Os anos 2000 chegaram, a despeito do bug do milênio e do anunciado fim do mundo. Na verdade, não deixava dúvidas de que parte do mundo como conhecíamos até ali tinha chegado ao fim, de certa forma. Nosso jeito de ouvir, produzir, sentir e consumir música já não era mais o mesmo desde o fim dos anos 90.
Se na década de 80 as fitas k7 eram o nosso meio de compartilhamento, a década seguinte estabelecia a primazia das mídias musicais em outros formatos. Nos recém-chegados anos 2000, a troca de arquivos online, ou o tal peer-to-peer, era irreversível. Órfãos do Napster rapidamente aderiram ao Soulseek, Limewire, Audiogalaxy. A grande rede de computadores e seus usuários em cada canto do mundo passaram a ditar as regras, e com a evolução do download, a morte das gravadoras era um dado certo.
Toda essa reviravolta deu vida a inúmeras publicações musicais online e, em comum, o que se lia era que uma nova cena borbulhava no subterrâneo americano e europeu, esperando o momento de entrar em erupção. A notícia de que aquelas novas bandas estavam ocupando pequenos clubes e fazendo shows matadores corria ligeira. Entre o barulho que rolava por lá, uma de nossas prediletas daquele cenário todo: o Yeah Yeah Yeahs.
Sobre essa época inicial, Karen O contou em entrevista ao Guardian que aquele “foi um período autodestrutivo” na vida dela. “Fiz algumas coisas ridículas e masoquistas no palco, como rolar em cacos de vidro e ficar bêbada. Mas também era altamente catártico”, completa a vocalista.
Em um mundo já conectado, não demorou muito e todo o frenezi sentido na gringa bateu aqui em terras tropicais. Parte do nosso contato com aquela então nova, porém nem tanto, sonoridade, foi por meio das primeiras festas no Milo Garage, Vegas e DJ Club, em São Paulo; e Valentino, em Londrina.
A massificação e decadência do nu metal de FM, o soft rock e a sede da imprensa e público por algo que realmente chacoalhasse a música davam consistência a uma esperada fórmula mágica. E assim o Strokes foi colocado como a salvação do rock. Mas tempos depois, ficaria claro: a imprensa e parte do público poderiam até precisar de uma salvação. O rock, não.
Para algumas publicações, o Strokes era a maior banda desde os Rolling Stones ou a segunda onda do Velvet Underground. O Franz Ferdinand foi colocado como um revival do Gang of Four. She Wants Revenge e Interpol, os novos Joy Division. The Killers, um híbrido de The Cure com Duran Duran. Teve revival pra todo lado, mas a gente nunca gostou muito desse “a volta dos que não foram”. Tiveram também bandas que não transmitiam relações tão diretas com alguma década passada. Caso do Yeah Yeah Yeahs, que junto com o TV on the Radio, não nos pareciam sintomáticas em relação ao chamado revival.
Sobre isso, Karen O disse ao Guardian: “Sempre nos sentimos como uma banda esquisita, com músicas estranhas e uma liderança feminina que, de alguma forma, chegou lá. Também é inacreditável a quantidade de pessoas que nos procuram, apesar do quão estranho acho que nós somos”.
O Yeah Yeah Yeahs nasceu em Nova York, no ano 2000. Transformaram o anúncio falido do fim do mundo em um início de um outro barulho, meio rock de garagem, dançante.
Em 2003, Nick Reynolds escreveu uma resenha um tanto ácida sobre o primeiro disco da banda, mas que trazia um trecho interessante: “Fever to Tell é como sexo casual. Bagunçado e repleto de emoções baratas. Mas quando você acorda pela manhã, se pergunta: ‘Foi só uma aventura? Ou há algo aqui que vai durar por um tempo?’”. A pergunta é um bom ponto.
E de fato, o disco que revelou Karen O (vocal), Nick Zinner (guitarra) e Brian Chase (bateria), tem algo de aventureiro, e um descontrole desejado para uma boa estreia, mas ainda assim não é efêmero. Já Show Your Bones (2006), o segundo disco, é mais introspectivo, valoriza os sabores e não só a explosão.
O Yeah Yeah Yeahs amadureceu conforme os álbuns foram sendo gravados. Durante a gravação de It’s Blitz (2009), a banda sofreu os efeitos daquela nova forma de ouvir e consumir música, da qual falamos no início. O álbum foi gravado com orçamento reduzido e fez a cabeça e os ouvidos de diversos veículos que o colocaram como um registro corajoso e surpreendente, algo que se repetiria no mais recente, Mosquito (2013).
