Entrevista: Caio Braga e Magoo Felix (Guitar Days)

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Disseram que não haveria futuro. Disseram que o tempo seria perdido; a esperança, maltratada; e o dinheiro, jogado pelo ralo. Palavras de incentivo eram escassas, o que tornava qualquer insistência em resistência.

Nos anos 90, a ambivalência era nota marcante na música: de um lado, um Nirvana pós-Nevermind tão bem sucedido que dez entre dez gravadoras passaram a buscar ouro nas bandas de garagem. De outro, as rádios coordenavam o gosto musical dos brasileiros e instituíam o tipo de canção que deveria ser feita, o que posteriormente era confirmado pelas apresentações nos programas de TV. No meio, e até antes do estouro do grunge, jovens não identificados com o que rolava se espremiam em ônibus, metrôs e quartos para ensaiar o mal-dito futuro de sua criatividade. Era a gênesis do rock alternativo no Brasil, e ele encontrava na recusa ao pragmatismo o seu esteio.

O idioma escolhido, o inglês, já estabelecia barreiras. Nem todos saberiam o que estava sendo cantado. O som não visava a produções limpas e cristalinas, dando, em vez disso, protagonismo para o cru, o ruído e o lo-fi. A divulgação não viria na imprensa tradicional – com raras exceções -, mas sim, em zines feitos por fãs e entusiastas. O público era convocado por flyers e pelo boca a boca e, novas bandas surgiam de cada apresentação combinada em casas pequenas.

Um ecossistema musical se desenhava no Brasil, ainda que as bandas envolvidas não tivessem a noção de seu alcance. Foi preciso reuni-las em seu aspecto estético e intencional para que pudéssemos visualizar um legado brasileiro não muito divulgado. Segundo o documentário Guitar Days, o som pioneiro feito pelo alternativo brasileiro da década de 90 foi catalisador das inúmeras cenas roqueiras que temos hoje. Entrevistas feitas com diversas bandas nacionais, críticos da época, produtores culturais e nomes reverenciados internacionalmente, como Thurston Moore (Sonic Youth) e Mark Gardener (Ride), sustentam a importância daqueles desbravadores. Articulam também, indiretamente, uma resposta sobre se vale a pena viver a música enquanto não se vive DA música.

O documentário ganhou os prêmios máximos de filme e direção no Festival Premio Latino del Cine y La Música, na Espanha, e foi selecionado para mostras internacionais nos EUA, Rússia, Índia e Reino Unido. Aqui será exibido no Festival In-Edit, com três datas (veja abaixo).

Conversamos com o diretor Caio Augusto Braga e o produtor associado Magoo Felix, que fizeram o filme totalmente independente, sobre os bastidores desta empreitada pela história da música brasileira.

Trailer

Sounds Like Us: Como nasceu a ideia do documentário e como ela se alterou ao longo de sua realização, por quatro anos?
Caio Augusto Braga:
A concepção da ideia do Guitar Days veio, de fato, da vida própria que tomou um projeto de um curta-metragem onde eu retrataria as dificuldades do músico independente em utilizar o espaço público para divulgar seu trabalho. Eu conto com detalhes esse início no site do documentário.

Deixar o projeto desenvolver vida própria foi uma decisão que eu tomei pra definir a estruturação da linha narrativa. Usei o “deixa a vida me levar” do samba para contar a história do Guitar. Então, as entrevistas que eram colhidas me conduziam às entrevistas seguintes, e em cada entrevista falávamos sobre todo envolvimento daquele personagem no cenário musical, sua visão sobre este cenário e sua experiência pessoal (ou como banda, se fosse o caso).  É uma decisão trabalhosa, porque a definição do texto final seria feita na edição com mais de 100 horas de material gravado e de arquivo, mas o objetivo desde o início, que era contar a história mais fiel possível com esse apanhado de relatos de gente que vive e acompanha esse cenário, acredito que consegui.

“Depois da quarta negativa, decidi eu mesmo bancar a produção com meus próprios recursos, mesmo que levasse mais tempo do que o planejado inicialmente” (Caio)


Magoo Félix: Nunca pensei em fazer um documentário, nunca fui do audiovisual e não tinha ideia de como fazer isso. O Caio veio me entrevistar para o que então seria o curta-metragem dele e eu contei de como aquelas bandas (Pin Ups, Killing Chainsaw) se esforçavam pra conseguir lugar pra tocar, dos fanzines, dos anos 90. Caio achou mais interessante e me convidou para ser produtor-associado do filme, que se tornaria um documentário. Vivo o rock independente 24 horas por dia e me sinto privilegiado de estar envolvido. Houve entrevistas em que chorei de emoção; ao contar histórias dessas bandas, estávamos também contando um pouco da minha história. Vivi 70% da minha vida na beira do palco vendo esses caras tocarem. Montei o Twinpines porque queria ter uma banda igual às daquela época dos anos 90.

