Fugazi: ‘Steady Diet Of Nothing’

In Bandas, Discos
Vinicius Castro

Em um de seus poemas, a polonesa Wislawa Szymborska diz que, no plano para o amanhã, a morte tem a última palavra, que está sempre ao lado do ponto (final).

Em seu hiato, que permanece até hoje, o Fugazi nunca decretou um fim oficial. Foram mais fortes que o ponto (final) e, além de atrapalhar os planos da morte (da banda), também lhe tiraram o direito de definir tal final. Tudo dentro da normalidade, já que isso vem de quem sempre deteve o controle dos seus próprios princípios, seus meios e do (até então) “não fim”.

O Fugazi é daquelas bandas que sempre ofereceram uma cilada daquelas bem ardilosas onde não conseguimos dar luz individual para cada um dos discos da banda, já que toda a discografia, composta por sete LPs, dois EPs e dois compactos 7’’ é muito, mas muito poderosa.

Entre todos, um deles se coloca forte, decisivo e inaugurador do experimentos que viriam a permear os discos que viriam depois. Isso já bastaria, mas ainda temos que contar com o agravante de que esse disco foi gerado durante a Guerra do Golfo. É um disco político? É mais que isso, mas a gente chega lá. Vamos por partes.

Reprodução do livro Keep Your Eyes Open. Foto: Glen E. Friedman

Se Margin Walker, o Ep S/T (aquele com a foto emblemática do Guy na capa) e o Repeater já foram registros poderosos, no segundo disco o Fugazi deu os primeiros indícios de que tinham muito mais instrumentações, ambiências e riqueza criativa para oferecer e mensagens para disseminar. Estamos falando de Steady Diet Of Nothing, que em julho assopra velinhas e comemora sua chegada ao mundo.

Gravado na meca do hardcore de Washington DC, o Inner Ear Studio, é o disco que, de certa forma, liberta um pouco o Fugazi da urgência hardcore, que aparecia mais acentuada em Repeater, e aponta para uma direção mais ambientada em camadas e mais camadas de conversas sinuosas entre cada um dos instrumentos. Steady Diet for Nothing reforça a espontaneidade que o Fugazi sempre sustentou.

Quando visitamos o Inner Ear Studio, Don Zientara, produtor do álbum, disse que esse é um dos discos preferidos dele. Para nós é complicado escolher um predileto, mas talvez esse tenha sido o disco de um dos primeiros encontros da banda com o som que ela procurava. Mas voltemos um pouco na história: afinal, qual é esse som? Sim, porque inúmeras vezes essa pergunta deve ter sido feita por dez entre dez admiradores da banda.

Fugazi
Reprodução do livro Keep Your Eyes Open. Foto: Glen E. Friedman

Quando se conheceram, Ian MacKaye e Joe Lally passavam um bom tempo conversando sobre suas bandas favoritas: The Obsessed, James Brown, MC5, Jimi Hendrix e o dub/reggae jamaicano. Na época, por volta de 86, Ian procurava músicos para o seu novo projeto, definido como uma mistura de MC5 com reggae. Certa vez, Ian viu Lally tocando uma versão, que ele definiu como impecável, de “Pay to Cum”, do Bad Brains, em um show. Isso fez com que Ian convidasse Lally para tocar junto com ele e Collin Sears, do Dag Nasty, que se juntou aos dois para uma jam na Dischord. Tocaram por algumas horas e Joe Lally, inspirado pelas melodias de baixo do Joy Division e linhas de reggae e dub, começou a criar algumas coisas ali mesmo enquanto Ian explorava alguns riffs de guitarra. Naquele mesmo dia, nascia o som do Fugazi.

Apesar do álbum posterior, In On the Kill Taker, ser mais melódico e acessível, foi em Steady Diet… que o nome Fugazi foi talhado de vez no coração de muita gente que mais tarde usaria a banda de Ian MacKaye, Guy Piccioto, Brendan Canty e Joe Lally como referência e suas letras como princípios de vida.

Foi o que aconteceu com a gente. Apesar de termos conhecido a banda por 13 Songs, que reúne os dois primeiros EPs da banda, quando lançado, Steady Diet Of Nothing deu uma boa perspectiva da importância daquela sonoridade que vence cada vez mais a barreira do tempo. E na boa? Somos fãs confessos e já vamos avisando, somos parciais, mas não injustos (risos).

