Especial Warfare Noise I: Parte 1 Entrevista Vladimir Korg (Chakal)

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A origem de um movimento cultural e musical reflete a linguagem assumida por seus integrantes. No caso do metal brasileiro, essa linguagem determinou todo o processo ideológico, sonhador e desbravador de uma geração que usou a agressividade para construir um cenário importantíssimo para o heavy metal mundial.

O berço disso tudo? Belo Horizonte, carinhosamente nomeada como a capital do metal brasileiro. Uma cidade com forte apelo religioso que teve que aprender a lidar com uma brutalidade disposta a usar a força e a coragem para romper com esse status e esfregar na cara do conservadorismo o seu lado podre, feio, sujo, algoz e repressor.

Foto: Sounds Like Us

O metal dos anos 80 era um celeiro de ideias, sonhos e desencantos compartilhados por uma geração que crescia sob os escombros de uma ditadura já fora de quadro (entre longas aspas), mas que, na prática, ainda censurava, agredia, humilhava e combatia a revolta que a música pesada alimentava na cabeça e coração da juventude.

Os discos ainda custavam caro. Tempos de inflação descontrolada. Importados, nem pensar. O Plano Cruzado não deixava. O jeito então era a famosa troca de fitas, sem dúvidas, um dos melhores meios para se conhecer novas bandas. Um dos melhores, mas não o único. No final dos anos 80, algumas gravadoras lançavam coletâneas que serviam como uma espécie de apresentação do cast de cada uma delas. Um das mais influentes foi a coletânea Warfare Noise I (1986), lançada pela Cogumelo Records, com as bandas: Chakal, Mutilator, Sarcófago e Holocausto.

Seguindo a ordem do LP, o Chakal foi a banda responsável pelos primeiros gritos e acordes ruidosos que surpreenderam muito na época. As letras eram palpáveis e expurgavam uma raiva inteligente e questionadora, onde o Chakal já refletia uma preocupação em falar do mundo real sob riffs bem trabalhados e o peculiar vocal de Vladimir Korg.

Nessa primeira parte, a gente traz a entrevista com o Vladimir Korg, um cara que viu o metal nascer em BH, trabalhou na Cogumelo Records, além de ter participado de bandas importantes daquele cenário.

Sounds Like Us: Existem alguns movimentos que, quando estouram para o grande público, na verdade já terminaram internamente. Um exemplo: o hardcore de Washington DC, de bandas como Minor Threat e VOID, chegou no Brasil tardiamente, quando o movimento praticamente já tinha terminado pra eles lá nos EUA. Já em Minas Gerais aconteceu o contrário: o movimento nasceu e cresceu aos olhos dos fãs. Antes do Warfare Noise I acontecer, você já enxergava esse movimento metal se desenhando em MG? O que foi possível ver “em primeira mão”?
Vladimir Korg:
Acredito que, quando comecei a trabalhar na Cogumelo Records, fiquei em uma perspectiva privilegiada. A dificuldade de obter informação complicava a estruturação de algum movimento. Havia grupos de pessoas em diversos bairros que ouviam heavy metal e, principalmente, o “novo heavy metal”. Eu mesmo dependia de gravações podres e xerox de fanzines de amigos para conhecer bandas novas. Havia núcleos de ouvintes que não se conectavam. Havia alguns espaços que abriam para alguns encontros ou shows, mas sempre com um olhar desconfiado por parte dos donos desses locais.

A Cogumelo acabou se transformando em um centro que conectou todos esses grupos e, assim, finalmente, havia um lugar onde as coisas poderiam germinar. É claro que a Cogumelo era uma loja de discos e nunca perdeu esse foco do comércio. Ela se sustentou por tanto tempo justamente por isso. Por mais romântico que poderia parecer essa questão de movimento, eles eram comerciantes. O caixa tinha que fechar, havia funcionários a serem pagos e compras a fazer. Isso fez a coisa funcionar. Por mais que os donos fossem “roqueiros” e dessem liberdade para eu colocar o som no talo, seja o que fosse, eles tinham que manter a máquina rodando. Eu interceptava pessoas na rua que tinham cara que ouviam rock e cabeludos e vinha com a história de que eu trabalhava em uma loja de discos e colocava o som no toco. Sempre acabava com o convite: “Chega lá depois pra gente ouvir um som”. O discurso depois mudou pra: “Galera, eu tenho que fechar a loja”.

