The Essentials: Voivod

In Bandas
Vinicius Castro

Físicos, cientistas, teóricos e artistas sempre viram no futuro a possibilidade de respostas para o presente. De Volta Para o Futuro, Os Jetsons, V – A Batalha Final ou Jornada nas Estrelas. Os filmes, e as artes em geral, alimentavam nosso impulso imagético enquanto o novo milênio era algo distante demais para se pensar na década de 80. Nostradamus, bug do milênio e uma reedição da Guerra dos Mundos, de Orson Wells, era a previsão. O mundo acabaria na virada do ano. Ou, nas previsões dos filmes, viajaríamos no tempo, transitaríamos em naves, aliens estariam entre nós, carros e skate voariam!

Na música, algumas bandas tentaram ilustrar o que haveria no minuto, década ou milênio seguinte. O ponto é que poucas delas fizeram isso de forma cativante e inteligente. Entre as que conseguiram está o Voivod, formado no Canadá, em 1982, por Away (bateria), Snake (vocal), Piggy (guitarra) e Blacky (baixo), pseudônimos de Michel Langevin, Denis Bélanger, Denis D’Amour e Jean-Yves Thériault, respectivamente. Talentosos, foram ao futuro e retornaram ao nosso tempo para contar, e cantar, o sabor que o desconhecido tem. Afinal, é disso que se trata: do imaginário.

Na distante década de 80 o Voivod era relacionado a nomes como Celtic Frost, Kreator ou Destruction. Mas tinha algo diferente ali. Era declaradamente influenciado por Motörhead e Venom, além de importantes nomes do rock progressivo, como Rush, Van Der Graaf Generator e Pink Floyd, de quem fizeram uma versão inesquecível para “Astronomy Domine”:

“Queríamos misturar Discharge com Joy Division”, disse Away ao Guardian. Ele ainda lembra que a primeira música a tocarem juntos foi “The Ripper”, do Judas Priest – “Snake cantou como Johnny Rotten”. A banda, então, começou a compor e gravou To The Death, a primeira demo, lançada em 1984.

Além da ficção científica, como de costume em grande parte das bandas que viveram a era Reagan (presidente dos EUA na década de 80), os temas também giravam em torno da Guerra Fria, a eminência de uma guerra nuclear, o abuso de animais e a poluição da Terra – que não é plana! Não por acaso, Snake costumava fazer alguns shows usando máscaras de gás em referência às intenções que o Voivod queria comunicar.

Snake

Dan Lilker (Nuclear Assault/ Brutal Truth) escreveu que “Nuclear War”, faixa que encerra War and Pain (1984), “reflete perfeitamente o ar de paranoia e inquietação que permeava tudo em meados dos anos 80. O inglês quebrado e a sensação marcante dos primeiros quase cinco minutos da música adicionam uma camada extra de complexidade e medo… Eu os amo!”

Além da música, outro ponto muito particular na assinatura da banda é a identidade visual criada por eles. Ou melhor, pelo talento de Away, que excede a bateria e aparece também nas artes dos discos e outros ítens referentes ao Voivod.

Algumas das criações de Away

Toda estética cheia de ruído visual tornou-se uma referência em tempos onde isso era escasso. O artista Alexandre Sesper (Garage Fuzz/ ACruz Sesper Trio/ Angüstia) contou pra gente que a caligrafia do Rrröööaaarrr, disco de 1986, “teve muita influência na estética da época. No período dos fanzines todo mundo imitava aquele tipo de letra.”

Outro atuante nas artes plásticas é Daniel Cacciatore, vocalista do Presto?. Ele também vê na arte do Voivod uma relação com alguns types usados no grafite e na arte de rua. Daniel contou que sua capa preferida é a de War and Pain. “Tanto pela arte caótica e apocalíptica, quanto pelas tipografias. O Voivod sempre usou logos diferentes e letras muito estilosas que me lembram Block Letters, do graffiti, e um pouco Cholo lettering”.

Foto: Divulgação

Por aqui, War and Pain causou um estranhamento intrigante. Uma sonoridade transtornada, que parecia estar fora do lugar. Pensando bem, realmente estava! A nossa década de 80 não era o mesmo período vivenciado pelo Voivod. Pra eles, aquele tempo presente já era passado.

