Sunny Day Real Estate: ‘Diary’

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Vinicius Castro

Com Diary, o Sunny Day Real Estate reformulou a maneira que o rock viria a conjugar as emoções.

Em um especial recente que homenageava a vida e obra de João Gilberto (1931-2019), uma linha ascendeu em destaque. Era o resgate de quando o criador da bossa nova encontrou Caetano Veloso e disse “minha voz tem cores, festa e balagandãs”. Por algum motivo a fala dele nos colocou de frente ao dia em que escutamos Diary, disco de estreia do Sunny Day Real Estate, pela primeira vez.

Parece uma relação esquisita, mas é preciso respeitar as voltas aparentemente absurdas que a música dá. Neste primeiro disco do Sunny Day Real Estate, lançado em 1994, sobra emoção, é verdade. Mas, para a satisfação do nosso coração adolescente, nele não havia festa e as cores eram pouco reluzentes. Faltava também o tal balangandã — mas a gente entende, isso talvez só João possa ter.

Diary. Foto: SOUNDS LIKE US

Voltando um pouco na história, 1994 foi um ano e tanto para o rock alternativo. Graças à explosão do Nirvana três anos antes, as bandas de garagem agora ocupavam as casas de shows, a mídia oferecia espaços nos veículos e discos que se tornariam clássicos foram lançados e tocados à exaustão. Entre eles, Mellow Gold, do Beck; Blue Album, do Weezer;  Crooked Rain, Crooked Rain, do Pavement; Too High to Die, do Meat Puppets; e Second Coming, do Stone Roses, só pra citar alguns.

As primeiras conversas sobre formar a banda que resultaria no Sunny Day Real Estate surgiram em 1992, quando Dan Hoerner (guitarra/ vocal) e Nate Mendel (baixo) se conheceram na Universidade de Washington e começaram a fazer um som juntos. Pouco tempo depois eles convidaram William Goldsmith (bateria) para tocar e gravam uma demo sob o nome de Empty Set.

A má notícia é que já existia outro Empty Set. A solução foi rebatizar a banda com o singelo nome de Chewbacca Kaboom, que não durou muito. Novamente os caras trocaram de nome, dessa vez para One Day I Stopped Breathing. O trio então passou a tocar juntos e gravou um compacto, ainda com Dan nos vocais, chamado Flatland Spider.

Sunny Day Real Estate, o nome que sempre captura nossa emoção, veio de uma inspiração de Nate, a partir de alguns pensamentos após ouvir “(Nothing But) Flowers”, do Talking Heads.

William era amigo de um certo vocalista que tocava guitarra e decidiu apresentá-lo a Dan e a Nate. Foi aí que entrou Jeremy Enigk. Pouco tempo depois, Nate saiu em turnê pela Europa com uma outra banda, o Christ on a Crutch.

Os shows duraram dois meses e, nesse meio tempo, Dan e William resolveram ensaiar com Jeremy enquanto Nate estava em turnê. Os três compuseram “#8” e “#9”, que viria a ser parte de Diary, mas que na época recebeu o nome de Thief, Steal Me a Peach.

No já distante 1994, a MTV ainda era uma emissora com suas atenções voltadas para a música e a explosão do grunge, que ainda dava seus suspiros, jogou uma pressão em músicos, produtores, imprensa e público: todos queriam encontrar, ou ser, o próximo Nirvana. E se tem uma coisa que não funciona nada bem com a honestidade criativa é essa tal pressão.

Diary foi lançado pela gravadora de Seattle Sub Pop, símbolo do grunge. Ou seja, se o mercado ansiava por um próximo Nirvana, imagina então se ele viesse da mesma localidade? Mas, além de algumas similaridades vocais que já já a gente comenta, o Sunny Day Real Estate não era exatamente algo que soava como o Nirvana, apesar de Jeremy ter comentado sobre sua admiração em relação a Kurt Cobain.

Pôster de divulgação da Sub Pop

No livro Taking Punk to the Masses, ele conta que as melodias do Nirvana eram como as dos Beatles. “Kurt Cobain e Paul McCartney tinham essa sensibilidade à melodia e era disso que eu realmente gostava”, ele completa. De certa forma, a gênese do Sunny Day Real Estate era composta pelo destaque deste elemento melódico somado a uma bateria enérgica, letras e vocais emotivos.

Entre os fãs brasileiros do rock alternativo e do que se descortinava como emo, Diary rapidamente se tornou um encanto. Era tudo do que a gente precisava. Temas delicados sustentados por uma sonoridade que preenchia dores que, de certa forma, diziam algo sobre nós mesmos.

Das músicas à arte visual, Diary é também o melhor e pior recorte da vida de muita gente. Inclusive a nossa.

