Deftones Tretas, tragédia e uma reflexão sobre “Gore” ser o reencontro da banda com a sua história

In Bandas, Discos

Existe uma razão pela qual discos são compostos e muitas vezes esses motivos não chegam até a superfície, já que uma observação rasa não seria justa para contar a história toda.

No início, quando o Deftones surgiu, Chino Moreno apresentou Abe Cunningham para Stephen Carpenter. Os dois, baterista e guitarrista, respectivamente, já tocavam seus instrumentos e, como não sabia tocar nada, Chino virou o vocalista. Hoje, capa de revistas como a Kerrang, o Deftones vem sendo chamado de a banda que mudou o rock. um tanto exagerado, é verdade, mas dentro da liberdade e autonomia que o rock propõe, dá até pra enxergar certa relação. É também uma alcunha diferente e mais realista do que aquelas que já rondaram bandas como Nirvana, Strokes e algumas outras sob a perigosa e cruel como salvadoras do rock.


Mas calma, o Deftones é uma banda que não foi construída sobre a ilusão de rótulos criados pela grande imprensa. Eles sempre mostraram intimidade com o terreno em que buscavam pisar, mesmo em momentos confusos ou no início da carreira com o impetuoso Adrenaline.

Entre a longa amizade, tragédias, vícios, intrigas e entrega, alguns pontos parecem fazer sentido no desfecho de um disco como Gore, lançado no dia 8 de abril.

A justaposição, que se tornou a identidade dos caras, já se apresenta logo na capa com o contraste de uma imagem linda e tranquila ilustrando o nome do disco que remete a algo sanguinário e brutal.

A veia pop, que já vem presente desde White Pony, está lá. Diga-se de passagem, neste disco a melodia já era reluzente. Moreno é fã da música pop dos anos 80. Uma de suas maiores influências vocais é Robert Smith, do The Cure. Em 95, o lado B do single 7 Words era um cover de “Please Please Please Let Me Get What I Want”, do Smiths, e em outras gravações, o Deftones regravou Duran Duran, Sade, Cocteau Twins e Cardigans, os suecos do hit “Lovefool”.

Em algumas entrevistas que antecederam as gravações do último álbum, Chino declarou que os efeitos que usaria nos vocais eram inspirados nos primeiros discos do Morrissey, o que levantou algumas suspeitas ansiosas em relação a perda de peso que o disco pudesse sofrer. Mas, não é de hoje que o relacionamento peso e Deftones ganha representação muito mais no ambiente que a banda cria do que algo relacionado a distorções e afinações baixa. Mas não se assuste, isso ainda está lá. Chino sempre fez questão de citar é HR, vocalista do Bad Brains com outra grande influência. Na turnê do Around the Fur, disco preferido aqui da casa, em alguns shows eles tocavam Suicidal Tendencies e trechos de “South of Heaven”, do Slayer.

Stephen Carpenter e Chino Moreno

Muito desse lado mais “metal” é sempre mais detectado pelos riffs de Stephen, mas, como declarou Sergio Vega em entrevista recente à Rolling Stone americana, “Stephen não é metal o dia todo, e nem Chino é Morrissey o dia todo”. Isso só ressalta o quanto esse equilíbrio foi novamente encontrado, mesmo com as recentes declarações polêmicas de Stephen dizendo que ele nunca deixaria a banda que ele começou, mas que ela talvez estivesse o deixando.

O Deftones sempre foi a junção da dicotomia gritante entre o calmo e o explosivo, ou o pesado e o melódico, e isso foi o que fez com que eles atingissem em cheio uma juventude que queria ser encarada de maneira diferente, já que as pessoas têm as suas diferenças e peculiaridades no modo como pensam, se vestem e criam suas identidades.

Na era White Pony (2000), as coisas começaram a ficar gigantes em termos de sucesso e, internamente, alguns desentendimentos começaram a aparecer, mas ainda não era nada que pudesse prejudicar a criatividade dos caras. No disco, que faz menção declarada à cocaína, Chino começou a tocar guitarra e a assumir algumas linhas de criação. Um novo mundo se abriu e nele as tensões entre Chino e Stephen ficaram mais latentes. Músicas queridas como a maravilhosa “Knife Prty”, “Changes”, “Passenger” e “Pink Maggit” já eram mais, vamos dizer, nebulosas.

O clima ruim seguido pelo álbum Deftones (2003) e Saturday Night Wrist (2006) tirou da banda aquele sentimento de compor junto, e durante as gravações de SNW, raras foram as vezes em que eles estiveram juntos na mesma sala de um estúdio.

