Jane’s Addiction e os 30 anos de ‘Ritual de lo Habitual’

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Vinicius Castro

Ritual de Lo Habitual, do Jane’s Addiction, tem um vocabulário tão rico quanto espiritual. A pluralidade do que acontece em suas entranhas jamais ficaria retida nos vícios ou nostalgias da década de 90. É um disco presente. Contra o trivial sugerido, ele se confunde com as nossas alegrias, festejos, perdas, solidão, sonhos, revoltas e descobertas.

Señores y senhoras,
nosotros tenemos más influencia con sus hijos que tú tiene.
Pero los queremos,
creado y regado de Los Ángeles,
¡Juana’s adicción!

Foto: Tod Goldberg

Here we goooo! Há três décadas, durante aqueles minutos iniciais de “Stop”, música que inaugura Ritual de Lo Habitual, o mundo parou diante do som e imagem que vinham da TV, como em uma força da física. Eram cenas de surf, do vocalista em cima das caixas de som fazendo danças esquisitas enquanto os outros três da banda estavam entregues em comunhão com aquela sonoridade refrescante.

Volta a lembrança nítida de quando vimos o clipe de “Mountain Song” e, antes daquelas imagens, Gastão Moreira cravava: o Jane’s Addiction é uma das melhores bandas para se ver ao vivo. Vendo aquelas imagens, não havia como refutar.

Imagine uma banda que grava um disco e ajuda a estruturar parte da estética de um estilo. Agora, imagine que, dois anos depois, essa mesma banda lança um outro disco que consagra alguns pilares desse mesmo estilo. Pois é, a banda é o Jane’s Addiction e os discos são Nothing’s Shocking (1988) e Ritual de lo Habitual (1990). Ambos registros que, entre outros, carimbaram o rock alternativo americano das décadas de 80 e 90 – isso, claro, pouco antes do mundo cair de amores pelo Nevermind, do Nirvana (1991).

Mais do que em qualquer outro espaço ou tempo, Ritual de lo Habitual exibe a soma como combustível de personalidades únicas. Carrega também a luta de Eric, Perry e Navarro contra as drogas, as semelhanças e diferenças criativas, de visão de mundo e estética artística. De alguma forma o Jane’s Addiction equilibrou tudo isso em favor da música. Nem mais, nem menos. Não à toa o disco ressoa a partir desse equilíbrio.

Perry Farrell e Eric Avery. Foto: Chris Cuffaro

Em setembro de 1990 a Spin escreveu: “O Jane’s Addiction é o futuro de Los Angeles”. Talvez naquele ponto eles fossem o futuro da música não só de LA, mas do mundo. Punk, pós punk, psicodelia, groove, heavy metal. Questionamentos religiosos, liberdade sexual, dramaticidade, a poesia que veste as nuances criadas por Eric Avery (baixo), Stephen Perkins (bateria) e Dave Navarro (guitarra). Tem de tudo ali, a começar pela questão ambientalista que aparece já em “Stop!”. 

Save the complaints
For a party conversation
The world is loaded
It’s lit to pop and nobody is gonna stop

Poucos momentos no disco são tão incríveis como quando Farrel canta And the water will run… Yeah it will run, ohhhh. Não tem uma vez que a gente passe ileso. Sempre emociona. Inicialmente, “Stop!” foi composta em uma loja. O Jane’s Addiction ensaiava no porão desse local, que ficava em Venice, Califórnia.

Ritual de lo Habitual é um caldeirão de referência e consequências. Musicalmente, a banda chegou a dizer que estava mergulhada em Bauhaus, Led Zeppelin, Velvet Underground e Rush. Mas dá também pra localizar a proximidade de nomes como James Brown e Sly and the Family Stone, como Farrell contou em entrevista para a Rolling Stone. Esse groove emerge de “No One’s Leaving” e, de uma forma mais rústica e violenta, de “Ain’t No Right”, uma das nossas prediletas.

“Been Caught Stealing” foi o grande hit. Fez parceria com “Epic”, “Give it Away” e “Sunless Saturday”, do Faith no More, Red Hot Chilli Peppers e Fishbone, que mesmo lançadas em diferentes anos, chegaram por aqui junto com a MTV Brasil, que veiculava com frequência esses clipes. Fato interessante é que Navarro teve uma espécie de bloqueio no estúdio e não conseguia chegar no timbre agressivo e definido que ele imaginava para a música. A solução foi gravar com um microfone praticamente grudado na guitarra desligada, próximo às cordas, para que a gravação captasse o estalo das palhetas e a definição que ele queria dar para as notas. Depois disso, ele gravou mais uma camada, desta vez usando uma distorção leve. Funcionou.

É de perder de vista as incontáveis vezes que ouvimos calados a primeira metade de “Three Days” para que em seguida gritássemos juntos com Farrell : “E-rotic je-suuuus…”. Nela, reparem na forma como Perkins, um dos melhores e mais subestimados bateristas do rock alternativo, passeia por diferentes convenções, como groove, momentos delicados e um ataque crescente de peso quando a música evolui.

