Devo Discografia Faixa a Faixa

In Bandas, Discos
Vinicius Castro

Como certa vez disse o saudoso Lux Interior, do Cramps, “música é contexto”. Histórico, geográfico, de tempo e espaço. Mas há quem não respeite tais contextos e, somente pelo fato de existir, quebre em diversos pedaços todo e qualquer tipo de fronteira criativa.

Se tivéssemos que descrever do Devo de uma forma rápida, seria música dissociativa. Mas eles não cabem em um só significado. A música do Devo é cerebral, estranha, curiosa, torta, dançante, avante. E dentro disso tornam-se poucos os sentidos.

Devo ao vivo em 1977, Kansas City. Foto: Ebet Roberts

O Devo surgiu no início dos anos 70, mas foi durante a febre da new wave que eles ganharam mais destaque, mesmo que, para eles, uma banda à frente, a tal febre já fosse passado.

Quando eles desconstruíram o clássico “I Can´t Get No (Satisfaction)”, do Rolling Stones, a gente não entendeu nada. Na verdade, passamos ainda um bom tempo sem entender. O que eram aqueles caras com aqueles chapéus esquisitos na cabeça, que construíam uma música mecânica, e faziam umas danças robóticas? Para as crianças da década de 80, era muito para o nosso gosto ainda imaturo para aquelas mensagens.

Devo em 1979. Foto: Divulgação

Foi só com “Time Out for Fun”, do quinto disco dos caras, Oh, No! It´Devo, que aquela loucura toda ganhou sentido. Depois disso, visitamos os registros anteriores para entender toda a evolução da banda, ou a de-evolution, como eles mesmo dizem. E aí o Devo virou uma frequência. Era uma fase em que a banda havia mergulhado em algo mais, digamos, linear, mesmo que isso para eles pareça algo distante.

As músicas dessa época tocaram muito nas rádios e fizeram considerável sucesso. Mas, como nem tudo são flores, o Devo também amargou um dar de ombros de público e crítica durante a década de 90.

Devo ao vivo em 1981

Teria aquela inventividade, naquele momento, ficado desinteressante? Ou o próprio Devo tinha perdido o interesse pela sua própria audácia criativa Para os princípios do Devo, o tempo era algo ultrapassado. Gravando ótimos discos, e outros nem tanto, a verdade é que eles sempre tiveram seu próprio tempo. Para eles, a cronologia humana era um mero detalhe.

Dentro disso, a discografia do Devo foi a rejeição ao tempo e espaço encaixotados em algum significado que para eles parecia não significar absolutamente nada. Como anunciado em um show dos caras na cidade de Nova York, em 1977: o Devo é a banda do futuro. Para relembrar esta encantadora trajetória, revisitamos cada um dos discos e nossas músicas favoritas de cada um deles pra dividir com vocês.

Visual adotado pelo Devo na época do disco The New Tradicionalists. Foto: Divulgação

Q: Are We Not Men? A: We Are Devo!
“Mongoloid”
(1978)

Imaginem o quanto deve ter sido significativo para uma banda ter seu disco de estreia produzido por Bian Eno, do Roxy Music, no final dos anos 70.

Q: Are We Not Men? A: We Are Devo! Tem uma sonoridade nítida, viva, de uma banda tocando segura e ao vivo. Eno valoriza os intervalos e as quebras de andamento, o que para uma banda como o Devo daquela época, é importantíssimo.

A versão desconstruída de “Satisfaction” ficou famosa por aqui, ganhou clipe, mas Q: Are We Not Men? A: We Are Devo é repleto de outras ótimas músicas. Entre elas, “Mongoloid”, que sintetizava toda a estranheza que o Devo representava. No nome, letra, sonoridade, audácia. Uma música inquietante que ganhou versões de diversas bandas como Sepultura, Fistula, Besta, entre outras.

Para um disco de estreia, o nome era, e ainda é, perfeito: Nós não somos homens? Nós somos o Devo!

Duty Now For the Future
“Wiggly Word”
(1979)

Talvez Duty Now For the Future seja o disco com as linhas mais legais de guitarra. Muito por conta dos sintetizadores ainda não terem assumido o protagonismo, algo que aconteceria mais adiante. Duty Now For the Future é também o disco que melhor retrata o universo Devo.

Entre “Devo Corporate Anthem” e “Red-Eyes Express”, eles parecem confortáveis em seus andamentos quebrados e inventivos, e o resultado disso são músicas cativantes dentro de uma honestidade punk-freak.

Hoje é o nosso disco preferido, e guardadas as dificuldades de escolha, “Wiggly Word” é a nossa eleita. Uma música cheia de arestas. Ou melhor, ela é construída sobre elas. Mas não esqueçamos, é o Devo, então esse é o padrão.

Como escrito em uma resenha do Pop Matters, “Wiggly Word” fala sobre um mundo que não se aquieta. E se tivéssemos que colocar em palavras o efeito que a música do Devo provoca, seria exatamente isso: inquietação.

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Freedom of Choice
“Gates of Steel”
(1980)

Ouvir Freedom of Choice e pensar que o ponto de intersecção que resultou no disco foi o gosto de Bob Mothersbaugh e Gerald Casale por Steve Wonder, Prince e todo o início da Motown é, no mínimo, interessante.