Entre os primeiros registros, lançados por um dos mais respeitados selos do rock independente, a Touch And Go, e o último disco, olhar para a discografia do Yeah Yeah Yeahs demanda entender o contexto em que esses discos foram vivenciados.
Pensando em compartilhar o que esses registros têm de particular, escolhemos uma música de cada um para tentar entender as origens e as mudanças de uma banda que parece ter receio nem de um, nem de outro.
“Bang”
S/T
(2000)
“The bigger the better bang bang bang” é verso cirúrgico em ilustrar a forma como o Yeah Yeah Yeahs gostaria de ser visto, percebido e sentido por quem ouvisse suas músicas.
O EP de estreia foi lançado via Touch and Go, casa de bandas respeitadas pelo barulho que causavam, como Big Black, Jesus Lizard e Pegboy, entre outras. Quase sempre as primeiras faixas costumam entregar as intenções de um disco. Com o Yeah Yeah Yeahs não foi diferente, e nesse caso, “Bang” é um convite charmoso para uma festa barulhenta, frenética e mergulhada no garage rock.
“Art Star” tem uma ironia interessante nos berros estridentes de Karen O, algo que ela não usaria tanto nos discos seguintes. Entre as outras faixas, “Mystery Girl” e “Miles Away” não surpreendem tanto. “Our Time” encerra o EP e dá pistas do que eles fariam em discos como Show Your Bones, por exemplo, mas é de “Bang” o encargo de iniciar o nosso Discografia Faixa A Faixa.
“Graveyard”
MACHINE
(2002)
No Exclaim, Cam Lindsay escreveu que Karen O grava como se estivesse cantando em uma secretaria eletrônica. O clima de Machine é uma extensão do que ouvimos no primeiro EP do trio. Cru, próximo ao punk, e com a disposição de uma banda em processo de descobrimento de sua própria potência.
Entre as duas faixas do EP, “Graveyard” tem aquela expressão do rock desajustado. Enquanto Brian passeia por batidas aparentemente displicentes, Karen canta usando a distorção a favor da sua intenção vocal, algo que se tornaria uma constante nos discos seguintes. Embora as duas fossem ser regravadas no disco de estreia, vale o registro das versões lançadas nesse EP, que serviu de aperitivo para a explosão que se confirmaria no ano seguinte.
“Date With the Night”
FEVER TO TELL
(2003)
I’m rich, like a hot noise. Não há início melhor para um disco explosivo e impaciente como Fever To Tell. Tudo o que você precisa está nessa frase, o resto é a maneira como ele se movimenta entre melodias lindas e ruidosas em um universo que tem com algo de Siouxie and the Banshees, só que mais festivo e sorridente, como descreveu uma resenha da época.
No início dos anos 2000 a MTV exibiu um show da turnê de Fever to Tell e a energia de Karen, Brian e Nick em músicas como “Y Control”, “Rich”, a incrível “Black Tongue”, entre outras, era bonito de ver e fazia a gente imaginar a forma como aquilo estaria funcionando sob as potências das caixas de som, ali, ai vivo e a cores.
“Maps” foi o grande hit de Fever to Tell, e acreditem, rolou empate técnico por aqui. Após uma série de deliberações internas (risos), ficou decidido que a música responsável pelo estrago, no bom sentido, causado por esse disco na época é “Date With the Night”.
Em meio a uma coleção de barulhos e uma linha elástica de bateria, Karen grita, geme e anuncia sua despreocupação juvenil em relação ao dia seguinte avisando que tem um encontro com a noite. E nesse caso, é melhor sair da frente. A disposição que existe ali é capaz de fazer de tudo para que esse “date” aconteça.
Fever to Tell é uma gangorra. Parte inteligente emocionalmente, parte infantilmente frágil. Como Karen chegou a dizer, nessa época eles se sentiam uma banda estranha dentro da cena de onde emergiram. Olhando pra trás, comparando com os discos de estreia daquelas bandas, Fever to Tell segue sendo um dos melhores. Não perdeu musculatura com o tempo, muito menos soa nostálgico. Ainda é um disco de hoje. Vital para entender o que aconteceu no rock pós-2000.
“Way Out”
SHOW YOUR BONES
(2006)
Enquanto Fever to Tell era inconsequente e torcia para que o mundo acabasse em uma ressaca curada na balada do dia seguinte, Show Your Bones desejava que tudo durasse o tempo necessário para que esse mesmo mundo pagasse seus pecados.