Na época, Farrell disse que estava ouvindo Fela Kuti, mas que toda banda também pensava em músicas épicas, grandiosas e longas, como conta Navarro: “cresci com discos como Tommy e The Wall e The Lamb Lies Down On Broadway, coisas longas, loucas e sem sentido que contavam histórias ou apenas levavam você em uma jornada; então, fazer uma música como essa [‘Three Days’] foi realmente gratificante para mim”.

Grande parte das letras são temas pessoais e não seria diferente em relação a trinca que encerra o disco: “Then She Did…”, “Classic Girl” e “Of Course”, que teve a linha de baixo gravada pelo engenheiro de som da banda, Ronnie Champagne, já que Avery não tava a fim de gravar. Outra história interessante é sobre “Classic Girl”, que a gente adora por aqui, e que Farrell disse que achava parecida com “Hope”, do Bauhaus. As intenções até se parecem, mas talvez essa proximidade esteja mais na mente dele do que na do ouvinte.

Foto: Sounds Like Us

A capa trouxe algumas dores de cabeça a Farrell. Ela é, de certa forma, uma leitura do que ele canta em “Three Days”. A foto da obra deixou algumas lojas conservadoras incomodadas com a exposição de algo ofensivo à moral e aos bons costumes (risos).

Sob pressão desses lojistas, a Warner se viu sem saída e caiu no conto dos falsos moralistas, sugerindo uma mudança na capa do disco. Para se ter uma pequena ideia do tamanho da babaquice, o proprietário de uma loja chegou a ser preso por “indecência” (sim, você leu certo!) porque tinha um pôster com a arte exposto na vitrine.

No meio de toda treta entre manter a capa original ou substituí-la, eles encontraram uma solução com a cara do Jane’s Addiction: uma capa inteira branca que só trazia o logo da banda, nome do disco e um texto da Primeira Emenda da constituição americana, onde está prevista a liberdade de expressão. A contracapa traz um outro texto, um tanto mais ácido:

Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people to peacefully assemble, and to petition the Government for a redress of grievances.

Em respeito à religião e à liberdade da mesma, o Congresso não poderá criar nenhuma lei que proíba o livre exercício do mesmo; ou abreviar a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de pedir ao governo uma reparação de queixas.

Hitler’s syphilis-ridden dreams almost came true. How could it happen? By taking control of the media. An entire country was led by a lunatic… We must protect our First Amendment, before sick dreams become law. Nobody made fun of Hitler??!

Os sonhos cheios de sífilis de Hitler quase se tornaram realidade. Como isso pôde acontecer? Ao assumir o controle da mídia, um país inteiro foi liderado por um lunático… Precisamos proteger nossa Primeira Emenda, antes que sonhos doentios se tornem lei. Ninguém tirou sarro de Hitler ?!

Quatro pessoas, quatro egos, quatro criativos e uma explosão sob o nome de Jane’s Addiction. A parte chata é que toda essa intensidade cobrou seu preço e, com poucos discos lançados, a banda entrou em uma espiral de conflitos pessoais, convivência, vício em drogas e veio então a primeira separação da banda, ainda em 1991.

Durante a turnê de Ritual de lo Habitual, Avery e Navarro já tinham se ligado que não dava pra abusar das drogas por um longo tempo e sobreviver. Isso criou um abismo entre a banda.

Foto: Tod Goldberg

Nos shows, enquanto os dois se resguardavam para evitar a tentação, Perry e Perkins seguiam entregues às loucuras do rock. Avery então comentou com Navarro que estava pensando em sair da banda. Os dois comunicaram suas vontades ao restante, mas ainda assim assumiram completar a turnê de um dos discos mais bem sucedidos do rock alternativo. Mas, como diria Perkins para a Spin, “se não for a real a gente se separa. Podemos ganhar um milhão de dólares por três meses de turnê, mas odiaríamos um ao outro, o que não é bom… Uma das coisas do Jane’s é que nunca fomos bons em fingir”.

Pouco tempo depois de saírem do Jane’s Addiction, Avery e Navarro montaram o Deconstruction, em 1994. Lançaram apenas um disco, que dividiu opiniões. Dois anos antes, Perkins e Farrell montaram o Porno For Pyros e lançaram S/T (1993) e Good God’s Urge (1996)

Foto: Tod Goldberg

Ainda sobre o sabor proposto pelo Jane’s Addiction, Navarro é quem sintetiza o poder que eles sempre tiveram. “De alguma forma, a tensão interna da banda se traduz no público e nos ouvintes. E se traduz de uma maneira que não é compreendida. Sempre achei que, às vezes, coisas que não são completamente entendidas, são mal interpretadas como espirituais. Aquela coisa que ‘o desconhecido é atraente.’”

O mistério, a entrega, o frescor e a (re)descoberta. Esses foram, e ainda são, alguns dos efeitos do que foi registrado. Como escreveu a polonesa Wislawa Szymborska em A Alegria da Escrita: “Alegria da escrita. Oportunidade de eternização. Vingança da mão mortal.”

A sentença cabe também em Ritual de lo Habitual. Onde existe uma certa vingança contra a mortalidade versus o não controle do tempo. Ritual de lo Habitual é clássico eterno. Vence os dias, meses, anos, décadas, e segue, para nossa sorte, não reconhecendo a finitude que cada audição oferece.