Vinicius Castro
Em sua estreia, o Portishead levou apenas alguns segundos para mudar todo o idioma reconhecido pela arte como canal entre corpo e alma. Na conversa entre batidas cautelosas, pesadas e ambiências frias e doloridas, havia beleza. E muita.
Havia também um certo medo no ar. Não do tipo hesitante, mas um gatilho que transpira e inspira por vias de uma música traumatizada por algo que não se compartilha, mas entende. “Glory Box”, “Sour Time”, “Mysterons” e a maravilhosa “Roads” nos colocavam sob a perspectiva do atingido. A tríade criativa responsável estava na voz de Beth Gibbons, na serenidade minimalista da instrumentação de Adrian Utley, orquestrados pela estreita relação que Geoff Barrow tem com as camadas de colagens e ambiências que não podemos ver, tocar, mas que nos emocionam de forma plural.
Era só o começo. Era o ano de 1994, lançamento de Dummy, o disco que nos apresentou ao Portishead e fez com que nosso coração se alinhasse a cada beat de um enquadramento aparentemente cinza e cheio de vida nas entrelinhas.
Três anos depois o desconforto voltou a cutucar a cicatriz da saudade que a gente já vinha sentindo. Chegamos a 1997 e tal falta foi estancada pelo lançamento de um segundo disco.
O álbum homônimo trouxe de volta o mix daquela sonoridade apresentada em Dummy. Era como se a gente colocasse a Billie Holiday pra interpretar alguma cena de David Lynch. Nos instrumentos, Barrow e Utley refinaram ainda mais suas ideias, transformando até o silêncio em algo muito pesado.
Para entender melhor sobre esses ingleses vindos da cena dub de Bristol e,como bem definiu Max Reinhardt em um artigo, testemunhas do “legado de Margaret Thatcher vivendo à sombra da terrível realidade econômica” pela qual passava a Inglaterra.
Voltando ainda mais na história, Beth Gibbons conheceu Geoff Barrow em um programa de criação de empregos e foi esse sistema que no início permitia que seus shows acontecessem.
O conceito musical e estético do Portishead descende do jazz, das experimentações de elementos que vem do breakbeat e do glamour da film noir. Não por acaso, já que um dos primeiros trabalhos do trio como banda foi filmar um curta-metragem, To Kill a Dead Man (1994).
Diferentemente do seu antecessor, nesse segundo disco há um som mais futurista, inovador, mas na outra ponta há também o ruído primitivo orquestrado entre plumas empoeiradas de um cassino decadente.
E sob essa perspectiva, “Cowboys” já dá a diretriz. É Beth Gibbons sendo Beth Gibbons montada em uma voz que muda de humor com a facilidade de quem varre sentimentos enquanto canta. Sobre isso, certa vez, Geoff Barrow disse: “Dou a Beth uma faixa com ritmos e acompanhamentos e seu estilo muda, como uma camaleão vocal”.
Did you sweep us far from your feet…
…Undefined, no signs of regret
Your swollen pride assumes respect
Talons fly as a last disguise
But no return, the time has come
So don’t despair this day, will be their damnedest day – (Trecho de Cowboys)
Gibbons já entra afogada em desencontros e possessividade, universo que persiste na segunda música do disco, “All Mine”, que chega chique, delineada por uma ambiência de extremo bom gosto. É a alta costura da música coordenada por uma linha sexy de baixo, que envolve, eficiente, enquanto a música acontece.
There’s nowhere to hide from me
All mine…
You have to be
Don’t resist
We shall exist
Until the day I die – (Trecho de “All Mine”)
“All mine” tem jeito de trilha de algum filme de James Bond dos anos 70 que, em meio a ternos e vestidos bem cortados, revela uma solidão amarga. Dá o tom com seu andamento intrincado que te envolve confortavelmente.
Há de se ter tempo para ativar todas as suas sensações e aproveitar o que o minimalismo de “Undenied” pode fazer pilotado por quem sabe usar o espaço a seu favor. Se para alguns o vazio é o nada, para a dupla Barrow e Utley é um mar de possibilidades. Uma tela esperando por representações daquilo que só a arte pode declarar.
Aqui, a tensão da narrativa é moldada por um piano solene e uma linha de baixo gentil, enquanto Gibbons se esforça para alcançar notas que parecem ser escritas conscientemente fora de sua escala vocal. O alcance real fica por conta da emoção.
Em “Half Day Closing” a bateria soa forte, orgânica enquanto os outros instrumentos parecem distantes da voz de Gibbons.
Ouça essa música usando um fone. A linha de guitarra vai ficar no seu ouvido direito e a descoberta dos detalhes é tão emocionante que impulsiona ainda mais a riqueza que ela carrega. Desde os vocais fantasmagóricos, o órgão até a linha de guitarra tão oprimida quanto a secura da voz de Gibbons, que ao final encontra uma frequência tão aguda quanto sua entrega. Voz se torna um instrumento, que se mistura ao todo enquanto a música se dissolve aos poucos.
E se em “Half Day Closing” Utley esbanja criatividade, em “Over” ele vai de encontro ao título de Marshall Berman (All That Is Solid Melts Into Air) e faz com que cada nota se sustente no mesmo ar em que Berman propôs que elas se desmanchariam. Todas no lugar certo, na hora certa e dando ao mínimo o papel principal.
I can’t hold this state anymore
Understand me anymore
To tread this fantasy, openly
What have I done?
Oh, this uncertainty
Is taking me over
É um momento de afago perfeito para a voz de Gibbons que, em suas primeiras frases, já nos coloca frente a frente com o que a maturidade insiste em nos mostrar. Que o problema não está nas palavras, mas sim no tom e na forma como elas são ditas. O que parece impossível, aqui é feito com extrema naturalidade. Ela emposta agora uma voz limpa, de impulso contido. Como se toda potência de cada órgão do seu corpo pulsasse nas suas cordas vocais. Tudo ali é vivido muito de perto. É a melhor do disco.
“Humming” traz a voz de Gibbons mais ressecada. Como uma gaze antiga sob um machucado recente. Depois disso, “Mourning Air” ocupa os espaços com seus beats hip-hop em baixa rotação, território que eles dominam muito bem.
“Only You” é onde Gibbons volta a enfrentar alguns demônios e sua voz rasteja como se estivesse fraturada. Em cada frase há alma, corpo, mente. E no meio de tudo isso, os solos jazzy de Adrian Utley. Não por acaso, essa “Only You” permanece sendo um dos grandes hits do Portishead.
Curiosidade. A voz que aparece no início da música foi sampleada da faixa “She Said”, do Pharcyde.
O notável sobre esse disco é que ele não é apenas bem escrito, mas toda sua execução é encantadora, o que fica evidente da primeira às últimas músicas, caso de “Elysium” e “Western Eyes”. A primeira, apoiada um um beat simples de hip hop, ganha outro clima com a intervenção de uma linha de piano melancólica na metade da faixa. “Western Eyes” segue pelo mesmo caminho, um pouco mais tristonha, talvez. Ao final ela traz um trecho de “Hookers and Gin”, de Sean Atkins Experience. Ela é creditada dessa forma no disco, mas na verdade o sample foi criado pela banda, a música não existe, apesar da pessoa Sean Atkins ser real.
Em meio a beats, scratches e rhodes, a banda se manteve impecável nesse segundo registro. E o encantador é que do Portishead podemos sempre contar com a surpresa daquilo que não se revela tão fácil. A valorização em criar harmonias entre camadas e mais camadas que estão sempre a flor da pele. Doídas. Algo que não se nomeia e talvez nem precise.