Sounds: Sabemos que a produção audiovisual no Brasil, especialmente a independente, é praticamente um ato de resistência, pois não há incentivos para tal. Vocês poderiam comentar sobre os momentos de dificuldade que foram aparecendo, as soluções pensadas e o tipo de investimento feito?
Caio:
A situação do audiovisual brasileiro, sobretudo para produções independentes, já era bem difícil. Hoje então, com o novo governo tratando da cultura e educação como inimigos de Estado, produzir no país é basicamente uma tarefa hercúlea, pra não dizer maluca.

“Houve entrevistas em que chorei de emoção; ao contar histórias dessas bandas, estávamos também contando um pouco da minha história. Vivi 70% da minha vida na beira do palco vendo esses caras tocarem” (Magoo)

Ilustração de Magoo para A Obra, casa de shows de Belo Horizonte (MG)

Houve a tentativa de engatar um financiamento coletivo através do Catarse em 2016. Antes de lançar a campanha fiz levantamento do tíquete-médio de shows independentes nas grandes cidades, da saída de merch de bandas, do ROI (Return Over Investment) de prensagem de CDs/vinis e pesquisei o gasto mensal com esse tipo de produto cultural dentro desse público-alvo. Desde o início, tive o cuidado de não me ater ao alcance das bandas nas redes sociais como definidor de potenciais compradores por saber que ser seguidor não necessariamente significa ser comprador. Ainda assim, o interesse do público ficou muito aquém do mínimo esperado. Preferi não esperar o final da campanha para ter tempo hábil de manter os shows da campanha com o retorno do Killing Chainsaw, que rolaram e foram incríveis. Depois do crowdfunding, houve tentativas de buscar patrocinadores. Ou o patrocinador não via seu público-alvo como consumidor da produção ou não enxergava uma contrapartida conveniente sem inserir seu produto, de alguma forma, no próprio documentário, o que pra mim nunca foi uma opção. Depois da quarta negativa, decidi eu mesmo bancar a produção com meus próprios recursos, mesmo que levasse mais tempo do que o planejado inicialmente.
Magoo: Londrina, Curitiba, Rio de Janeiro, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte, Piracicaba, Sorocaba, Campinas, Londres… Fizemos as cidades brasileiras em uma semana, praticamente um dia em cada, dormindo no aeroporto ou na rodoviária. Perdi a conta de quantos desenhos fiz para animar – os que estão no filme representam um terço. Tratei mais de 500 fotos, liguei para mil pessoas e implorei para que participassem do filme.

Sounds: Como foi descobrir, com o Kid Vinil, que já havia bandas brasileiras nos anos 60 gravando em inglês?
Caio:
Em casa meus pais curtiam Sunday, Morris Albert, então na verdade não foi bem uma descoberta. Na real, o que o Kid me ofereceu naquele momento foi uma ligação incrivelmente didática da relação que o Brasil tinha com a música cantada em inglês nesse período dos 60 e 70, e a comparação daquele mercado com o atual. O Kid não falava sobre música, ele dava aula.
Magoo: Só sou roqueiro por causa do Kid Vinil: conheci as bandas a partir dos programas dele. Realizei o grande sonho de conversar sobre rock alternativo com meu maior ídolo. Saber dessas bandas dos anos 60 foi um choque pra mim, pois achava que as primeiras tinham sido Pin Ups e Maria Angélica. Acho que o Guitar Days prestou a homenagem de o Kid contar sua última história.

Sounds: Aliás, os depoimentos dele e do Miranda são pontos de muita emoção no filme. O que vocês aprenderam com eles e o que as entrevistas passaram a significar pra vocês?
Caio:
Depois da entrevista do Kid Vinil eu precisei alterar toda a introdução do filme. O filme já estava praticamente montado. Como disse anteriormente, a linha narrativa do documentário tinha vida própria e esse é o maior exemplo, foi um trabalhão, mas o depoimento dele tinha moldado toda uma nova introdução. Nós tínhamos tentado entrevistá-lo antes, mas a agenda só casou no final. Acontece, sorte nossa. As pessoas conheceram a competência profissional e qualidade artística do Kid Vinil e do Carlos Miranda. Para mim, pessoalmente, o que mais me marcou ao falar sobre música com eles foi a humildade de ambos, não só no tratamento interpessoal, mas também na cortesia e boa vontade em dividir conosco suas experiências que tinham que estar inseridas, especificamente, neste contexto guitar.