De toda a inconsequência do primeiro disco, para Show Your Bones, ficou o sabor da catarse presente em “Cheated Hearts”, no groove de “Phenomena” e nas encantadoras “Warrior” e “Turn Into”, sendo esta última dona daquele poder especial que te tira do lugar, gira seu corpo no ar e faz você adorar não saber mais onde está.
É um disco que a gente sofre, e muito, para escolher apenas uma faixa: o páreo ficou dividido entre “Turn Into” e “Way Out”. Mais deliberações depois e o martelo bateu para a última como a mais sensível ao momento. Não é um hit imediato, mas a maneira como evolui diz muito sobre Show Your Bones. É beleza detalhista que, por entre camadas de fuzz e o groove certeiro de Brian, contorna uma porção de imagens de clipes imaginários que brotam na nossa cabeça em diferentes situações.
Karen O disse que o álbum que fez com que ela acreditasse que poderia cantar foi On Avery Island, do Neutral Milk Hotel. “Jeff Mangum canta com seu coração, e acho que os cantores mais atraentes são os que cantam como se seu coração fosse explodir. Eu tinha 19 anos e, cerca de um ano depois disso, aprendi a tocar violão e comecei a escrever”. É, parece mesmo que o coração de Karen vai explodir.
“Isis”
IS IS
(2007)
Is Is é um EP registrado entre as gravações de Fever to Tell e Show Your Bones, e, em alguns momentos, ele realmente soa como uma trombada entre esses dois universos. É o que acontece em “Rockers To Swallow”, onde Nick explora bons ruídos de guitarra, coisa que a Stylus Magazine chamou de um “primitivismo desleixado que foi mais compreendido do que o necessário”. Por outro lado, a ótima “Kiss, Kiss” aborda melodias diretas que esbarram de leve no Gang of Four. Mas em meio a tudo isso, “Isis”, nossa predileta, é quem mais consegue criar um clima mais tenso, intenso e enérgico, algo típico do Yeah Yeah Yeahs.
“Isis” é linda e surge sustentada por um looping pesado, hipnótico, onde Brian traz para o Yeah Yeah Yeahs algo de Cramps e Siouxie and the Banshees dos primeiros discos.
Ao vivo, como no vídeo acima, ganha tensão, o que dá um charme ainda maior para uma música que nasce, se instala e parece estar sempre prestes a explodir em um refrão magistral, o que não acontece. Ao final, a gente até agradece e prefere o climão tenso mesmo, repetitivo e ansioso que ela transmite. “Isis” é incrível. Ouça alto!
“Zero”
IT’S BLITZ
(2008)
Em 2009, a NME descreveu It’s Blitz como “uma inesperada e enfática reafirmação do motivo pelo qual Yeah Yeah Yeahs era uma das bandas mais emocionantes daquela década”.
Em um primeiro momento, It’s Blitz soou estranho por aqui. A explosão garageira de Fever to Tell e introspecção de Show Your Bones cederam espaço para a festeira “Zero” e o eletro fashion de “Head Will Roll”. “Peraí, onde foram parar todos aqueles ruídos?”. A dúvida logo se desmanchou em compreensão e apego; hoje, It’s Blitz é, pra nós, um disco melhor do que a primeira impressão transmitiu.
No contexto em que It’s Blitz foi composto e lançado, “Zero” é a que mais se corresponde com aquele tempo. E o que parecia um tiro no pé se diluiu em uma sonoridade que acabou por definir It’s Blitz como o disco que ajudou o Yeah Yeah Yeahs a deixar o hype pra trás justamente por conta do risco que a banda assumiu em inserir novos elementos e sonoridades em sua estética.
É um convite irrecusável a qualquer pista de dança. Entre um clássico do Pet Shop Boys e o rock dançante de alguma boa faixa do Blondie, “Zero” cabe perfeita.
“Despair”
MOSQUITO
(2013)
Como no disco anterior, Mosquito é também uma boa comprovação de que o Yeah Yeah Yeahs não é que a primeira audição oferece.
Mosquito tem aquela esquisitice atraente, o famoso “credo, que delícia”, que enquanto carrega o aparente desarranjo, traz uma das composições mais sensíveis e emotivas da banda: “Despair”. Um épico crescente de quase cinco minutos onde Karen começa pedindo que o ouvinte “não se desespere…” e termina otimista, ou melancólica: “algum sol tem que nascer”.
“Despair” é linda. Tem o tom certo para finalizar nosso faixa a faixa. Se despede enquanto acena devagar e mostra esse outro lado, também encantador, de quem há pouco mais de uma década tinha um “date” com uma noitada inconsequente e hoje ainda está por aí, como quem olha para própria história e sorri. Sem desespero.