O disco é cheio de músicas incríveis, como “Girl U Want” e o sucesso comercial “Whip It”, mas “Gates of Steel” tem um peso diferente, que salta desde o primeiro andamento de bateria costurada por uma progressão de notas de jeitão meio dark. Mesmo não tendo a tendência oblíqua do Devo até então, é uma grande faixa.

Freedom of Choice foi, segundo o vocalista Mark Mothersbaugh, o último álbum onde toda banda se reunia todos os dias para conversar e escrever coisas juntos. Talvez por isso, os discos que vieram na sequência não têm uma sonoridade tão viva, nem uma personalidade tão presente quanto os três primeiros.

New Traditionalists
“The Super Thing”
(1981)

Tirando o clipe de “Satisfaction”, este foi o meu primeiro contanto em disco com o Devo. New Traditionalists é o disco que mais nos remete ao Devo futurista. Um cenário que na nossa memória afetiva se mistura aos carros voadores dos Jetsons ou aos seres extraterrestres de V: A Batalha Final, série transmitida em TV aberta na década de 80.

Musicalmente o Devo estava mais linear, resquício do sucesso de “Whip It”, de Freedom of Choice, onde eles começaram a chamar a atenção de um público que estava mais interessado em dançar as músicas daqueles caras esquisitos, do que na teoria lírica pensada por eles. Em resposta, “Through Being Cool” veio como um ataque aos novos fãs que não entendiam a mensagem que eles queriam transmitir. Mas é de “The Super Thing”, e seu clima sombrio, o posto de música mais legal do disco.

Curiosidade, até aqui, o Devo sempre mudava de visual a cada álbum. Em New Traditionalists eles criaram o new traditionalist pomp, inspirado no ex-presidente americano John F. Kennedy. Mais uma ironia dentro da sagacidade de uma banda que ia muito além da superfície.

Oh, No! It’S Devo
“Time Out For Fun”
(1982)

Ah os anos 80. Sintetizadores em alta. Ombreiras, mullets e o gel new wave eram a última moda. O Devo já não soava tão esquisito e começava a fazer parte dos bailinhos de garagem e danceterias.

Desse álbum veio um dos maiores sucessos da banda, “Time Out For Fun”. Um hino! E o que dizer de “That’s Good”, hit que tocou incansáveis vezes nos programas de rádio daquela década e que parece ter saído de trilha de Um Tira da Pesada? Mas, entre as duas faixas, vamos de “Time Out For Fun”.

Sobre o nome do disco, o vocalista Mark Mothersbaugh disse que essa seria a interjeição das pessoas quando se deparam com um novo disco da banda: “Oh nooo… it’s Devo!”

Shout
“Shout”
(1884)

Shout é o fim de uma era largamente criativa da banda. O disco tem seus bons momentos, como o cover de “Are You Experienced?”, de Jimi Hendrix. “Here To Go”, ou a bobinha, mas divertida “The Fourth Dimension” e sua menção, intencional ou não, a “Day Tripper”, dos Beatles.

Olhando pelo retrovisor, Shout é um disco quase inofensivo, mas sua faixa-título ainda carrega um pouco do espírito alimentado pelo Devo até ali, e por isso ela é, entre todas do disco, a nossa escolhida.

Total Devo
“Agitaded”
(1988)

Uma resenha da Rolling Stone matou a charada. Em Total Devo, eles estavam fazendo o tipo de música insípida que sempre criticaram. De fato, o Devo foi engolido pelos synths, andamentos comuns e digitalizados. A banda do futuro estava se contentando com o presente, e ele não era nada inspirador.

A sagacidade das letras deu lugar a contextos manjados e pouco criativos. Não é um disco que vai mudar sua vida, mas tem seus bons momentos.

Entre as músicas que se salvam estão “Disco Dancer” e “Agitaded”. Num registro sem a alma provocadora do Devo, ficamos com a segunda.

Smooth Noodle Maps
“Post-Post Modern Man”
(1990)

Smooth Noodle Maps é o agente que te faz questionar “o que aconteceu com o Devo dos cinco primeiro discos?” Nem a fase mais synth de Oh, No! Its Devo foi tão pouco cativante quanto esse disco e seu antecessor.

“Post-Post Modern Man” foi o single desse tempo estranho. Uma música com apelo pop e de pouco, ou quase nenhum, sinal do Devo de que tanto gostamos.

Something For Everybody
“Sumthin”
(2010)

Demoramos pra gostar desse disco. Mas entendemos que a procura pela esquisitice dos primeiros álbuns nos tiraria a chance de viver esse último registro de uma das bandas mais inventivas do rock.

Vinte anos depois de Smooth Noodle Map, Something For Everybody ainda traz alguns cacoetes do que há de bom no Devo. Músicas como “Fresh” e “Human Rocket” são legais, mas “Sumthin” conquista pela honestidade próxima a primeira fase da banda, e é ela que encerra o nosso Discografia Faixa a Faixa.

Há pouco mais de 40 anos o Devo incorporou a teoria da de-volution. Uma ideia de que, na era do avanço tecnológico, os humanos regrediriam ao invés de progredir.

Se lá em 78 eles eram a banda do futuro, atualmente eles são o nosso presente, a trilha da nossa regressão. E se hoje alguma banda aparecesse com uma teoria maluca como essa, cheia de ideias nerd, não seria nada inédito. Porque hoje, a de-volution não é mais teoria, é a nossa realidade.

Em 2010, na época do último disco de estúdio, Something to Everybody. Foto: Divulgação