Especial HC/DC: Parte 1 Não teve cão, caçou com gato

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Fotos: Sounds Like Us

* Matéria publicada originalmente no site Suppaduppa.

Em abril de 2013, fui a Washington D.C. conhecer a Dischord Records, gravadora fundada em 1980 por Ian Mackaye e Jeff Nelson para documentar a prolífica cena hardcore local que despontava na época.

Para falar da Dischord, é preciso retroceder – rapidamente, claro – 32 anos na história e elencar algumas características da época, como a total falta de suporte para movimentos musicais que não rezavam a cartilha da indústria.Naquele tempo, uma certa turminha chegada num obituário já tinha decretado a morte do punk rock no pós-77. A afirmação não só soava precoce e de má vontade, como ignorava expressões ainda mais revolucionárias, já que a virada para a década de 80 trazia o Bad Brains, um quarteto de Washington que injetou velocidade e agressividade inéditas ao bem-sucedido “1,2,3,4” de outrora.

Era certo que o rock de estádio catapultado mundialmente nos anos 70 não comportava o som que Bad Brains, The Penetrators, The Enzymes e The Slickee Boys vinham fazendo. Mas foi nesse contexto que quatro estudantes da escola Woodrow Wilson formaram uma banda, o The Slinkees, que, com a troca de vocalista, logo se tornou o Teen Idles.


O desenrolar da história é conhecido: a banda, tão fugaz quanto a adolescência, acabou em um ano, mas ainda queria registrar fisicamente sua existência. Com pouco mais de 600 dólares economizados pelos integrantes e a fundamental ajuda de Skip Groff, dono da loja de discos Yesterday and Today, e do engenheiro de som Don Zientara, os beeem jovens Ian Mackaye (baixo) e Jeff Nelson (bateria) decidiram fazer o impensável: gravar o próprio disco e distribuí-lo com as próprias mãos.

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O que poderia ser apenas uma lição isolada de como realizar um sonho por vias alternativas e realmente independentes tornou-se algo muito maior. O nascimento do EP Minor Disturbance, do Teen Idles, era, também, o nascimento da Dischord Records.

A partir daí, começa uma das histórias mais motivacionais e menos auto-ajuda de que se tem notícia na indústria musical. À margem da indústria per se, em que o lucro dita as regras em um jogo claro de produção -> vendas -> encalhe -> despejo de artistas, a Dischord sobrevive há 34 anos.

Nesse período, ela resistiu à explosão popular da música de garagem dos anos 90, à cristalização do ouvinte em consumidor, à revolução do MP3, à pirataria acessível e ao confuso e imprevisível cenário atual.

Um ano depois de sua criação, a Dischord teve sua sede transferida para Arlington, no estado da Virgínia. Ir de Washington para Arlington significa andar algumas poucas estações do metrô. Uma ligeira caminhada e pronto, eis a Dischord House, com sua varanda eternizada na primeira demo tape do Minor Threat e no EP Salad Days.

Mas o escritório da Dischord saiu da emblemática casa e foi para um depósito logo em frente. Dentro, centenas de LPs lacrados, mais algumas centenas de CDs, todos com o bom e velho logo preto-e-branco da credibilidade. Legenda mental: paraíso.


Sou recebida por Aaron e Brian – Ian está fora da cidade, em turnê com o The Evens. Enquanto Brian separa os pedidos – a maior parte será entregue nos EUA mesmo – Aaron me mostra todo o depósito, além de me deixar fotografar um ambiente que, muito provavelmente, é tão rotineiro para eles quanto significativo para mim. Pergunto se muitos vêm ver a casa, e ele diz que isso não é muito recorrente hoje em dia, mas já houve  uma vez em que uma mulher, que acompanhava um fã, olhou ao redor e perguntou “mas quem é o famoso aqui?”.

Converso com eles sobre a cena atual de DC e arredores, e Aaron me dá uma resposta sintomática: com um aluguel tão caro quanto o de Washington, fica difícil surgirem bandas genuinamente punks. O obstáculo vai além do financeiro, aliás: com a vida mais centrada nos apartamentos – e menos nas garagens – há poucas oportunidades para ensaiar. Isso faz com que mais bandas surjam ou passem a morar em Baltimore, a menos de uma hora de Washington, no estado de Maryland. A capital da nação e berço do DIY perdeu feio a briga com a bolha imobiliária.

E ainda assim, algumas boas dezenas de pessoas mandam seus trabalhos para serem avaliados por Ian e companhia. Aaron puxa uma caixa cheia de envelopes com CDs – muitos deles 100% manufaturados.


