandes bandas do punk mundial e eu tive o prazer e a oportunidade de conhecê-la bem de perto, desde os dias dos primeiros ensaios até hoje. Eu tinha uma banda chamada Condutores de Cadáver e o Cólera fez seu primeiro ensaio, com instrumentos de verdade, ali onde a gente ensaiava, porque eles nem tinham instrumentos ainda. Isso em 1979, e o primeiro show deles , na nossa escola, o ETAL, foi um convite nosso, para eles abrirem o show do Condutores,. Quando o Cólera lançou o Pela Paz Em Todo Mundo, realmente foi um disco que sacudiu a cena. É um álbum super importante, super bem feito. Toda banda tem aquele disco que é a sua obra-prima e o Pela Paz Em Todo Mundo é esse disco para o Cólera, principalmente pela sua mensagem pacifista e humanista transmitida de uma maneira que não tinha acontecido dentro do punk rock. Então, o Pela Paz Em Todo Mundo, se não é o meu disco preferido do Cólera, é o meu disco preferido de uma banda que deixou sua marca no rock em geral e não só no punk rock.
Clemente Tadeu (Inocentes / Plebe Rude / co-autor do livro Meninos em Fúria, da editora Objetiva)

Cólera

Agora que Pela Paz em Todo Mundo está completando 30 anos, é possível vislumbrar a completa relevância do legado musical e político que ele deixou. Este não é só um dos melhores discos do punk nacional. Ele é um clássico do nosso rock, em termos abrangentes. Com este álbum, o Cólera trouxe um casamento de urgência e melodia até então incomuns no punk brasileiro. Depois, soube-se que aquilo estava mais para o hardcore. Todas as músicas são verdadeiros hinos da revolta urbana, do tipo que a gente canta inflando o peito e se sentindo representado. Foi assim que eu me senti quando conheci esse play, que me foi emprestado numa fita cassete Sony EF-X. Durante anos, a única versão da faixa “Vivo na Cidade” que eu conhecia era picotada pela metade, porque ficava no final do lado A e o cara não regravou a música do começo no lado B.

Eu era um adolescente que curtia grunge e classic rock quando ouvi pela primeira vez a faixa “Adolescente” e o horizonte se aprofundou. Era o meu grito instintivo contra a autoridade dos pais, padres, professores e a babaquice do mundo cão televisivo ganhando um manifesto e um discurso. Essa e outras letras como “Medo”, “Funcionários”, “Direitos Humanos”, “Alucinado”, e a própria faixa-título me inspiraram ao ponto de eu acabar me envolvendo com o movimento punk e a participar de coletivos anarquistas pouco tempo depois.

Pela Paz... é produto daquele contexto pós-ditadura-Guerra-Fria-Sarney-inflação. Mas conta com uma sonoridade e uma mensagem de qualidades permanentes. Quanto mais passa o tempo, mais fica cristalina a noção de sua autenticidade. A presença forte do Redson e sua iniciativa em trazer discussões abrangentes para o rock – ecologia, autogestão, anti-militarismo, pacifismo, apoio mútuo… – solidificaram-se nesta obra, influenciando muito do que a geração do hardcore nos anos 1990 acrescentou ao estilo.
Eduardo Ribeiro (repórter do Noisey e tradutor do livro Hell’s Angel , da Edições Ideal).

Cólera

É o ápice de uma banda que, por sua arte e história, está entre as 10 maiores bandas punk do mundo, ao menos pra mim. Escrever sobre esse álbum é, de imediato, remeter-se à toda obra e, com o perdão, sem desmerecer ninguém, seu criador, Redson Pozzi. Pessoalmente, foi assim que o Cólera foi inserido na minha vida musical, sem nunca mais sair. Em 88, envolto ao thrash metal, som que dominava meus tímpanos, e já conhecedor da cena punk, já apreciando Plebe Rude, Ratos de Porão e Inocentes, e também bastante atraído pelo som crossover que começava a marcar uma presença forte por aqui com D.R.I e S.O.D, caíram em minhas mãos, emprestados por um amigo, os LPs Vivendo Cada Dia Mais Sujo e Agressivo, do RDP, e Pela Paz em Todo Mundo, do Cólera. Estava feita a merda. Não ouvi quase nada além disso por uns dois meses!!! O que o Cólera tinha feito até ali, que acabei conhecendo depois do “Pela Paz…” , era justamente ter passado por todo processo de evolução até seu ápice.

Na minha humilde concepção, a trilogia lendária do punk mundial composta pelos discos Tente Mudar o Amanhã, Pela Paz em Todo Mundo e É Natal, é o registro da obra de um artista ímpar em suas ideias e musicalidade, Redson Pozzi, até hoje uma de minhas maiores referências musicais. Se recordarmos que em meio à agressividade sonora do estilo apareceram ideias pacíficas libertárias e humanitárias e, pra começar, “Medo”. Porra, um som que não demorou 10 minutos pra se tornar um hino eterno. Daí pra frente, são sons que só fazem a euforia e o ranger de dentes aumentar até o fim do play, pois se não bastasse o som, as letras, de forma nenhuma, soltas como um protesto ralo, dominam a mente e fazem o punho serrar sem que você perceba.

