Entrevista: Justin Sullivan (New Model Army)

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Integridade e uma certa valentia podem sobreviver às modas e esmolas empurradas por uma indústria que, parafraseando Chico Buarque em “Cidade Ideal”, dos Saltimbancos, é uma estranha senhora que hoje sorri e amanhã te devora.

É possível que nosso romantismo assuma o protagonismo em nossa memória, mas a tal integridade nos parece ser o pilar da honestidade que o New Model Army transmite desde a década de 80, quando a música “51 St State”, do terceiro disco, The Ghost of Cain, tomou de assalto as rádios e os pouquíssimos programas de clipes no Brasil. Aliás, vez ou outra, é bem comum escutar alguém se referir a eles como “uma banda de verdade”. Ok, a verdade é subjetiva a cada um, mas em se tratando de New Model Army, veste bem a afirmação. Eles vieram da explosão punk no mundo, mas não eram barulhentos a todo custo. Também pouco tinham a ver com o heavy metal da década de 80, muito menos com a new wave ou mesmo parte do pós punk surgido lá – ainda que fossem, em partes, colocados na mesma conjuntura. O New Model Army pertence somente ao New Model Army e, mesmo não pertencendo a nenhuma das vertentes citadas, angariava fãs de todas elas.

O sucesso de “51 St State” nos levou aos discos anteriores, Vengeance e No Rest For The Wicked. E aí vieram Thunder and Consolation; Impurity; To Love of Hopless Causes e os mais recentes lançamentos; Winter, que trouxe a banda novamente ao Brasil para shows emocionantes; e From Here, lançado em 2019. Cada disco com sua peculiaridade e suas belezas; porém, todos com a estima que o New Model Army sempre despejou em cada acorde, e que, com honestidade, era transmitido para ao público sem filtros.

Queríamos entender de onde vem essa integridade. Também queríamos saber um pouco mais das inspirações, realizações e de onde vêm as letras de um dos artistas mais inspiradores da nossa geração. Mas antes de tudo isso, queríamos realizar um sonho de fãs de música e entrevistar Justin Sullivan, a mente idealizadora de uma das bandas mais legais, e que hoje, aos 64 anos, continua sendo um dos grandes letristas do nosso tempo. O papo aconteceu em abril, no começo do isolamento social e do até então recente álbum From Here, lançado em agosto de 2019, e que ganhou novos significados no ano que corre.

Foto: Solly

Sounds Like Us: Oi, Justin, antes de tudo, agradecemos sua disponibilidade. Como têm sido seus dias na quarentena?
Justin Sullivan: Lendo, escrevendo e indo devagar. Na verdade eu adorei o lockdown, porque o isolamento tem sido fácil para mim, mas entendo que para algumas pessoas isso esteja sendo muito difícil.

Sounds: Você acha que a pandemia mudou alguma coisa em você?
Justin: Talvez. Mas acho que ainda é cedo demais pra dizer o quanto mudei com tudo isso.

Sounds: Recentemente vocês soltaram novos singles, duas músicas de Carnival que haviam sido lançadas na forma de EP quando o disco saiu. A letra de “BD3” é bem visual também por trazer algumas referências. Na época, o que você quis transmitir?
Justin: Bom, esses lançamentos pertencem à versão redux do Carnival, composto originalmente em 2005. BD3 é o código postal do distrito onde eu morava e a música é só um retrato do que estava acontecendo por lá naquela época. O vídeo, relançado recentemente, dá uma boa ideia disso, embora tenha sido feito em uma noite tão fria em que as ruas estavam mais vazias do que esperávamos.

Sounds: O que você pode nos contar sobre a ideia desse relançamento?
Justin: Não muito mais do que a divulgação [da época] já disse, na verdade. Sempre sentimos o Carnival como o único álbum em que a gravação, mixagem e masterização não trouxeram o resultado final perto do que pretendíamos originalmente ao escrevê-lo. Então, quando nossa gravadora, Edel, mostrou que tinha interesse em licenciar e relançar o álbum, como outros que virão, descobrimos quatro faixas, entre lados B e umas músicas inéditas, e vimos nelas uma oportunidade de “reimaginar” o disco como um todo. Estamos cientes de que “retornar” é algo muito perigoso para qualquer banda, especialmente incomum para nós, então fizemos uma regra absoluta de que não regravaríamos nada e pediríamos para o Lee Smith, que mixou o From Here e Winter, para remixar usando apenas as tracks originais, sem que a gente tivesse muito envolvimento. Algumas músicas mudaram muito pouco, outras muito mais. E isso, na nossa opinião, funcionou bem e aprimorou as principais qualidades do álbum, particularmente a riqueza de ideias musicais originais que finalmente foram arranjadas de uma forma sonoramente satisfatória, que traz à tona o poder, a energia e a inventividade do disco. No espírito dessa “reimaginação”, alteramos um pouco a ordem das faixas para incluir os acréscimos – enquanto nosso artista, Joolz Denby, recriou a arte da capa em uma versão totalmente nova.

