Livro: ‘Barbed Wire Kisses’ – A História do Jesus & Mary Chain

In Bandas, Livros
Vinicius Castro

Já nas primeiras linhas do prefácio de seu livro Barbed Wire Kisses, Zoë Howe seleciona de forma precisa a palavra que melhor veste a sonoridade do Jesus and Mary Chain: temperamental.

Foi essa a exata sensação despertada por aquela banda que parecia variar de humor, mas sem jamais esmaecer sua potência. Incômodo e atração por uma sonoridade que, aos barulhos e microfonias, repelia e aproximava com o mesmo encanto.

William Reid, Douglas Hart, Jim Read e John Moore no set de filmagem do clipe de “Happy When It Rains”. Foto: Andrew Catlin

O título da biografia escrita por Howe e publicada no Brasil pela editora Sapopemba é também o nome da coletânea lançada em 1988, responsável pela minha inauguração e, por que não, comunhão com o Jesus and Mary Chain.

A primeira vez que ouvi o disco foi na Hi-Fi, uma loja de disco que ficava no então novíssimo Center Norte, o shopping mais desejado pela criançada naquele tempo. Lá havia vitrolas onde você podia ouvir os discos que quisesse. Entre as faixas de Barbed Wire Kisses, ” Upside Down” e a versão para “Surf in USA”, do Beach Boys, um chute na boa vibe da música original e em todo e qualquer sorriso e que pudesse acontecer ali. Naquele momento, o som do mundo era aquele que acontecia ali, dentro do fone, e nada mais. Estava então capturado pelo espírito que Howe definiu tão bem e que costura os becos de uma história interessantíssima.

Barbed Wire Kisses, a biografia, foi lançada no Brasil no dia 27 de junho de 2019, sob o paredão noise misturado à emoção de ver o Jesus and Mary Chain, e ouvi-los em ensurdecedor volume dentro da casa de shows Tropical Butantã (SP). Verdade que, até minutos antes da banda subir ao palco, parte do público estava meio receoso, mas um Jesus and Mary Chain entregue e coeso derrubou e toda e qualquer dúvida sobre se aquele seria ou não um grande show. Foi!

Um dos tantos shows caóticos provocados pela banda. Foto: Andrew Catlin

Parte dessa dúvida perseguiu quem já acompanha a banda e sabe da predisposição dos irmãos Jim e William Reid de causar o caos em suas apresentações. Muito desse “dom” é dissecado com riqueza de detalhes no livro.

Um ponto interessante é como Howe consegue fazer com que algumas críticas consigam conviver entre as páginas. Seja sobre quando a banda ganhou destaque por fazer um show horrível, segundo a revista Sounds, ou quando a NME disse que eles eram uma mistura de Sex Pistols e Joy Division. Barbed Wire Kisses mostra como essas críticas ambíguas eram parte do Mary Chain. Nas palavras de William: “São basicamente os tipos de críticas que você quer. A melhor e a pior”. Mesmo porque, como reforça Howe, nada no Mary Chain é mais ou menos.

A autora também conta quando a banda foi ao Top of the Pops, programa famoso da TV inglesa, para dublar “April Skies”. O Jesus and Mary Chain ficou feliz, era um sonho pra eles, mas pouco antes de irem ao ar, a ordem de Jim foi: “Sem sorrir!” (risos). Estavam bêbados como de costume, e antes do programa acontecer, tiveram alguns ensaios de posições para que as câmeras pegassem todos os movimentos de cada um da banda. O produtor do canal perguntou a Jim o que ele ia fazer quando o programa começasse. Ácido, Jim respondeu: “Não sei exatamente o que vou fazer, só vou cantar, pode ser?”. O programa começou e Jim passou a se mexer demais, saindo das marcações, deixando os câmeras confusos e a equipe do estúdio bem desgostosa. Dali em diante, foram banidos do Top of the Pops.

Jesus and Mary Chain no programa Top of the Pops

Com um texto leve, convidativo a uma leitura voraz, Howe aborda todas as fases da banda cronologicamente relacionada a seus discos, o que faz a gente se deslumbrar com diversas curiosidades sobre cada um deles. Como sobre um dos nossos prediletos, Automatic, que, segundo Mick Houghton, “foi provavelmente o disco menos bem recebido da banda”. Custamos a entender. Como um disco com músicas como “Here Comes Alice”, “Blues For a Gun”, “Head On”, “Halfway to Crazy” e a maravilhosa “Between Planets” pode ter tido aquela recepção? Essa é a riqueza da biografia: as histórias. São essas descobertas que nos aproximam ainda mais da banda.

Pouco antes, no mesmo capítulo, Howe conta que “o relacionamento entre os Reid sempre tinha sido combativo, mas aquela atmosfera pesada no estúdio dava uma noção do que estava para acontecer. O humor do disco, das letras, o brilho da bateria eletrônica, tudo parecia refletir o lado pessoal da banda – enquanto Darklands é mais leve, sensual e introspectivo, Automatic tem linhas limpas e cortantes e, por vezes, uma autoconfiança desafiadora, como a da cocaína se comparada à névoa inspirada em ácido de Psychocandy”.

Registro do caótico show no The Ambulance, em 1984. Foto: Andrew Catlin

Os excessos e a necessidade, não só dos Reid, mas que toda a banda tinha em relação ao álcool, acompanham boa parte do livro e rendem histórias que nem sempre são bons momentos. Um exemplo é a parte do capítulo que narra a tour com o Nine Inch Nails, em que Douglas Hart, baixista original do Jesus and Mary Chain, lembra que Trent Reznor e sua banda “faziam exercício e bebiam aquelas coisas com proteína que fisiculturistas bebem”, enquanto o Mary Chain ingeria “vários tipos de líquidos e sólidos cristalizados antes de entrar no palco”.

Aos fãs ávidos por histórias de bastidores, o livro também traz as inúmeras tretas entre os irmãos, com outras bandas, empresários e gravadoras. Os Reid não eram fáceis na mesma medida em que juntos são geniais.

É interessante também que outros “causos” menos explanados na época são trazidos no livro. Como nas gravações de Stoned & Dethroned, época que culminou no fim do casamento de William e o início de uma relação dele com uma cantora indie da época – tem que ler o livro, não vamos entregar (risos).

Foto: Divulgação

Parte do release oficial da Editora Sapopemba diz o seguinte: “Zoë penetrou no mundo quase indecifrável dos irmãos Reid, ouviu as principais figuras que orbitaram ao redor de Jim e William desde 1983, quando a semente do Jesus and Mary Chain começou a germinar, e apresenta a história de uma banda que tinha tudo pra dar errado, mas que se tornou um dos nomes mais influentes do rock…”.

De fato, lendo a biografia fica claro que a banda tinha tudo para dar errado, e talvez isso tenha feito com que o Jesus derramasse sobre a música o seu poder.

Douglas Hart, que ficou na banda por oito anos, diz: “… já vi muita banda, mas nenhuma como o Mary Chain, nunca!” Depois de mergulharmos nessa biografia, reforçamos o coro de Hart. Não é sobre melhor ou pior. A questão é que eu também nunca vi uma banda como o Mary Chain, nunca!

“Barbed Wire Kisses, A história Do Jesus And Mary Chain”

Escrito por Zoë Howe
Editora Sapopemba
Tradução: Letícia Lopes Ferreira
348 páginas
Lançamento: junho de 2019

Foto: SOUNDS LIKE US