Vinicius Castro
Boa parte da história de Appetite for Destruction já foi contada. O impacto e o estrago, no bom sentido, que esse disco teve no cenário que ilustrava o fim da década de 80 são inegáveis: Appetite… tem lugar cativo na história da música. É, sem dúvida, um dos melhores discos de estreia do todos os tempos. Um dos que mais venderam. E dentro do rock, é um dos melhores discos de todos os tempos.
Mas, pouco antes de esse LP ser lançado por aqui, o Guns n’ Roses já havia causado uma verdadeira catarse em um dos shows de divulgação do álbum e, sem dúvida, um dos mais insanos que uma banda de rock pode – e deve – fazer.
Por essas e outras que, mais do que falar sobre Appetite for Destruction, é preciso falar sobre Live at Ritz, o show que o Guns n’ Roses fez em Nova York, no dia 2 de fevereiro de 1988, e que deu início a uma epidemia necessária em um rock que, na época, andava cabisbaixo demais.
Lá, o show aconteceu em 88, mas por aqui ele foi televisionado no ano seguinte – pasmem, pela TV Gazeta (recentemente encontramos na rua, por acaso, o cara que apresentou esse programa e nem ele lembrava muito bem em qual canal havia apresentado o programa. Mas a gente lembra… hahaha). Sem MTV, internet ou mesmo publicações especializadas em rock/metal, ter acesso àquilo traduziu para o mundo real o que até então era parte somente do nosso imaginário. Revolta, inconsequência, aversão a regras, desafio, peso, ameaça, cigarros, drogas, álcool. Tudo isso estava acontecendo ali, nas salas de algumas casas, ao cair da tarde, via TV aberta.
Fomos intoxicados. A partir daí, tudo referente ao Guns n’ Roses era registrado. Gravávamos especiais de rádio em fita K7, clipes e shows em VHS. E assistíamos. Várias e várias vezes. O acesso a shows, discos e vídeos era escasso e caro, portanto, quando isso era uma possibilidade, agarrávamos essa chance com unha, dentes e em alto volume.
Live at Ritz revelou uma banda que assumia o clima de ameaça e alimentava o perigo que ficou por um tempo adormecido em um cenário sustentado pelas maquiagens das bandas glam, que reinavam naqueles dias.
A Los Angeles decadente da Sunset Strip tinha a sua maneira de viver o sexo, drogas e rock and roll. Mas aquele show anunciava que isso era muito mais que um código. Era um meio de vida. E o Guns n’ Roses foi a banda que levou essa aura até a última instância; afinal, o rock precisava renovar seus votos junto a um bando de adolescentes ao redor do mundo enquanto boa parte das bandas da época procuravam caminhos mais populares.
Mas junto a uma autenticidade juvenil, havia também a busca por uma realização em curto prazo, é verdade, já que aquele momento gravaria o início bombástico e o colapso anunciado de uma grande banda que, da maneira como nós enxergamos, teria seu fim decretado poucos anos depois ao se transformar em uma potência do rock de arena.
Em Live At Ritz tudo começa com “It’s So Easy”. Uma vitrine lírico-niilista-sexista puxada por um riff petulante. Em seguida, costurada por um enredo sobre a relação da banda com a heroína, vem “Mr. Brownstone” e depois a enérgica “Out Ta Get Me” que, juntas, dão sequência para que entre em cena o segundo single da banda, “Sweet Child O Mine” (“Welcome to the Jungle” foi o primeiro). O que hoje é um dos fraseados mais famosos da música teve origem a partir de uma escala que Slash usava como aquecimento durante os ensaios. Mas nesse show ela não recebe as honras que hoje lhe são de direito. Ali, a doçura era parte de um conjunto de músicas incríveis e não o furacão comercial no qual se transformou pouco tempo depois.
Seguindo o set, “My Michelle” foi, durante algumas das centenas de vezes em que assistimos a esse show, uma das nossas preferidas. Depois dela, o primeiro cover da noite, “Knocking on a Heavens Door”, escrita por Bob Dylan, e tocada desde sempre pela banda.
Depois disso, “Welcome to the Jungle” é anunciada por um Axl inquieto, de olhar arrogante, para que depois a música ganhe sequência puxada por um dos riffs mais legais criados por Slash. Em um artigo do The Guardian, Dafydd Goff definiu a banda com precisão: “era como se o elenco de Lost Boys se armasse com guitarras”. Se você viveu os anos 80, sabe bem a força dessa metáfora. Realmente. O visual era sujo, ameaçador, e o comparativo conversa de perto com o espírito destemido que Axl invoca para dar vida à forma opressora com que foi recebido quando chegou na Los Angeles da década de 80: You know where you are? You’re in the jungle, baby. You’re gonna diiieeeeaagghghgh.
A banda então toca “Nightrain” e o hino escapista “Paradise City” com direito a um final ainda mais acelerado do que o capturado em Appetite For Destruction. Era o fim. E até ali, um puta show. Mas ainda havia uma carta na manga.
No set list oficial, o Guns n’ Roses ainda tocou “Mama Kim”, cover do Aerosmith que ganhou um registro “ao vivo” no segundo disco da banda, o G N’ R Lies, lançado em 88.
Voltamos ao que nos foi transmitido e temos então a incrível “Rocket Queen”. Chuck Eddy, crítico que escreveu alguns livros e também passou por revistas como Spin e Rolling Stone, certa vez fez uma referência ao Guns n’ Roses usando o termo “disco-metal” numa alusão à inventividade da banda para construir algumas de suas músicas numa mistura de New York Dolls com o groove envolvente do funk americano da década de 70. Um dos melhores resultados dessa engenharia? “Rocket Queen”, que em um bis incendiário encerra o show num ritual de comunhão entre aqueles cinco amigos que pareciam realmente viver como uma gangue.
Live at Ritz é parte desses acontecimentos históricos que serão sempre lembrados como algo que dificilmente irá se repetir. Uma energia, com o perdão do neologismo, ferocímel, encarnada naqueles cinco caras que trouxeram de volta muito do que já havia sido feito. A inconsequência do punk “no future” de 77 estava lá. A força do hard rock do Led Zeppelin, Hanoi Rocks, Aerosmith e Rolling Stones vinha embutido nos jeitos e trejeitos de cada um deles. Tudo ali falava muito sobre as referências que o Guns n’ Roses soube administrar. O resultado disso tudo pode ser visto nesse show que foi um divisor de águas na nossa, e na vida de muita gente.
No mais, o Guns n’ Roses foi uma banda consumida pela própria grandeza. Uma combustão de cinco peças fundamentais que implodiram em suas próprias pretensões e pirações. Live at Ritz diz muito sobre o Guns n’ Roses de Appetite For Destruction. Daí em diante é a história é outra. A nossa, termina por aqui.