Há algumas sólidas razões para que uma banda sonhe em assinar com a Dischord – lembrando que assinar, aqui, é apenas uma referência simbólica, já que nunca, nos 32 anos da gravadora, houve um contrato.

A primeira delas é que Ian e Jeff identificaram, em meio ao lançamento do EP Minor Disturbance, que D.C. se abria como um baú de futuras preciosidades do punk, e aquelas bandas deveriam ser documentadas. A começar pelos dois, que mal esfriaram o Teen Idles e já embarcaram no Minor Threat.

Em paralelo, as garagens fervilhavam novidades: S.O.A, do roadie mais famoso do hardcore, Henry Rollins; Government Issue; Youth Brigade; e Untouchables, do irmão de Ian, Alec Mackaye.

Alec, aliás, empresta suas mãos cobertas com um “X” à famosa capa do EP do Teen Idles. O “X” marcado nas mãos foi descoberto em uma turnê em São Francisco, e indicava um menor de idade nos shows. Logo que chegaram à DC, adotaram o símbolo como uma tática para os mais novos conseguirem entrar nos clubes, e para os bartenders saberem que aquela pessoa não poderia consumir álcool.

A juventude de Washington nunca estivera tão inquieta e musicalmente ativa. O dinheiro trazido com as vendas do EP do Teen Idles se transformaram em capital de giro, e a Dischord desovou mais dois álbuns em 1981: o EP No Policy, do S.O.A, e o EP homônimo de estreia do Minor Threat. Nova entrada de dinheiro, mais discos lançados. E assim, a Dischord foi alçando voos firmemente amparados pela reciprocidade do público, que comprava os discos, ia aos shows e fomentava a cena.

Hoje, o catálogo da Dischord compila bandas que chegam a catapultar ideologias por meio de músicas – de forma não proposital, em algumas vezes. O Minor Threat (1980–1983) viu o movimento straight edge emergir de uma interpretação da música homônima. Já o Embrace (1985–1986) e o Rites of Spring (1984–1986) aprofundaram melodicamente o hardcore de DC e receberam do público a expressão “emo”. Deliberadamente, o Fugazi (1987 até hoje) abraçou um ideal pé no chão de ética e se mantém, até hoje, como referencial de banda que faz o que bem entender, à total revelia da indústria fonográfica.


Nesses 34 anos, a Dischord correu riscos interessantes: o movimento hardcore se esvaziou, novas sonoridades foram exploradas e muitas bandas se dissolveram. O catálogo documental poderia chegar ao fim com a falta de produção. A grande guinada é trazida por esse ser muitas vezes subestimado pelo mercado musical: o ouvinte. Dezenas de adolescentes cresceram ouvindo as bandas da Dischord e decidiram empreender suas próprias músicas. Foi assim que o catálogo, até então histórico, incorporou novidades trazidas por Q and Not U, El Guapo e Black Eyes. E um novo ciclo se abriu, sem sequer conhecer a própria data de validade.

Saber que um dia pode acabar parece ser o motor da Dischord. Diante da noção de que tudo tem fim, seus projetos no presente têm pouca preocupação com o fracasso. Se você entra em um depósito e vê uma série de álbuns lacrados, à espera de um comprador, você pode pensar duas coisas: (1) tais discos estão encalhados, fruto direto de uma modernidade que consome mais música digital do que física; ou (2) no mundo plenamente convencido de que o digital é melhor, ainda há quem aposte em ir ao encontro do público que gosta, consome e preserva o hábito do disco físico.


As duas impressões são plenamente válidas, mas eis que o negócio de Ian e Jeff tem se mostrado resistente a todo e qualquer cinismo. Não se trata de um idealismo que rejeita, esnoba ou ignora a indústria: ela existe, e tem lá suas facilidades. Mas não há obrigação alguma de segui-la se os objetivos são outros.

É como se a turma de Washington tivesse recebido uma porção de “nãos” e dado de ombros. Desde quando o mundo é mundo, sempre vai existir uma opção. Lá atrás, escolheram o improvável e construíram um legado que hoje invade nosso imaginário como sinônimo de ousadia e sucesso. Os próprios donos já escutaram que as operações da Dischord eram irreais e insustentáveis. Como diz Aaron, que foi trabalhar com a comunicação do selo, não se trata de uma fantasia. Se você trabalhar duro e tiver boas ideias, você pode ter uma gravadora sustentável. Em dezembro, esse suposto mundo da fantasia (para alguns) vai fazer 35 anos, pagando funcionários, vendendo discos de bandas de que se tem orgulho e contando, em tempo real, uma velha e básica história de sonhos possíveis.


*Meu muito obrigada a Aaron, Brian, Ian e a todo o pessoal que gentilmente me recebeu na Dischord.