O Deftones é uma banda tão à flor da pele que isso foi sentido pelos fãs. O disco homônimo (o da caveira na capa) é um álbum pra dentro, pesado, de aura densa e isso reflete muito a fase da banda. “When Girls Telephone Boys”, “Battle Axe”, “Moana”, “Anniversary of an Uninteresting Event” são músicas que deixaram um pouco de lado as letras mais subjetivas e enviavam mensagens diretas e repletas de desencanto. Provável reflexo do desgaste de algo que nem sempre se pode explicar, mas era o que eles estavam vivendo, e o comportamento transparente de quem é o puro reflexo da música que faz, não deixaria por menos.

Em 2008 a crise se agravou com o pior golpe sofrido por eles: o acidente do baixista e figura querida pelos fãs, Chi Chang, que após quatro anos em coma, faleceu. Sergio Vega, vindo do nosso querido Quicksand, assumiu o baixo e lá está até hoje. Em entrevista recente, Chino diz que eles, infelizmente, tiveram que passar por uma tragédia desse tamanho para se reconectarem. Dessa fase, a banda engavetou um disco chamado de Eros e em 2014 lançaram a música “Smile”, parte do disco composto com Chi.

Como uma sequência natural, mesmo entre controversas opiniões, em 2010 a banda lançou Diamond Eyes, que para alguns é a continuidade que White Pony sempre mereceu. Um disco que inaugurou uma fase de construção das músicas mais focadas no casamento de Stephen com as guitarras de sete e oito cordas. Com bases de “cordão” e mais pesadonas, lá estava de novo o contraste entre peso e melodia que eles fazem tão bem. Koi No Yokan é repleto de linhas vocais mais cantaroláveis que caminham em paralelo com o peso das bases de Stephen. A partir desses dois discos, um Deftones mais aberto aparece e parecem mais à vontade e reconectados com seu universo.

Há de se lembrar que até aqui, o Deftones era uma banda que, a cada novo disco, já nos conquistava na primeira ouvida. Estava tudo sempre lá e os fãs já poderiam esperar que coisas boas sempre viriam e então, chegamos em Gore.

Fãs estavam ansiosos e o resultado foi um disco cheio de ótimas músicas, mas que dividiu opiniões. Alguns foram conquistados logo de cara. Outros, a princípio, acharam um disco sem grandes novidades. E sabe o que é mais legal? É que ambos os lados, depois de diversas visitas, possam compreender que Gore é um disco que preserva o desafio, mesmo que seja dentro do mundo que eles mesmos criaram.

“Hearts / Wires” é uma das mais legais e já começa com um clima de levada noventista de Abe. Recentemente, Stephen disse que teve problemas com essa música porque ela seria, de certa forma, inspirada em imagens do filme O Silêncio dos Inocentes. Já “Phantom Bride”, traz toda a categoria de Jerry Cantrell, do Alice in Chains, em um solo de guitarra. A faixa título, “Prayers / Triagles”, “Pittura Infamante”, a soturna “Acid Hologram” e o riff “fora da curva” de “(L)MIRL” são músicas que merecem a sua confiança. Podem criar um conceito precipitado, mas com o tempo elas vão ganhar mais espaço.

Outras já assumem uma posição de preferidas. É o caso de “Rubicon” que, contrariando o curso, já começa com um crescendo de arrepiar enquanto Chino entoa You cannot face the crowd all by yourself / Embrace the power we have / Raise your eyes slowly / Place your faith into me. É daquelas composições épicas com aquela sensibilidade típica de quem bebeu muito no rock alternativo dos anos 90. Ela está em um lugar onde já estiveram a já citada “Pink Maggit”, “What Happened to You?”, “MX” e a linda “Fireal”.

Por hora, fica a conclusão de que nunca houve um Deftones tão seguro da sua proposta e relação com o mundo e sua música. Mesmo que, para nós, isso possa ter parecido acontecer em White Pony, nas internas sabe-se que a coisa não era bem assim.

Gore é bom por isso. Além de trazer a banda em sua plenitude, revisita aqueles riffs mais arrastados que tingiram os três primeiros discos. Também vai além daquilo que a gente possa compreender. Talvez por esses mesmos motivos, Gore não tenha conquistado 100% dos fãs em seu primeiro contato.

Enquanto o status quo da nossa relação sempre esperava confortável por mais um disco espetacular, a banda assumiu o risco de não agradar com um algo que não se revela logo de início e que não caiu no nosso colo como uma vitória fácil. Gore é um disco de encantamento diário em uma relação de entrega despida de qualquer artimanha ou contornos de um flerte seguro. É o resultado de toda história vivida até aqui e de para onde eles querem, e podem, ir.