Riffs bem feitos, lirismo ímpar, a própria qualidade da gravação para a época. Falar de “Somos Vivos”, “Direitos Humanos” (minhas preferidas), da porrada “Alternar”, das também épicas “Não Fome” e “Pela Paz”. Enfim, de qualquer faixa desse disco que é foda por completo, é falar do melhor, da nata do punk daqui. É falar de um álbum expoente na história do punk mundial. É falar, talvez, do melhor álbum deles, mas também falar de um capítulo (imensurável) e marcante pra sempre! Ao menos pra mim. Pra você não? Então me desculpe, não dá pra conversarmos sobre Cólera, punk, ou mesmo música. Até hoje “às vezes sinto minha mão presa pelo ar”!
Glauco Ricardo (Moymondo/ Pig Machine)

Redson Cólera

Uma das coisas mais legais na música é se identificar com a postura e com as letras das bandas que a gente ouve. Isso é muito louco porque ,na maioria das vezes, a pessoa que escreveu aquilo que você tá ouvindo e se identificando tanto vive numa realidade completamente diferente da sua. O Pela Paz Em Todo Mundo foi o primeiro disco punk que eu comprei. E eu me identifiquei muito não só com o som mas, principalmente, com as letras que o Redson canta, e o mais da hora é que a banda não era lá do outro lado do mundo, era do Capão Redondo. Eu não conhecia ninguém da banda na época, mas quando soube que quem tinha escrito aquelas letras morava só a uns 3 quilômetros de mim só me fez gostar mais daquele disco. Muito discos me influenciaram e eu levei essas influências pra bateria, mas o Pela Paz… foi um disco que influenciou muito na minha vida.

Ouvir o Redson cantando sobre a adolescência, dinheiro, trabalho e liberdade foi muito importante, e até hoje sigo muita coisa do que ele diz nesse disco. “Direitos Humanos” é uma das minhas músicas favoritas do Cólera. Sempre eu que passava a noite na rua esperando o busão pra voltar pra casa ela ficava na minha cabeça! “Funcionários” é outra. Para quem você trabalha? Para quem você entrega seu suor, sua alma? Temos que mudar! Pode ter certeza de que um dos motivos de eu nunca ter tido um patrão foi essa música. O Cólera é uma das bandas mais importantes pra mim e durante muitos anos eu tentei ir em todos os shows deles que eu tivesse notícia. Essa época foi muito foda, em vários sentidos, e depois que o Redson morreu, eu fiquei um bom tempo sem conseguir ouvir os discos do Cólera. Hoje isso já não acontece mais e, puta merda, já faz mais de 20 anos que comprei esse disco e ele continua sendo um dos meus favoritos! Sempre escuto cantando todas as músicas!
Barata (TEST / D.E.R)

Cólera

Durante a minha formação musical, tive alguns episódios memoráveis com o Cólera. Lembro bem do meu primeiro disco da banda, justamente o Pela Paz Em Todo Mundo, numa surrada edição em vinil que veio parar na minha mão quando eu tinha uns 16 anos, talvez o meu primeiro contato com a geração clássica do punk rock brasileiro. Também não esqueço o primeiro show que eu vi deles (no festival Arregaçamanga, organizado por alguns amigos no pátio de uma escola pública da Zona Sul de São Paulo, entre 98 ou 99), que me impressionou pela entrega, pela devoção da plateia, pela inacreditável quantidade de tempo que eles tocaram (duas horas e meia, pelo que eu recordo) e pelo discurso, que me parecia mais profundo e reflexivo do que o que era comum no meio.

No entanto, a minha memória preferida do Cólera é a gravação deles no saudoso programa Musikaos, da TV Cultura, em 2000. Por uma generosidade do destino, toquei na ocasião com o Okotô, uma banda já veterana na época, mas que foi minha primeira experiência mais séria na música (entrei para tocar baixo quando eu tinha 18 anos, totalmente inexperiente e maravilhado com a oportunidade). A escalação tinha, além da gente, o Down By Law, o Nitrominds e, claro, o Cólera. Fomos a primeira ou segunda banda a subir no palco do teatro do Sesc Pompeia para tocar. Fizemos nosso curto set de quatro músicas e demos lugar para o Cólera. Enquanto eu guardava o meu equipamento, o Redson veio até mim e elogiou a nossa apresentação, dizendo que tinha gostado da energia da banda ou qualquer coisa nessa linha. Agradeci, ciente do valor daquelas palavras, e disse que estava ansioso para vê-los novamente. Quinze minutos depois, eles começaram a tocar. Poucas vezes na vida uma apresentação me impressionou tanto. Chega a ser difícil descrever o grau de conexão entre público e banda que aconteceu naquele dia. Os vídeos desse dia são incríveis, mas sinceramente não fazem justiça ao que aconteceu ali.

Escrevendo sobre isso, finalmente caiu a ficha de que, de alguma forma, a força daquela performance pode ter tido a ver com o fato de o programa ter sido gravado no mesmo local onde ocorreu O Começo do Fim do Mundo, marco do punk mundial, 18 anos antes. Talvez isso tenha alimentado a banda, ou talvez essa seja apenas uma teoria ingênua e romântica de fã. Quem sabe? O fato é que, quase duas décadas depois, ainda lembro perfeitamente do poder daquela banda em suas gravações e, especialmente, em seus shows. Uma aula que sempre carrego comigo.
Jair Naves (NavesHarris / Ludovic)

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Foto: Divulgação