Era curioso como as terminologias eram reduzidas naquele tempo. Tudo era rock pesado ou, como diziam alguns, rock paulêra. Se fosse veloz, chamávamos de speed metal. E muita gente localizava o Voivod dentro do tal speed metal, mas com algo extra, como uma erupção desenfreada de complexidade e brutalidade. Talvez tenha sido esse algo a mais que fez com que algumas pessoas não gostassem logo de cara de War and Pain e Rrröööaaarrr, os dois primeiros discos. Eles eram barulhentos até mesmo para ouvidos já acostumados ao metal.

Há alguns anos, quando entrevistamos o Fenriz, do Darkthrone, ele contou sobre a sua relação com a banda: “Eu não tirava o Rrröööaaarrr da minha cabeça. Comprei em 1986 e nunca o vendi. Ele é sujo, caótico, e isso é genial… Mas o grande disco do Voivod pra mim sempre foi o Killing Technology (1987)”.

Piggy e Snake ao vivo

War and Pain e Rrröööaaarrr influenciou muitas bandas ao redor do mundo.

No Brasil, visual e musicalmente, Sepultura, Vulcano, Psych Possessor, Sarcófago e praticamente todas as bandas de death/ thrash dos anos 80 tinham o Voivod em alta estima.

Vladimir Korg, vocal dos seminais The Mist e Chakal, contou sobre a inspiração vinda dos canadenses: “Fui bastante influenciado pelo vocal do Snake, no sentido de não cantar reto em cima das bases. Eu extrapolava e saía atropelando tudo, como no Rrröööaaarrr. O compacto Living with The Pigs (1988), do Chakal, tem um pouco dessa desordem… O Voivod é uma banda revolucionária porque criou sua própria linguagem tanto na imagem quanto nas letras. Existe o universo paralelo Voivod e não há nada igual a eles.”

Outra figura que reconhece a importância do Voivod em sua carreira é Dave Grohl, como pode se ver na entrevista abaixo, de 2008. O baterista do Foo Fighters foi apresentado à banda na casa de um amigo que tinha ido para Nova York ver os canadenses ao lado do Cro-Mags e do Venom, no Ritz. Grohl diz que isso aconteceu por volta de 1984 ou 1985. “Lembro de estar no quarto, estava tocando o Rrröööaaarrr e eu imediatamente olhei para meu amigo e ‘que porra é essa? É insano! O que é isso? É a melhor banda que já ouvi na vida!”‘. Ele ainda conta que pegou a capa do disco e ficou olhando as fotos da contracapa, tentando imaginar se aquela banda era real porque ele “nunca tinha escutado algo como aquilo antes”.

Grohl foi além. Tempos depois, no Probot, projeto criado por ele onde cada música foi gravada por um vocal diferente, o primeiro da lista a ser convidado foi Snake. “Cresci ouvindo aquelas bandas e ter o Snake colocando sua marca em uma música minha foi incrível, inacreditável. Naquele momento senti que a ideia do Probot estava funcionando e virando um disco.”

Mike Patton (Faith No More/ Mr. Bungle/ Fantomas…) também é louco pelo Voivod. Em entrevista ao Cvlt Nation, Away conta que durante uma turnê com o Faith no More e o Soundgarden, Patton lhe disse que o Young Gods havia pegado ‘Technocratic Manipulators’, de Dimension Hatröss”.

O interessante é que depois daquela série de shows juntos, o Faith No More lançou Angel Dust, um disco que na época também estava alguns bons passos à frente de seu tempo, assim como o Voivod. Não que haja ali uma referência direta, mas a vanguarda de ambos é notória.

Ainda sobre Dimension Hatröss (1988), as batidas tribais de “Tribal Convictions” são nossas mais distantes lembranças da conexão com esse tipo de andamento usado posteriormente por tantas e tantas bandas ao longo dos anos.

