Em seu mais recente disco, o Traitrs, duo canadense, levou a sério a relevância do The Cure para a estética, a cultura, o espírito gótico e pós punk, e também para a música em geral, e fez o que se espera de uma banda que procura contar sua própria história: reverenciar quem a inspirou e, dentro disso, criar a sua própria linguagem.
Em Rites and Rituals (2016), o Traitrs chamou muito a nossa atenção. Nos apaixonamos por “Heretic” e “Youth Cuts”. Pós punk/dark wave tribal, pesado e carregado de refrãos grudentos. Rites and Rituals virou uma constante. Esteve no nosso especial sobre pós punk e em nossa lista dos discos mais legais daquele ano.
Butcher’s Coin, o novo álbum da dupla Shawn Tucker e Sean-Patrick Nolan, soa menos primal que os trabalhos anteriores e caminha em direção a significados mais literais do que chamam de cold wave. É mais dançante e parece bem influenciado pela vertente mais experimental da música eletrônica. Misture isso a melodias dolorosas e letras inspiradas pelo cinema de horror e pronto: temos aí o núcleo que constrói a música do Traitrs.
Pouco antes da chegada desse novo trabalho eles soltaram dois singles e estrearam o clipe de “Thin Flesh”. Sobre isso, o tecladista da banda, Sean-Patrick Nolan, fala: “Os filmes de terror inspiraram muitas das letras e imagens do álbum. Queríamos que o vídeo tivesse essa atmosfera. A iluminação rosa e azul é uma homenagem ao Suspiria, de Dario Argento. O garoto abrindo a caixa é uma homenagem ao Hellraiser, e a cena que segue no armazém é inspirada em David Lynch…”.
Na abertura com “Pale” a semelhança com o timbre vocal de Robert Smith é assustadora. Um enunciado meio morno, é verdade, mas ela cumpre bem seu papel.
Em seguida, é de “Thin Flesh” a missão de delinear o clima mais gelado de Butcher’s Coin, diferente de Rites and Rituals e Speak In Tongues, lançado em 2017, que transitavam por um pós punk mais orgânico. Mais Bauhaus e Alien Sex Fiend, digamos. Dançante, ela aponta para um romantismo gótico alinhado a nomes como Ben Frost e um resgate do The Psychedelic Furs, House of Love e, óbvio, The Cure. Sabe aqueles filmes da década de 80 em que um dos personagens se aproveitava da ausência dos pais para promover uma festinha e impressionar a sua paixão adolescente? Pois é, “Thin Flesh” é a trilha da cena em que a festa sai um pouco do controle, com todos dançando com suas ombreiras, cabelos laqueados, maquiagem carregada e muito neon, como se não houvesse a cena seguinte.
Uma tímida porção de shoegaze aparece na ótima “Omen”, com sua vibe meio Sisters Of Mercy dos sinlges pré First Last and Always, e também em “I Sit and Watch the Worm Beneath My Nail”. Essa última é quem traz para o presente a estética de Rites and Rituals, diferentemente de “The Suffering of Spiders”, que acentua o atual momento da banda, com uma força maior dos teclados.
Os papéis da dupla parecem mais definidos nesse disco e, em determinadas faixas, o protagonismo do teclado cede espaço para um baixo forrado por uma textura granulada – elemento importante no pós punk, responsável por criar frequências relacionadas a fase Faith e Pornography, do The Cure.
Com Butcher’s Coin o Traitrs conseguiu manter o nível de expectativa depositada para esse novo lançamento. É um disco que não inventa nada, mas faz bonito e reforça muito bem todo trajeto nebuloso, dark e melancólico edificado pelos grandes nomes de pós punk.