“Pra produzir o filme pesquisei e escutei bandas de TODOS os Estados do país e a produção é prolífica e de qualidade. O que falta é escutar nossos sons com bom ouvido e um pouco menos de preconceito” (Caio)


Magoo: O Kid Vinil deu uma última aula de rock antes de partir. O Miranda foi a mesma coisa. Ele foi o cara que dividiu águas ao mostrar que o rock independente também podia fazer sucesso, mesmo que não fosse nas rádios. Ele parecia um camarada nosso, trocou ideia de igual para igual, falando dos amigos. Essa coisa de ser um camarada dando a mão para outros camaradas subirem (as bandas de que ele gostava) foi uma coisa muito importante. Aprendi que estou fazendo a coisa correta ao fazer o que amo, com o coração. Meu grande prêmio do Guitar Days foi esses dois caras nos darem “a benção” antes de ir embora.

Sounds: Enquanto fãs da música independente feita no Brasil, o que o documentário possibilitou que vocês descobrissem e que antes não estava explícito?
Caio:
Acredito que há dois pontos fundamentais aí:
a) De que há quem promova a música alternativa nacional, mas ainda são muito, mas MUITO poucos aqueles que prefiram a honestidade musical ao faz-me-rir. Entendo que rádios precisem pagar contas, mas também entendo que são concessões públicas e que deveriam fomentar o mercado nacional. Deveria, inclusive, haver leis que garantissem isso. Produção local faz bem à economia, além de incrementar a própria cultura e educação.

b) A boa qualidade de produção da música independente atual em todo o país. E isso não está nada explícito.
Nós, como consumidores, conhecemos aquilo que chega até a gente, nos shows (quando vamos), indicação de amigos e afins. Os músicos conhecem um pouco mais, porque tocam com mais gente, viajam, ampliam seu network. Para aí. Da mesma forma como acontecia lá nos anos 90, o mercado nacional não tem alcance, sobretudo se comparamos com as bandas novas que saem na gringa. E de qualquer país, não é só EUA e Inglaterra. Existe uma clara preferência pelas bandas gringas em detrimento das bandas brasileiras. As espanholas do The Hinds encheram o Sesc Pompeia quando vieram pra cá, e quantas bandas nacionais põem 1000 pessoas em um show?

Pra produzir o Guitar Days eu pesquisei e escutei bandas de TODOS os Estados do país e a produção é prolífica e de qualidade. O que falta é escutar nossos sons com bom ouvido e um pouco menos de preconceito, que foi o que eu fiz e me surpreendi. No Spotify do Guitar Days há uma playlist com mais de 8 horas de músicas de bandas brasileiras que cantam em inglês sem repetir uma banda sequer, e ainda tem muita banda boa pra entrar nessa playlist.

Magoo: Pra mim foi mais um lance de contar uma história que eu sempre quis contar. Acho que o documentário é saudosista para um cara como eu, na faixa dos 40, relembrar o que viveu e poder contar para os amigos mais novos, e para as pessoas novas, que estão na cena independente agora, descobrir histórias que não sabiam. No passado tivemos caras que ralaram pra caramba, se divertiram, e alguns têm um emprego careta hoje em dia. Eles vão poder olhar pra trás e ver o quanto se divertiram. Carrego minha sacola de pratos de 15 kg no ônibus não porque quero fazer sucesso. É porque no momento do ensaio, estou realizando meu sonho. O documentário me mostra que não estou errado em insistir em algo que não dá dinheiro.

Sounds: Pelo que vocês ouviram das bandas, que tipo de contexto histórico, econômico e social do Brasil da época favoreceu o aparecimento delas? Ou não houve qualquer influência? O que percebemos é que eram pessoas que tinham contato com a produção estrangeira em uma época em que a internet era para poucos. 
Caio:
Não acredito que o contexto histórico, econômico e social tenha favorecido o aparecimento dessas bandas no Brasil. Foi bode do B-Rock, mesmo. Diferentemente com o que rolou com o rock argentino e o boom que as bandas hermanas viveram com a proibição das bandas inglesas na época da Guerra das Malvinas; ou o rock espanhol que explodiu na Movida Madrileña, fenômeno cultural que rolou no final dos anos 70 com a morte do ditador Francisco Franco. Aqui o pessoal queria algo diferente do que rolava nos anos 80 nas rádios, e acho que a troca de fitas k7 foi a revolução musical desse momento que estimulou o aparecimento dessas bandas.