Soava novo, inventivo. Hoje pode até parecer óbvio, mas naquele tempo não era convencional usar tais andamentos, que soavam até simplistas, como protagonistas. Porém, a genialidade mora exatamente em fazer o simples parecer estupendo. Away diz que, por ouvir Sex Pistols, sempre gostou da sonoridade dos tons e surdos da bateria e que a partir disso começou a compor usando mais essas possibilidades. Dá pra captar um pouco disso no comecinho de “Pretty Vacant”:

Influenciado por essas mesmas hipnóticas batidas tribais e pelos riffs dissonantes, o Genocídio compôs a clássica “Depression”, música longa, claustrofóbica, que acabou por diferenciar o seu death metal de outra porção de nomes contemporâneos. W. Perna, fundador e baixista da banda, contou que o Voivod foi uma das coisas que ele mais ouviu no final da década de 80, começo de 90. “A paixão era tanta que no nosso disco é nítida a influência do Voivod, em músicas como ‘Depression’, ‘Catalepsy’, ‘Encephalic Disturbance’ e ‘The Pit and Pendulum'”.

No campo extremo do death metal, Moyses Kolesne, guitarrista do Krisiun, falou com a gente sobre a forma como o Voivod pode ser identificado na sonoridade criada por ele e seus irmãos: “Eu gostava bastante dos primeiros discos… No Krisiun vejo a influência nos acordes dissonantes que eu sempre usei muito. Antigamente a gente chamava de ‘acordes Voivod’. Eu diminuía a quinta em meio tom e aí dava aquele som meio ‘voivodesco’”.

Fazer um cover ou versão do Voivod era missão arriscada. Talvez pelo tamanho da encrenca em reproduzir a eloquência dos canadenses. Uma das bandas que topou esse desafio foi o Grave.

Por meio das criações de Jão, o Ratos de Porão também é outro importante nome que se alimentou da inventividade dos canadenses. “Os bagulhos mais dissonantes, tudo mesmo, começou lá no Voivod. Ouvi muito aquele disco, o ‘Dimension Hatröss’”, contou o guitarrista.

O Neurosis, principalmente em discos como Souls At Zero e Enemy of The Sun, também se alimentou da inventividade torta dos canadenses. Em 2015 conversamos com Steve Von Till (guitarra/ vocal) sobre o impacto da banda na musicalidade do Neurosis. “O Voivod, e também o Die Kreuzen, foram grandes influências para nós por causa da abordagem única e ampliada de suas composições e, especialmente, pela utilização de acordes complexos e harmônicos nas guitarras. Ambos eram muito fora do padrão… Eles pareciam próximos a nós.”

Músicas como “Flight”, por exemplo, trazem um pouco da atmosfera do Voivod. Scott Kelly (guitarra / vocal), parceiro de Von Till no Neurosis, falou sobre isso a Spin: “Quando nos deparamos com bandas como o Melvins e Voivod, sentimos que estávamos dentro deste reino, desse tipo de experiência… Para nós, a cena metal tem sido extremamente favorável e o Voivod obviamente é colocado na categoria metal, mas eu não concordo. É muito mais uma música experimental.”

A abrangência do Voivod também atingiu o Tool, outra banda que também já se declarou influenciada pelo Voivod. Away achava impressionante pensar sobre isso, já que quando eles saíam em turnê estava apaixonado pelo Tool e costumava colocar os discos da banda para tocar no ônibus.

Entre as prediletas aqui da casa, o Napalm Death também coloca o Voivod como uma referência em diversos momentos da sua discografia. Em entrevista à Decibel, Shane Embury comenta sobre os discos do Napalm Death e diz que a faixa “‘The Wolf I Feed’ certamente tem algo de Voivod na estrutura do refrão melódico de Mitch [Harris]”. É, concordamos com Shane.

Depois de Nothingface, o Voivod lançou alguns registros que foram pouco abraçados pelo público, mas que fizeram muita diferença para bandas como o Garage Fuzz, um dos mais importantes nomes do hardcore e que também traz em suas entrelinhas um tanto bom da gramática melódica do Voivod.

Conversamos com Sesper sobre essa representatividade. “O trampo que mais influenciou o Garage Fuzz foi o Angel Rat, que era mais rock n’roll e é até meio renegado. Escutamos muito mesmo! Na época a gente pirou muito em músicas como ‘Panorama’ e toda aquela doidera”, conta o vocalista. Ouça a faixa abaixo e repare em como as intenções das duas bandas realmente conversam bem de perto.