A parte gráfica foi criada por Chris Thompson, que buscou inspiração nos brinquedos Little People. Chris pintou situações do cotidiano, com uma boa dose de ironia e surrealismo: o homem com uma bigorna sobre a cabeça, os enfermeiros no acidente de carro e o casal deitado na contracapa, juntos, mas separados pela rotina, pelo banal, virados cada um para o seu canto, olhando para lugares distintos.  

Foto: SOUNDS LIKE US

Em entrevista, perguntamos a Jeremy Enigk (vocal / guitarra) quais bandas ele ouvia na época em que se apaixonou por música. U2, R.E.M, Shudder To Think e Fugazi foram alguns dos nomes citados por ele. Todas elas responsáveis por canções embebidas em ótimos refrãos e passagens épicas. Dan também reforça o U2 como influência. Depois de um show, ao Onion’s AV Club, ele disse que “estava tentando ser o The Edge. Eu só tinha vontade de tocar violão, então não pude ser o The Edge. Mas se eu pudesse tocar em uma banda cover do U2 e tocasse perfeitamente, essa é provavelmente a carreira que eu levaria”.

Em um tempo sem internet, o rock alternativo viva às margens e frequentava somente os programas de nicho, que no início iam ao ar nas madrugadas da MTV Brasil. Alguns anos depois, o vídeo da banda tocando “Seven” ao vivo no 120 Minutes, programa da MTV americana, contaminou uma porção de corações ávidos ao novo.

Nas discotecagens de rock da década de 90, “Seven” tinha seu lugar de honra, ao lado de “In Circles”. Dois hinos que inauguram o disco com uma energia que comove já nos primeiros acordes. Algo que encontramos também em “Chalk the Cracks”, “Precision Auto” e “Stereo”, do Seaweed, Superchunk e Pavement, respectivamente, ou em outro hino indie da época.

Entre algumas histórias contadas no encarte do disco, Jonathan Poneman, um dos fundadores da Sub Pop, conta sobre a experiência de ter visto o Sunny Day Real Estate tocando “Seven” ao vivo: “Imagine entrar no pequeno Crocodile, ver essa banda no palco e de repente eles tocam ‘Seven’. Aquilo foi tão desarmante. O mais emocionante é que as músicas eram tão bonitas e evocativas. Foi uma experiência fascinante”.

William Goldsmith (ao fundo) e Nate Mendel. Foto: Jessica Bardosh

Em “In Circles”, o modo como o baixo de Nate conversa com a bateria de William é tocante. Uma valsa indie com toda elegância e dor que isso possa carregar. O grito visceral do refrão e a sequência da estrofe final nos fazem compadecer daquele desespero que parece brotar da maneira como Jeremy literalmente sangra aquelas palavras.

i dream
to heal your wounds
but i bleed myself
oh i bleed myself

“In Circles” tem uma das levadas mais poderosas de William, baterista de que a gente gosta muito por aqui. Sobre isso, Jeremy disse ao Stereogum que “quando você toca com William, ou aumenta o seu volume para igualar ao dele ou ele pega o que você está fazendo e leva para o que ele está fazendo”.

Inicialmente, “In Cirlces” teria outra forma. “Era um lamento acústico adorável, muito triste. E quando eu a trouxe para a banda, quando William a conheceu, ela virou uma poderosa canção de rock. No começo eu pensava: ‘Não, não, isso não é o que ela é’. Mas tudo o que eu escrevo, não importa o que seja, parece que melhora com a banda”, conta Jeremy.

E o que dizer da brilhante “Song About An Angel”, que chega tranquila e evolui de forma explosiva e dolorosa?

Jeremy contou pra gente que o vocal registrado no disco não era bem o modo como ele costumava cantar. “Antes de a gente gravar Diary, eu costumava cantar usando muito mais o falsete, mas tivemos uma sequência de shows em que eu cantei de um jeito mais intenso e isso acabou causando alguns problemas na minha voz”.

Jeremy Enigk. Foto: Jessica Bardosh

Todo esse desgaste refletiu no disco e o que pra ele era problema, pra nós, na época, era uma-entrega-super-hiper-mega-emocional na forma de cantar. Sonhos de jovens fãs.

O ponto é que a perda do timbre mais alto fez com que o vocal de Jeremy soasse um tanto áspero e que seus gritos que, a princípios eram tentativas de alcançar certas notas, acabassem evocando os berros rasgados de Kurt Cobain.

sometimes you see right through me
angel: words. you’re married to your pain
man: although you hit me hard i come back
the earth cries ease the pain. on the inside
run behind. which one will i face?

Jeremy se esgoela, literalmente, para dar vida ao que canta: “you’re married to your pain”. É forte. É doloroso. E o refrão de “Song About An Angel” corresponde a isso.