Leia também: 
Especial Warfare Noise I (parte 2): entrevista Silvio Gomes (Mutilator)
Especial Warfare Noise I (parte 3): entrevista Gerald Minelli (Sarcófago)
Especial Warfare Noise I (parte 4): entrevista Holocausto

Sounds: O ano de lançamento do Warfare Noise I foi também pesado política e economicamente falando. Plano Cruzado, inflação, Diretas Já, Sarney, pré Plano Bresser e em meio a todo esse furacão, o presidente mineiro Tancredo Neves tinha falecido um ano antes. Você acha que toda essa situação ajudou todos aqueles jovens e novas bandas de Minas a colocarem toda revolta pra fora por meio da música?
Korg:
Acho que podemos abrir mais esse leque. A maioria das pessoas, principalmente as mais jovens, pode não lembrar ou não passou por essa timeline dos infernos. O heavy metal foi uma das vertentes, talvez a mais radical, a se expressar de maneira mais agressiva. Mas é bom pontuar que nesse início dos anos 80, final de ditadura, muitas pessoas soltaram o grito também. Nas artes plásticas, na dança e inclusive no futebol. Como nessa época eu trabalhava na Cogumelo, pude viver a intranquilidade econômica que o país passava. Hoje, estamos em uma crise, que é mundial, mas sabemos que ela vai passar daqui dois ou três anos. Naquela época a gente achava que viveríamos daquele jeito pra sempre. Não tínhamos esperança de que ia melhorar. Passamos anos sendo vaquinha de presépio do regime militar e, de repente, veio a abertura: agora você poderia se expressar como quisesse. Mesmo assim, eu mesmo tive que abreviar um título de uma música por causa da censura. De “Shoot At The Police” passou para S.A.T.P, do EP Living With the Pigs. A Blitz teve um dos lados de seu single riscado pela censura federal e muitos artistas tiveram advertência na capa de seus trabalhos, além de outros artifícios de censura ridículos.

O metal se mostrou mesmo no Rock in Rio. Principalmente no dia do metal. Você via a desorientação da mídia, principalmente da Rede Globo, golpista (grifo meu), que não sabia quem eram aquelas pessoas de camisas pretas e cabelos desgrenhados. Eles não sabiam o que era aquilo. Inventaram o termo “metaleiro” e tentaram colocar estereótipos e apelidos porque estavam se cagando de medo. É normal quando se depara com o estranho você tentar ridicularizá-lo, isso dá um pouco de bem-estar aos ignorantes. Foi como um grande Cavalo de Tróia. De repente existia uma horda de pessoas que a Rede Globo nem imaginava que existiam. Mas fora do metal, Legião Urbana, Cazuza, Titãs faziam também a sua parte. Se você avaliar todas as “disciplinas” que compõem as artes dessa época, vocês verão que todas se destacaram de alguma forma a favor da liberdade de expressão e da arte. Além de todo esse aspecto político esquisito, estávamos vivendo na efervescência do pós-modernismo e isso foi no mundo todo. Lembro que, nessa época, os anos 60 eram a referência de revolução e tal. Os anos 80 cagaram uma bosta verde limão em cima dos anos sessenta.