Assim como Angel Rat (1991) fez a cabeça do Garage Fuzz, também é um dos preferidos de todos os tempos do baterista do Deerhoof. Recentemente, Greg Saunier lançou uma releitura muito interessante do disco, em formato acústico. “Por causa da beleza extrema e da sua construção, sempre pensei que alguém deveria tentar fazer um uma versão acústica do álbum. Agora que os temas das letras parecem ainda mais tocantes em 2020 do que em 1991, decidi que essa pessoa seria eu”, disse Greg à revista Rolling Stone, reforçando que o tempo do Voivod é mesmo outro.

Com The Outer Limits (1993), disco pouco valorizado, também não foi diferente. Na época não gostei muito, mas novamente eles estavam em algum tempo futuro. Hoje, é um dos prediletos. O interessante é que, se a gente ouvir as entrelinhas, é até possível encontrar ecos desse discão em bandas como Mastodon, por exemplo.

Em 1994, Snake deixou o Voivod por um tempo. Quem assumiu os vocais foi Eric Forrest. Com a formação nova, a banda gravou Negatron (1995)um disco, digamos, sem a personalidade forte de seus antecessores. Já Phobos (1997), lançado dois anos depois, tenta recuperar a face mais pesada da banda. Nele, Jason Newsted, ex-Metallica, já aparece em uma das músicas. Algumas publicações enxergam a influência de álbuns como Negatron e Phobos em bandas como Machine Head. A gente não vê muito isso, mas vale o registro. Snake voltou para o Voivod somente em 2003 para gravar do disco homônimo, que efetivou Jason, então como baixista oficial.

Formação do Voivod com Jason Newsted, o último a direita

Em 2005 Piggy foi diagnosticado com câncer e veio a falecer no dia 26 de agosto do mesmo ano. O escritor Corey Mitchell escreveu para o Metal Sucks sobre sua relação com o genial guitarrista e a banda. Entre outras coisas ele conta que, pouco antes de sua morte, Piggy contou para Away que tinha umas bases de guitarra gravadas e queria que elas fossem usadas de alguma maneira. Away cumpriu a promessa e, no ano seguinte, o Voivod gravou Katorz (2006) usando as guitarras inconfundíveis de Piggy. O disco seguinte, Infini (2009),também traz material do guitarrista.

Depois disso o Voivod lançou Target Earth (2013)que traz Blacky novamente no baixo, e The Wake (2018), que mesmo soando menos tortuoso que os clássicos, foi considerado por diversos veículos como um dos melhores disco de 2018. Realmente, The Wake é um grande disco!

Blacky

A lista de bandas com doses de Voivod em suas composições é extensa e impossível de concentrar em uma única matéria. Away contou para a Indy Week que, em meados dos anos 90, já sentia a influência deles sobre nomes como Fear Factory e Meshuggah. “É sempre divertido ouvir os acordes de Piggy aqui e ali, com aquela sensação industrial”.

É bonito de ver como o Voivod segue sendo importante mesmo para as gerações mais recentes. Na fonte usada no logo, e também na sonoridade, o Vektor talvez seja, dentro da nova safra, a mais declaradamente, e descaradamente, influenciada por eles. O guitarrista e vocalista David DiSanto disse ao zine Iron Fist que todos na banda são grandes fãs de Voivod. “‘Nothingface’ é o meu favorito. Ninguém jamais será capaz de substituir Piggy, mas é incrível que o Voivod continue seu legado com Dan Mongrain”.

Depois do big bang caótico, o recorte progressivo futurista e sci-fi adotado pelo Voivod decodificou um futuro que a gente somente imaginava conhecer. Aquele futuro conjugado entre as nossas dúvidas e uma amplitude de possibilidades.

Jamais teremos todas as repostas. Mas dá pra encontrar na música do Voivod certo conforto para essa presunção insistente em querer saber o que há a seguir. Algo que enquanto você lê essas linhas já foi. Embora o Voivod ainda esteja aí, sempre presente.

Voivod em sua formação atual. Rocky (baixo), Chewy (guitarra), Away (bateria) e Snake (vocal) Foto: Gaelle Beri