“Da mesma forma como acontecia lá nos anos 90, o mercado nacional não tem alcance, sobretudo se comparamos com as bandas novas que saem na gringa” (Caio)


Sounds: As bandas da década de 90 que foram entrevistadas estavam conscientes do tipo de influência que viriam a ter?
Caio:
Não tinham. O que é algo muito peculiar dessa cena, ninguém fez nada pra influenciar ninguém ou ganhar moral, fez pra curtir. E essa autenticidade, como DNA de um grupo de artistas, acho muito difícil de se ver em outras cenas.

Sounds: Olhando para a cena atual, vocês afirmariam que temos boas bandas alternativas no país?
Magoo:
A gente tem banda boa pra caralho no Brasil e a cena atual de música independente é diversa. O indie hoje é um grande leque de opções, com brasilidades, noise… Mostramos no documentário que o Brasil é extenso e tem muitas cenas, gigantescamente qualificada para fazer o que quiser.

Killing Chainsaw, de Piracicaba (SP)

Sounds: Como foram os bastidores da produção do documentário? Poderiam dividir algumas histórias legais com a gente?
Caio:
Foi todo um rolê muito legal produzir o Guitar Days. Conhecer gente talentosa de norte a sul do país foi um privilégio. E claro que rendeu muita história. Eu e o Magoo, que é meu amigo pessoal e a quem convidei para ser meu produtor associado, vivemos de tudo. Tocamos com o Second Come depois de uma contusão do Kadu (batera); conhecemos arquivos e memorabilia absurdos sobre o tema na casa dos entrevistados; botamos pilha para as bandas voltarem a gravar; passamos cinco dias comendo a melhor pizza-aperitivo em Botafogo, no Rio, porque era o que permitia o “orçamento”;  “ressuscitamos” o Killing Chainsaw; vasculhando lugar pra gravar, o Magoo caiu e se arrebentou no fosso atrás do palco no 92 graus de Curitiba (hahahaha); roubaram a produtora finalizadora e só deixaram os HDs do Guitar Days; queimamos o HD com o filme… Enfim, muita coisa rolou.

Mas, até então, a maior viagem de todas foi subir em um palco na frente da nata do cinema espanhol pra receber um prêmio sobre a história da nossa música independente e ter tido a oportunidade de falar, em bom português, que essas bandas são foda. Espero que, assim como eles, o público brasileiro conheça e curta essa história. Essa é a nossa história musical e sempre há tempo de dar nosso devido crédito e atenção para a produção artística brasileira que é feita com cuidado e talento, independentemente do idioma cantado.

“Carrego minha sacola de pratos de 15 kg no ônibus não porque quero fazer sucesso. É porque no momento do ensaio, estou realizando meu sonho. O documentário me mostra que não estou errado em insistir em algo que não dá dinheiro” (Magoo)


Sounds: Como vocês localizaram o Sérgio, que organizou o Juntatribo, e como foi, pra ele, lembrar de tudo o que fez?
Caio:
A grande maioria dos contatos foi pela boa e velha “ponte”. Um entrevistado me passava o contato de outro, mas muitos foram abordados na “caruda” via redes sociais mesmo, e o Sérgio Vanalli foi um deles. Foi complicado coordenar o dia pra entrevistá-lo. Ele é fotografo e viaja bastante. Depois de várias idas e vindas conseguimos nos encontrar em Curitiba em um estúdio onde ele dava um curso, e o estúdio era do também fotógrafo e baterista Orlando Azevedo, da banda de rock progressivo A Chave, dos anos 70. O Vanalli é um cara super tranquilo e discretíssimo. Quando chegamos no estúdio pra entrevistá-lo, quem nos recebeu foi o Orlando, pois ele ainda não havia chegado, e queria saber o porquê da entrevista. Trocando em miúdos, todos do estúdio pararam pra ouvir a loucura que foi produzir um festival da magnitude que foi o Juntatribo. Não teve aula de fotografia naquele dia, porque os alunos chegaram e também queriam conhecer a história e a faceta misteriosa daquele cidadão pacato que pôs 3.000 pessoas no barro em um descampado da Unicamp.

Guitar Days: Un Unlikely Story of Brazilian Music
Sessões durante o In-Edit 2019:

15 de junho
CineSesc, 15h
(com presença do diretor)

18 de junho
SpCine Olido, 15h
(com presença do diretor)

22 de junho
Centro Cultural São Paulo, 16h
Sessão seguida de show com Pin Ups, Wry, Sky Down e TwinPines