Ainda sobre o segundo show da banda, aquele do Crocodile citado acima, o guitarrista Dan relembra o dia em que os caras da Sub Pop foram vê-los: “Estávamos tocando ‘Song About An Angel’. Eu e Jeremy nos olhamos e depois eu olhei para esse cara, o Dave Rosencrans, e tinha lágrimas escorrendo pelo rosto dele. Era isso que estávamos buscando”.

Dan Hoerner

“Round” tem algo de esperançosa. Seja lá por qual motivo, é apenas o que os primeiros segundos dela nos transmitem antes que Jeremy comece a cantar e arranque isso do nosso imaginário, repetindo algumas vezes “what’s wrong with me?” (o que há de errado comigo?), como se procurasse a resposta que falta, mas não vem. Em frases de guitarra simples, mas comoventes, é uma música que revela de forma mais aguda a intimidade entre Jeremy e Dan. Como em casos conhecidos do rock alternativo como Lee Ranaldo e Thurston Moore (Sonic Youth), ou Guy Picciotto e Ian MacKaye (Fugazi), Jeremy e Dan são energias distintas e complementares. O mesmo se repete em progressões de acordes em “47”, “Round” e “Shadows”, sendo que esta última ainda traz um cacoete de Shudder To Think, uma das inspirações vocais de Jeremy.

A cozinha do Sunny Day Real Estate é sincrônica sob medida. Não à toa Dave Grohl arrastou Nate e William para a primeira formação do Foo Fighters. Nate, aliás, permanece na banda.

Nate Mendel. Foto: Jessica Bardosh

Entre Nate e William o diálogo não parecer ser muito casual. Ambos se movem — e comovem — a passos calculados para que cada linha de baixo, somada à bateria, nos guie ao coração. É o grave que acontece no peito. É o que ocorre em “The Blankets Were The Stairs”, que depois de seus pouco mais de cinco minutos se desmancha no prelúdio “Pheutron Skeutro”.

“48” é a prova de que há no Sunny Day Real Estate uma combustão que faz com essa seja uma banda que se dissolve de dentro pra fora. De dentro para seus ouvidos e coração. É uma canção simples, mas dividida em duas. Como o purgatório e o paraíso de Dante.

I lost myselfWhen
I looked in your eyes
I tried to disguise myself
Fear inside
Fear inside my love

“Gredel” é a música favorita de Dan e, segundo ele, o trecho “I wanted to be them, but instead I destroyed myself”  (eu queria ser eles, mas me destruí) diz muito sobre a dinâmica do Sunny Day Real Estate em um dos períodos em que a banda estava implodindo. O fechamento com a maravilhosa “Sometimes” é o desdobramento dramático que o disco pede em cada uma das músicas que a antecedem. É possível ver resquícios dela em músicas como “Second Best”, do Pedro the Lion, por exemplo.

O relançamento em LP duplo ainda traz as já citadas “#8” e “#9”, sendo que a primeira apareceria mais tarde, no disco seguinte, o Pink Album.

Depois da turnê americana para divulgação de Diary, o Sunny Day Real Estate começou a pensar no que viria a ser o sucessor de Diary. Mas as coisas não estavam muito boas na convivência entre eles. Na época falava-se que a causa seria adesão de Jeremy ao cristianismo.

William Goldsmith

William diz que “todo mundo estava cansado de estar em turnê. Ninguém estava se dando bem. Por isso ninguém queria estar perto um do outro e paramos de tocar por um tempo. Quando voltamos a faísca se foi. Perdemos isso”. Já Dan reflete sobre essa fase contando que acabou lidando com aquelas situações de uma forma “desagradável” e que fez “coisas estúpidas”.

Pouco antes de a banda quase se separar pela primeira vez, eles fizeram uma turnê com o Shudder To Think, banda que tem o vocalista Craig Wedren e uma das principais influências de Jeremy, que chegou a dizer que essa foi a turnê mais incrível que ele já fez com uma banda. Ele conta que Craig “tinha um lugar privilegiado para observar como os problemas internos já estavam ameaçando a existência do Sunny Day Real Estate”. O que ele não sabia era que a banda já tinha parado de ensaiar e que duraria somente mais alguns meses. No comecinho de 1995, eles anunciaram que estavam se separando, mas isso é uma outra história.

Jeremy Enigk. Foto: Brian-Maryansky

O Sunny Day Real Estate não inventou a gramática emocional, mas refinou a linguagem e o modo de comunicá-la. Diary foi um meio para que isso se estabelecesse. Um disco que democratizou dores turbulentas e que serviu de norte para uma coleção de bandas que tentam até hoje reformular e oferecer algo parecido. Impossível! Diary é único. É sobre sentir, lembrar e ir ao encontro de quem nos tornamos.

Hoje, depois desses 25 anos, Diary ainda arranca lágrimas, arrepia e nos dá uma sensação boa de pertencimento a um canto aconchegante que abraça a saudade de um jeito obsceno de tão lindo. Deve ser isso o tal balagandã que João disse que só ele poderia ter.