Vinicius Castro
No fim da década de 80, e durante o primeiro ano da de 90, as jaquetas de couro estavam abatidas e as casas de shows americanas eram dominadas pelo escapismo que encapava o glam como o produto da vez nas mãos de grandes gravadoras.
O thrash metal vinha bem, é verdade, mas o rock no geral flertava com uma guinada estética, musical e comportamental. A ignição disso vinha acontecendo sob o sol da Califórnia, e o que a imprensa reconheceu como um pote de ouro no fim do arco íris era uma viagem ainda mais reluzente de um bando de malucos vindos de São Francisco: o Faith No More.
É seguro dizer que The Real Thing, terceiro disco da banda, foi um dos responsáveis por entortar parte das nossas percepções musicais. Mais do que isso, quando foi lançado, The Real Thing ajudou a determinar o curso das décadas seguintes. Parte da herança do sucesso é que, mesmo odiando a sentença, o Faith No More não conseguiu se isolar totalmente do termo funk metal.
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Na época, publicações comparavam exaustivamente Mike Patton com Anthony Kiedis, vocalista do Red Hot Chilli Peppers. Desde a performance de palco, o jeito doidão, as roupas e até o modo como encaixava seus versos, o que, para nós, talvez tenha servido como combustível para que Patton buscasse outros direcionamentos não só para sua voz, mas para o rumo musical da banda. E tem mais. Há quem jogue nas costas do Faith No More a semente do que mais tarde veio a ser o new metal, mas eles fogem dessa responsabilidade como o diabo foge da cruz.
O Faith No More é uma banda veterana. Os primeiros acordes vieram em 1981, mas por aqui eles só apareceram em 1990 com a chegada da MTV no Brasil e o estouro do clipe de “Epic”.
Em um mundo que já tinha conhecimento do Living Colour, Fishbone, Beastie Boys e a parceria do Aerosmith com o Run DMC, a mistura de rap com rock não era uma grande novidade. Mas o diferencial estava na transformação sonora que o Faith No More causou.
O Fishbone já estava na ativa, o Primus tinha estreado em 1990, o Mordred inseriu scratches na maravilhosa “Falling Away”, do segundo disco dos caras, In This Life, e até o ex-baterista do Celtic Frost aparecia com o Mindfunk. Todo mundo estava de olho na mistura de George Clinton e Funkadelic com o peso do metal e a ousadia do punk daquela costa, na época, edificado pelo Dead Kennedys. Eram dias preparados para o novo e o rock queria isso.
Mas antes de Patton assumir os vocais a banda teve outros vocalistas. Entre eles, até Courtney Love (Hole) que, embora tenha ficado pouco tempo no posto, fez alguns shows com eles. Chuck Mosley é o nome tido como o primeiro vocalista oficial. Com ele, gravaram We Care a Lot e Introduce Yourself.
E se você é fã dos vocais de Mike Patton, agradeça ao Jim Martin. O guitarrista, hoje plantador de abóboras e anteriormente membro da banda Agents of Misfortune, onde o baixista era ninguém menos que Cliff Burton (Metallica), foi o responsável por levar Patton para o Faith No More depois de ouvir uma demo do Mr. Bungle. O vocalista entrou chegou pouco antes deles gravarem The Real Thing. A parte instrumental do disco já estava praticamente pronta e Patton escreveu as letras e linhas de voz em apenas 12 dias. Talvez isso explique o motivo de seu vocal soar tão juvenil e sem a musculatura necessária para carregar o peso de todo seu talento.
Tendo essa discografia a disposição, o que a gente quer nesse faixa a faixa é contar um pouco do Faith No More por meio das nossas músicas preferidas de cada um dos discos com uma playlist pra você ouvir enquanto lê.
“As Worms We Turns”
WE CARE A LOT
(Mordam – 1985)
Essa faixa ficou tão linda, mas tão linda nos vocais do Mike Patton naquele famoso show do Brixton Academy que a gente não conseguiu escapar da vontade de começar nosso especial com ela. Na versão original, com os vocais alucinados de Chuck Mosley, ela tem outra pegada, é fato, mas é tão boa quanto. E se você pensar que eles estavam fazendo isso lá em 1985 vai concordar com o grau de coragem que a gente reconhece nesse início de história. O mundo era do glam. Os cabelos entupidos de laquê, a Sunset Strip era a rua Augusta (dos anos 90) de Los Angeles e em São Francisco o thrash metal era a força daquele momento. Isolados de tudo isso, um Faith No More entregue à própria doideira e despreocupado com o que acontecia à sua volta começava sua viagem.
“The Crab Song”
INTRODUCE YOURSELF
(Mordam – 1985)
A música que Mike Patton dedicou para Rosane Collor – a mulher do caçador de marajás, o ex-presidente Fernando Collor de Melo – na passagem da banda pelo nosso país em 91, no saudoso Olympia, foi um dos pontos altos de um dos shows que a banda fez naquele ano. Em uma aritmética temperada por um groove acelerado, “The Crab Song” fez muita gente olhar para os discos anteriores com mais carinho. É fato, Patton manteve intacto o brilho de um dos melhores momentos de Chuck Mosley a frente da banda, mas na voz de Mosley, “The Crab Song”, de estrutura ainda ingênua, tem uma energia mais feroz e um pé no que a banda viria a fazer em The Real Thing.Grande música!