New Model Army. Foto: Divulgação

Sounds: Considerando as letras de discos mais recentes, como Winter e From Here, você acha que elas ganharam um significado mais forte em tempos de isolamento?
Justin: Em todas as nossas letras vocês vão encontrar coisas que se adaptam a diferentes situações e, às vezes, as ideias e palavras assumem um significado diferente.

Sounds: From Here nos parece um disco preocupado com um contexto maior das coisas que envolvem o mundo. É um disco mais sobre todos, sobre causas maiores e mais relevantes?
Justin: Sim. Em uma época em que tudo se tornou político, em que existem dois lados extremos em cada discussão, em que estamos sendo colocados uns contra os outros, From Here foi uma tentativa deliberada de se afastar dessas disputas e falar sobre o que une a todos nós. Afinal, em um contexto mais amplo de tudo o que está acontecendo no planeta, coisas como o Brexit parecem um pouco menores e estúpidas.

Sounds: Como foi gravar o From Here na Noruega? A estadia lá influenciou alguma coisa nas composições, letras e sonoridade do disco?
Justin: Fizemos tudo em nove dias. Talvez aqueles dias tenham sido os mais fáceis, prazerosos e de união da história da banda. Foi uma aventura criativa compartilhada por todos e também com Lee e Jamie, nossos produtores. Já estávamos fazendo o disco, mas, na metade desse processo de composição, soubemos que iríamos para aquele lugar muito especial e talvez isso tenha sido uma influência. Mesmo tendo apenas nove dias para gravar, Lee e Jamie insistiram que deveríamos deixar indefinidos alguns detalhes de algumas das músicas para que o lugar pudesse orientar nossas decisões. Isso funcionou muito bem; além disso, tínhamos uma regra que dizia que ninguém poderia dizer “não” a uma ideia até que ela fosse realmente experimentada.

Foto: Divulgação

Sounds: Somos muito ligados ao ritual de ouvir música em vinil. Você consegue se lembrar qual foi o primeiro vinil que você comprou? Tem alguma história sobre isso?
Justin: Quando eu era criança, na década de 60, costumava economizar meu dinheiro para, aos sábados, ir até a loja de discos comprar um single. Era muito emocionante. Acho que o primeiro deles foi o End of the Day, do Kinks, que continua soando muito bem pra mim!

Sounds: Um pequeno detalhe na letra de “Where I Am” nos pareceu refletir o que foram esses 40 anos do New Model Army. Ela diz: “And no two days the same”. Qual é a sua leitura sobre o New Model Army sempre olhar pra frente, porém dentro do seu próprio universo?
Justin: Não faço muita questão de olhar para trás. Acho que apenas tateamos nosso caminho ao longo da estrada e cometemos muitos erros, mas sempre estivemos abertos a mudanças quando necessário.

Sounds: Em uma entrevista de 2011 você disse que um de seus lugares preferidos para visitar era o Brasil, o que nos deixou imensamente felizes e nos fez lembrar do último show de vocês aqui em São Paulo. A abertura com “225” nos emocionou e fomos às lágrimas de fato. O que o Brasil provoca em você de tão especial?
Justin: Sim. Acho que é um lugar muito especial, onde o melhor e o pior da experiência de estar vivo se unem como gêmeos siameses e não podem ser separados. Tudo parece mais claro e escuro ao mesmo tempo, mas sempre verdadeiramente vívido. Certa vez, um brasileiro me disse que em seu país a divisão entre o mundo espiritual e o mundo material é incrivelmente tênue. Eu meio que sinto isso de alguma forma, mas no Brasil parece que há uma maior aceitação dessa ideia do que na Europa ou na América do Norte.

New Model Army ao vivo em São Paulo. Foto: Sounds Like Us

Sounds: Por conta de músicas como “The Hunt” e51 St State”; da interpretação de “Vengeance” na época em que foi lançada, e de “Here Comes the War”, entre outras, o New Model Army é colocado como uma banda politizada. Isso te incomoda? Música e política podem caminhar juntamente?
Justin: Acho que é fácil formular significados sobre as letras então esse tipo de música recebe mais atenção na mídia. Mas as pessoas que realmente seguiram e ouviram o que temos feito sabem que esta é apenas uma parte do que fazemos. Claro, política e música podem caminhar juntas em um nível emocional, mas isso não é o mesmo que usar a música para uma agenda política, que é algo que nunca fizemos.

