Vinicius Castro
Em Chasing Trane, documentário sobre John Coltrane, o filósofo Cornel West, em uma de suas falas, relembra: “Os negros não podiam adorar a Deus sem a permissão dos brancos. Então, o que você poderia fazer? Você saía à noite, pra perto do riacho, dava as mãos em círculo e levantava sua voz. Levantava sua voz… A música negra era a resposta dos negros ao terror e ao trauma. ‘Vamos compartilhar algum conforto e delicadeza contra o contexto de catástrofe’”. West ainda finaliza sorrindo: “Isso é a música negra”. Uma fala tão certeira quanto a emoção que a gente sente de vê-la brotar da mente daqueles que vêm se tornando raros personagens nos dias que correm, os chamados pensadores.
Ainda no mesmo filme, um dos biógrafos de Coltrane alerta que para entender um pouco o início de tudo, é preciso lembrar que ele cresceu no sul dos EUA em meio a uma segregação racial imposta e injusta. Nesse recorte, a igreja era a ideia de força que sustentava sua família e o ponto de origem de suas primeiras experiências musicais. Fé, música e espiritualidade entrelaçadas.
Esses fatores são os pilares principais para ilustrar a maneira como Coltrane transportou para “Alabama” momentos carregados de tanta dor.
Se a palavra jazz te assusta, repense. Não há melhor ponto para as surpresas que a vida impõe do que o despreparo. Então, largue seu pré-conceito pelo caminho. Não será preciso conhecer a fundo a gramática e os fundamentos do estilo. Tão pouco entender de métricas, andamentos quebrados, notas, escalas, teorias. É preciso somente sentir sem qualquer racionalidade o que esse tipo de música pode trazer.
“Alabama” é encapada por uma bagagem emocional que transborda. Quando toca, cala. Não há como desviar, conversar, ler, ou fazer qualquer outra coisa. Somente ouvir.
Coltrane escreveu “Alabama” em homenagem às quatro vítimas de uma explosão ocorrida em uma igreja batista, no dia 15 de setembro de 1963, em Birmingham, Alabama, EUA.
Quatro meninas negras que estavam na igreja morreram na explosão orquestrada pela Klu Klux Klan, grupo racista que se escondia por baixo de uma túnica e dos valores criminosos que serviam de proteção para uma covardia de largas dimensões.
Naquele dia, Addie Mae Collins, Denise McNair, Carole Robertson e Cynthia Wesley tiveram suas vidas brutalmente encerradas.
Em seu discurso, três dias após o crime, Martin Luther King as chamou de Children of God. E completou: “They are the martryed heroines of a holy crusade for freedom and human dignity”.
Coltrane foi inspirado pela fala de King e, assim como na força que ela carrega, “Alabama” também transmitiu esperança para aquela comunidade. De um luto inicial, passou a uma escuta de renovação e reforço na luta contra crimes raciais. A partir dali a música se tornou um hino e um importante marco da humanidade.
Tão pesada quanto sensível, “Alabama” foi gravada em 18 de novembro de 1963. Coltrane entrou no estúdio de Rudy Van Gelder, em Englewood Cliffs, Nova Jersey, e gravou. Não contou pra ninguém ali presente. Nem mesmo McCoy Tyner (piano), Elvin Jones (bateria) e Jimmy Garrison (baixo), sabiam sobre as razões daquela música.
A história conta que eles tocaram a faixa por cinco vezes. Valeu o último take. O resultado é algo à flor da pele. Da pele negra. De um coração sangrado. Negro. Nossa impressão é que Coltrane concentrou tudo em si, como se contar sua motivação a alguém pudesse colocar em risco a carga espiritual que ele desejava imprimir naquela música.
“Alabama” aparece no disco Live at Birdland, um registro gravado ao vivo que abre com “Afro Blue” e ainda tem “Your Lady” e tantas outras maravilhas.
Os respiros na melodia de “Alabama” abrem espaço para a captação da tristeza que diz muito sobre a injustiça que desencadeou o movimento pelos direitos dos negros.
No início da música, acompanhado de um piano tenso, Coltrane faz como King e discursa sozinho. Cuida do nosso despreparo tranquilizando nossos sentidos para que a gente entenda o que ele quer dizer ali, sem palavras, mas com uma melodia que sangra a cada nota. A mesma melodia que passa por uma delicadeza extrema também fere a certeza de quem acredita que bombas diárias, em seus mais diversos formatos e vozes, possam calar a esperança. Não podem. Nossa esperança é tão alta quanto a dinâmica crescente ao final de “Alabama”. Tão alta como uma raça orgulhosa, forte, com suas dores e convicta de seus valores.