“Zombie Eaters”
THE REAL THING
(Slash – 1988)
Ok, valeu Chuck, mas agora a coisa ficou mais séria! The Real Thing já nasceu um clássico. Do início ao fim, sem tirar nem pôr, todas, a gente disse TODAS as músicas são excelentes. “Epic” foi sucesso absoluto. “Falling To Pieces” também não deixou por menos. “From Out Of Nowhere” é uma das melhores faixas de abertura de um disco de todos os tempos. “The Real Thing”, a música, é um épico maravilhoso. “Surprise! Your Dead!” e “Zombie Eaters” são donas de um peso que contagia. “The Morning After” e “Underwater Love” têm grooves diferentes, mas especialmente envolventes. E aí o disco fecha com a instrumental “Woodpecker From Mars”, numa afirmativa de que a voz de Mike Patton é foda, mas não é tudo. Perceberam? A gente enrolou e falamos sobre todas as músicas só pra dar tempo de escolhermos a faixa que vai pra nossa lista. Arrggghhh… difícil. Mas vamos ficar com “Zombie Eaters”. O motivo? A gente duvida que o seu eu adolescente tenha passado ileso à vontade de mandar um air guitar enquanto Patton cantava keep me hot, keep me strong, keep me ever everlong.
“Malpractice”
ANGEL DUST
(Slash – 1992)
A prepotência presente na adolescência metaleira da década de 90 talvez não estivesse pronta para esse disco. Os fãs que piravam na-música-do-clipe-do-peixinho também não estavam. Fato é que, só depois de um tempo, boa parte do público reconheceu Angel Dust como um disco seminal para a música torta que perturbaria carinhosamente nossas mentes dali em diante. Nele, Patton é um artista diferente e muito mais à vontade com sua criatividade incendiária. Há uma maior exploração dos limites e um rompimento com o sucesso estrondoso do disco de estreia. “Malpractice” ilustra bem esse recorte sinuoso em que vive Angel Dust, um disco de rompimento, mas também de um auto reconhecimento. Desses que têm sempre um detalhe pra ser descoberto. Angel Dust assustou como toda arte deveria. Causou estranhamento, intrigou, trouxe desgosto, feriu alguns ouvidos, mas, como algo perigoso e excitante, fez com que todos tivessem aquela vontade de experimentar esse conjunto de emoções por outras vezes. E a gente até hoje não parou. Seguimos experimentando a cada nova ouvida e por isso, hoje, “Malpractice” é para nós o clique exato daquele rico momento.
“Ricochet”
KING FOR A DAY… FOOL FOR A LIFETIME
(Slash – 1995)
“Ricochet”, “Ricochet”, mil vezes “Ricochet”. King For A Day…, pra muitos fãs o melhor registro da banda, é um disco que se mostra objetivo, mas estamos falando de Faith No More, então, nesse caso, objetividade é algo que não cabe no tipo de equação que esses caras costumam elaborar. King For A Day… é um caldeirão de referências. Soul, metal, funk, pop, jazz, metais, esquisitices e peso. É um disco quente, valvulado. Menos abusado do que The Real Thing e passando um longe da obliquidade de Angel Dust, aqui os experimentos ficaram mais a cargo de Mike Patton, que abusou da sua versatilidade para oferecer reminiscências de um crooner on-fire como na maravilhosa “Ricochet”. King For A Day… foi um disco que já nasceu com cicatrizes. Jim Martim havia saído da banda, um acidente de carro atrasou um pouco a produção do álbum, e o tecladista Roddy Bottum ainda teve que enfrentar a perda de seu pai. Esses ingredientes colaboraram para que King For A Day… fosse um disco, de certa forma, obscuro. Vale lembrar que na turnê de divulgação do álbum, durante o festival Monsters of Rock, de 1995, o Faith No More veio tocar no Brasil. Em iguais proporções, foi um show tão aguardado quanto bizarro. Acabou a luz no palco, o som não foi dos melhores, grande parte do público recebeu a banda com certa frieza e eles mesmos não pareciam muito à vontade naquele dia. Ainda assim, foi um baita show!
“Stripsearch”
ALBUM OF THE YEAR
(Slash – 1997)
Escutar “Stripsearch” é como vestir o mais perfeito traje de gala. Ela carrega algo de atraente e perigoso. É também uma das melhores de Album of the Year, disco produzido por Roli Mosimann, que já trabalhou com grandes nomes como The The e Young Gods, por exemplo. Em sua totalidade, é um registro que parece ter uma descendência lógica dos experimentos de Angel Dust. “Stripsearch” é puxada por um synth-mid que evolui para um post-trip-hop(?) guiado pelo baixo de Billy Gold em uma conexão com o baterista, e metrônomo humano, Mike Bordin. E com isso Mike Patton passeia livre e perfeito em um climão sci-fi, como registrado no clipe que acompanhou o single. Tudo nela é formatado por uma atmosfera dramática que caracteriza “Stripsearch” em uma elegância única.
“Matador”
SOL INVICTUS
(Slash – 2015)
A gente confessa que, quando foi lançado, “Motherfucker”, o primeiro single do tão aguardado disco que marcaria a volta do Faith No More aos estúdios, agradou muito e deixou no ar uma viabilidade de que Sol Invictus colocaria a banda de volta em um universo, digamos, menos convencional. Não foi muito o que aconteceu: o disco demorou a engrenar, mas com o tempo rolou e hoje a gente gosta bastante dele por aqui. Entre músicas mornas e outras incríveis, veio a confirmação: “Motherfucker”, ao lado das sensacionais “Cone of Shame”, “Superhero”, “Sunny Side Up” e “Separation Anxiety”, era realmente uma das mais legais. Mas ainda houve espaço para surpresas e uma delas era a orquestral “Matador”. We will rise, from the killing floooor, like a matadoooor. Isso é lindo demais! Um crescendo que evolui de forma tensa em seus pouco mais de seis minutos com uma energia vista semelhante a “Everything is Ruined” e “King For A Day”, por exemplo. Uma música perfeita para encerrar nossa viagem pela discografia de uma das bandas mais importantes da nossa música.