Fugazi
Reprodução do livro Keep Your Eyes Open. Foto: Glen E. Friedman

Em um breve panorama, os anos 90 foram fervilhados por ótimos nomes e todas as atenções estavam viradas para o que a gente chamava de rock alternativo. Seaweed, Sunny Day Real Estate, Pavement, Shudder to Think, Jesus Lizard, Superchunk e o Fugazi eram donas de hinos que explodiam nas caixas de som do quarto da Amanda lá em Uberaba e também falavam alto em casas como o Alternative, por exemplo. Era o começo de uma década povoada por adolescentes que foram sufocados pelo jabá e o estreitamento cultural causado pelo resquício de ditadura no país e que ainda pairava sobre nossas cabeças, memórias e até no comportamento.

De 89 pra 90, uma nova perspectiva se formou e a juventude saiu das sombras para montar suas próprias bandas, em suas próprias garagens, produzir seus próprios shows e escrever suas próprias publicações. Se nos anos 80 o jabá favorecia nomes do pop rock brazuca que viviam no programa do Chacrinha e no Globo de Ouro, nos anos 90 os jovens resolveram se livrar de tudo isso e mostrar que o rock no Brasil era muito mais do que aquela meia dúzia de bandas arremessadas pela grande mídia. Era o início da frutífera era do rock independente da primeira metade dos anos 90.

Junto com essa mudança de perspectiva que rolava por aqui, lá fora a coisa não era diferente. Além da música, o Fugazi tornou-se uma referência. Eles criaram seus próprios códigos éticos e se tornaram uma força vital para a cena independente. Os famosos shows que não poderiam afastar o público pelo preço e os discos que não custavam mais de 10 dólares, por exemplo, são heranças deixadas por eles e que vivem até hoje em posturas de bandas gigantes, como o Pearl Jam, que entrou numa briga famosa com a Ticketmaster porque queria que seus shows não custassem mais que 20 dólares. Mas isso é outra história…

Fugazi
Foto: Sounds Like Us

Steady Diet for Nothing é um disco de conteúdo forte, concebido em épocas de conflito e isso fica evidente em algumas letras.

Muito além do caminho que a banda começava a trilhar, “Exit Only”, além da missão de abrir o disco, assumiu também a tarefa de começar a mostrar a nova estética do Fugazi. Diferentemente da dupla que abre o disco anterior (“Turnover” e “Repeater”), aqui a gente tem riffs mais soltos.

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Em paralelo ao lema Reagan Sucks utilizado pelo hardcore, “Reclamation” traça outros caminhos para falar de política, de um jeito, digamos, mais próximo e instigante. Além de ser uma das mais conhecidas, vai direto ao ponto e traz o baixo sincopado de Lally, nítida herança do dub. These are our demands: we want control of our bodies / Decisions will now be ours é um pé no peito da passividade social e intelectual.

“Nice New Outfit” mantém a banda com dinâmica mais pungente. “Stack” traz de volta a opção por caminhos sonoros menos óbvios e tempos mais quebrados e em “Latin Roots”, Guy leva a conversa para seus ancestrais italianos. A hipnótica “Long Division” examina de forma lenta o rompimento de amizades enquanto, sob os riffs entrecortados de “Runaway Return”, eles reformulam aquela antiga história do filho pródigo e sua volta para algo ou algum lugar – aí vale a interpretação de cada um.

Fugazi
Reprodução do livro Keep Your Eyes Open. Foto: Glen E. Friedman

Em “Polish” o groove reforça os dizeres Everything comes down to you in a world concave para que lá no final dessa deliciosa viagem, “KYEO” (keep your eyes open) traga de volta o contexto que faz desse registro, algo mais que um simples disco. Você ainda tá se perguntando se esse é um disco político? Bom, a faixa que encerra o álbum reforça o foco do conteúdo.

The troops are quiet tonight
But it’s not alright, because we know they’re planning something
Don’t you know things have settled down, down, down
But silence is a dangerous sound
We must, we must, we must keep our eyes open.

Dizer que o Fugazi é genial cai quase em um lugar comum insípido e sem as cores que essa história merece. Como Michael Azerrad disse em seu livro, se existe uma banda que incorporou a ideia de que “our band could be your life”, essa banda é o Fugazi e isso explica muita coisa.

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Reprodução do livro Keep Your Eyes Open. Foto: Glen E. Friedman