Sounds: Navigating By The Stars, seu disco solo, foi composto logo depois da tragédia do 11 de setembro. O quanto essa, ou outras tragédias, mexem com você a ponto de você pegar o violão e criar um disco lindo desse, por exemplo?
Justin: A história é simples assim: eu estava começando a trabalhar no primeiro álbum solo quando o 11 de Setembro aconteceu, da mesma forma que estava começando a trabalhar em um segundo álbum solo quando a pandemia começou. Não acho que as tragédias me afetem muito neste sentido. O disco foi composto no começo do lockdown, que, para muitas pessoas, foi um momento de reflexão e fuga para outros mundos. Navigating by the Stars, feito na sequência do 11 de Setembro, era composto por canções sobre o amor ao mar. Quando um assunto está dominando as ondas do rádio, é natural para mim querer levar as pessoas a outros lugares. Não tenho certeza se a melhor música é criada referenciando diretamente o que está ao seu redor. Frequentemente, a melhor música é feita do desejo de criar algo diferente, algo oposto, um outro lugar, uma paisagem sonora diferente na qual você possa se perder.

Sounds: Já que você citou estar em processo de composição de um novo disco solo, o que você acha que ele pode trazer de diferente?
Justin: Ele é diferente de Navigating. Talvez um pouco menos relaxante e mais eclético no clima. Ambos são muito diferentes dos álbuns do New Model Army. Para começar, não há bateria, apenas um contrabaixo jazzístico, os tempos são mais lentos. Ambos são discos com canções que contam histórias.

Sounds: Nessas quatro décadas, teve algum acontecimento que fez você perceber que sua música realmente tinha mudado a vida de alguém?
Justin: Tento não pensar muito sobre essas coisas, mas aceito a ideia por causa do enorme efeito que a música de outras pessoas teve na minha própria vida. A música é uma magia incrivelmente poderosa.

Justin Sullivan. Foto: Bobo Boom

Sounds: Você é um grande letrista e muita gente vê inspiração em suas letras. O que fez você encontrar sua própria voz na hora de compor?
Justin: Como mencionei antes, a música é feita pelo desejo de criar e expressar uma ideia, um sentimento, uma verdade. Então, escrever letras é algo que faço e quero fazer isso da melhor maneira possível. Trabalhei muito nisso e tentei aprender essa arte. Às vezes as letras vêm com facilidade. Outras vezes nem chegam a acontecer. Mas nunca acreditei realmente em “bloqueio de escrita”. Tenho tendência a acreditar que as pessoas podem aprender a fazer tudo o que quiserem, mas têm que trabalhar nas partes fáceis, e também nas horas difíceis.

Sounds: A segunda metade da década de 90 foi meio estranha pro rock em geral. As gravadoras queriam um novo Nirvana e isso abafou alguns discos lançados naquela época. Você acha que registros como Eight e Strange Brotherhood sofreram os efeitos daquela época?
Justin: Nunca prestamos muita atenção ao que as pessoas, especialmente a indústria, desejavam ou sobre o quanto faríamos sucesso ou não. Viemos da revolução do punk. Nunca pensamos nisso como “uma carreira”. Era apenas pela alegria de fazer as coisas que queríamos fazer. E ainda somos os mesmos, sortudos o suficiente para seguir nossa própria estrada e continuar caminhando.

Foto: Matthias Hombauer

Sounds: Acreditamos que o New Model Army é uma banda que ama o que faz, então não vamos perguntar qual é o segredo pra manter a longevidade. Mas gostaríamos de saber se em algum momento desses 40 anos você chegou a pensar em parar com a banda ou desanimou de fazer música?
Justin: Ah, eu saí da banda várias vezes nos primeiros anos por raiva e frustração. Coisa de jovem… hahaha. Mas isso nunca aconteceu por mais de 48 horas. E, ocasionalmente, eu tenho um período sombrio em que costumo me perder, mas geralmente tenho fé na ideia do New Model Army como uma força criativa e encontro meu caminho de volta novamente.

Sounds: Nessas quatro décadas, que mudanças o mundo passou que você mais se sente feliz em ter visto acontecer?
Justin: O aumento da consciência de que estamos todos juntos no planeta. Infelizmente estamos vivendo uma reação horrível a isso, liderada por pessoas que desejam nos colocar uns contra os outros para que possam tomar o pouco que resta.

Sounds: Depois desses 40 anos, tem algum sonho que você ainda não realizou?
Justin: Ah, tem sim. Fazer o disco “perfeito”, tocar em um show “perfeito”. Mas como essas duas ideias são inatingíveis, fico feliz em continuar tentando.

Foto: Marja Väänänen