Foto: Vanda Gui

Sounds: Com relação às letras, você sempre teve uma preocupação bastante relevante em saber o que queria transmitir. Enquanto isso, muitas das bandas daquela época estavam preocupadas em tocar com máxima rapidez e deixavam a parte lírica um pouco de lado. Você acha que as pessoas não entenderam muito o Chakal? Se os fãs lessem e se aprofundassem nas letras, você acha que o Chakal teria sido uma banda ainda mais reconhecida?
Korg:
Não sei. Acho que depende mais do jeito que a banda trabalha a sua divulgação e sua carreira. Faço letras que combinam com a textura vocal que eu uso. No Chakal é uma, no The Mist era outra, depois no Chakal continuei falando as coisas, mas em um outro contexto. Escrevo algumas coisas para outras bandas também. O Sepultura cresceu com “Necromancer”, “Troops of Doom” e “Morbid Visions”, que são letras extremamente ingênuas, mas na época eram fantásticas. Hoje as coisas são diferentes. Muitas pessoas falaram que meus conceitos no Demon King eram infantis e cobravam que eu tivesse uma postura mais poética como no The Mist. Eu sempre olhava para essas pessoas com seus 40 e poucos anos e pensava que eu não estava interessado no que elas pensavam, e sim no que os filhos adolescentes deles pensavam. Alguns falavam isso e diziam que adoravam o Abominable Anno Domini e eu não entendia nada. Acho que o Abominable… era mais uma memória afetiva e eu estava mais interessado em colocar as cartas na mesa no presente. E ainda estou.

Sounds: Aqui em São Paulo e região, a gente tinha alguns bons representantes do metal mais extremo, como o Genocidio, o Megaforce e o Attomica, por exemplo. Cada uma delas fazendo o seu som. Já nessa primeira leva de bandas de MG, a identidade criada na musicalidade de vocês era muito forte. Você ouvia e já sabia que tal banda era da cena mineira. Você tinha essa percepção estando ali tão perto e vendo toda aquela cena se estruturar?
Korg: Sim. As bandas de thrash e death metal paulistas nos interessavam muito porque as referências sempre eram de metal melódico, principalmente da linhagem Iron Maiden. Toquei com algumas dessas bandas que vocês citaram e todas eram ótimas. O Genocídio já tinha uma proposta pesadíssima. O Attomica tinha um thrash fincado e essas bandas sempre tinham bons instrumentos e tal. A diferença dos mineiros – e isso é a minha percepção – é que nossa turma era de classe média baixa ou baixa mesmo, e não tínhamos muito como comprar instrumentos; então, nossas referências eram mais ou menos as bandas que nós conseguíamos ter instrumentos iguais e visual parecido. Acho que o metal germânico nos influenciou mais. Gostávamos mais dos escrachos para tocar. No início, o Sepultura (Max, no caso) queria que quando se ouvisse Sepultura as pessoas vomitassem, o Sarcófago queria ser a banda mais podre do mundo, o Chakal eram os mendigos, o Holocausto, os pirados. Mas todos com o objetivo de criar uma identidade. Você pode ver isso na coletânea. Você falar que “a banda parecia com x” era uma afronta no início.

Sounds: Como era a sua relação com o Holocausto, Sarcófago e Mutilator?
Korg:
Éramos, e ainda somos todos amigos. Tinha umas tretas do Sepultura com o Sarcófago ou vice e versa, mas as outras bandas ficavam fora disso. Nesta época nós mesmos nos chamávamos de bandas-irmãs.

Sounds: O que você acha que o Warfare Noise I trouxe de bom para sua vida pessoalmente e musicalmente?
Korg:
Para mim foi especial porque eu escolhi as bandas e, depois disso, as bandas que escolhi lançaram discos individuais seminais para o metal brasileiro e, em alguns casos, para o metal mundial. Acho que a Warfare Noise foi uma porta para crianças gravarem um álbum, coisa impensável para a maioria dos mortais naquela época, e dali criarem possibilidades de tocar para as pessoas e em vários lugares diferentes.

Sounds: Como você citou há pouco, nas bandas mineiras era nítida a influência do thrash/ speed metal alemão. Mas o Chakal sempre teve um tempero que parecia vir mais do Death e do Voivod. Você concorda?
Korg:
Acho que no Chakal a minha identidade vocal e influências podem ter aparecido mais. O vocal muitas vezes referencia as pessoas porque ele está sempre “solando”. O Chakal sempre foi uma banda de gosto bastante tradicional e muito diversificado. Eu não sabia cantar e gostava do jeito que o Snake (Voivod) atropelava as bases, e o timbre do Death era muito assustador. Acabei gravando um cover mais tarde do Death. Mas o Chakal, em termos musicais, sempre foi calcado em Van Halen, Black Sabbath, Deep Purple, Judas Priest e, é claro, em bandas contemporâneas a ela. Eu sempre estraguei tudo e sinto muito por isso. Um abraço a todos.