Entrevista Faixa a Faixa: Bufo Borealis

In Bandas, Discos

Um universo entre o combativo canto punk e o encanto com que o jazz elegantemente ocupa e oferece espaços. Entretanto, há também o noise, o groove da música preta entre percussões, beats, andamentos, e o experimentalismo contemporâneo. O Bufo Borealis flerta com todos esses universos. É raiz punk a serviço do groove.

Recentemente, o duo idealizado por Juninho Sangiorgio (O Inimigo/ Ratos de Porão) e Rodrigo Tucano (23:13) lançou o disco Pupilas Horizontais recheado de participações especiais; entre elas, Edgard Scandurra (Ira!), Fernanda Lira (Crypta), Rodrigo Carneiro (Mickey Junkies), Roger Martins (Hurtmold), Anderson Quevedo (VRUUMM), Bruno Buarque e Paulo Kishimoto (Forgotten Boys).

Entre uma coleção de nuances há ruídos e uma sapiência em saber usar o silêncio também para contar algumas histórias ou mesmo mexer com nossas percepções por entre as seis faixas que compõem o disco de estreia da banda. E é sobre cada uma das músicas que a gente a gente bateu um papo com o duo, que nos contou as curiosidades presentes em cada faixa.

Sounds Like Us: De onde surgiu a ideia de montar o Bufo Borealis e como e quando vocês entenderam o caminho que queriam dar para a sonoridade que vocês atingiram no disco?
Juninho Sangiorgio – Eu e o Rodrigo já havíamos tocado juntos no Insurgência Ópera de Protesto, que é uma banda que faz um som mais na linha rock 70 misturado com Rollins Band, então já estávamos na pegada de compor e fazer um som. O Bufo Borealis foi uma continuação dessa parceria. O Rodrigo saiu da banda e um pouco depois nos juntamos pra fazer um outro projeto. Foi meio natural pensar nesse estilo de jazz experimental, que é algo que curtimos muito, mas nunca havíamos tocado em nenhuma banda. As primeiras conversas mais concretas de se encontrar e começar a produzir foram em fevereiro de 2019. Lá eu já tinha comentado de o Paulo Kishimoto, Roger e a Fernanda Lira sobre eles terem uma participação nessa história.

Sounds: Vocês dois têm uma forte base no punk e uma ligação próxima com a música preta. Onde vocês acham que ocorre a intersecção da sonoridade do Bufo Borealis com esses dois universos?
Juninho: Verdade! Essa é nossa escola, então a gente acaba tirando muita coisa disso, musicalmente e na atitude também. Se você vai pesquisando a história da música preta, ela tem muito da atitude punk ali, muita coisa do “faça você mesmo”, então conectar tudo fica uma maravilha só. Musicalmente falando, nosso disco foi surgindo conforme íamos adicionando os convidados, e todos eles já conhecem nossa história no punk, então todo o clima era regado a “faça você mesmo”. Íamos de bike pro estúdio, não tínhamos equipamento suficiente pra proporcionar uma parada profissa, então o espírito punk tava ali o tempo todo. Acho que isso contrastou com as ideias elegantes do som, e assim chegamos nesse resultado que funcionou pra caralho!
Rodrigo “Tucano”: É bem isso mesmo! Acho que é tudo uma coisa só e que está tudo conectado mesmo, não ter amarras e fazer rolar…  

Sounds: Pupilas Horizontais foi captado e produzido por vocês dois? Contem um pouco sobre o processo de captação em estúdios diferentes e todo o faça você mesmo da gravação.
Juninho:Exato. Nós dois fizemos todo esse corre de gravar apenas com uma placa M-Audio de dois canais, alguns mics, um fone de ouvido e um computador HP com um programa chamado Reaper.
Rodrigo:Foi bem legal isso, de trabalhar com o que tínhamos ali.
Juninho: As captações de bateria e alguma coisa de percussão foram todas feitas em dois canais (bumbo e over) no estúdio Fuego [saudades, Fuego].
Rodrigo: Depois que gravamos as baterias – que seriam somente as demos, mas que acabaram ficando – e os efeitos de percussão, fomos recheando com o que a gente dava conta de tocar, então muita coisa de guitarra, baixo, synth e piano elétrico foi também gravada no estúdio Fuego, por mim e pelo Juninho.
Juninho: Aí editei e comecei a gravar os baixos e o piano elétrico em casa mesmo, enquanto as guitarras eram gravadas no Vila Estúdio, que fica pertinho de onde moro. Com isso já tínhamos nossa parte registrada; daí começamos com as participações. Todas foram feitas também no Fuego.
Rodrigo: Os metais do Anderson e do Roger foram todos gravados lá também, assim como as guitarras do Edgard. Depois o Juninho e eu fomos à casa do Rodrigo Carneiro gravar o vocal dele; fomos ao estúdio do Paulo Kishimoto para ele gravar os synths… além de todo esse trampo aí no estúdio Vila que o Juninho falou.
Juninho: Pra finalizar fomos no estúdio Minduca, do Bruno Buarque. Ele gravou a percussão e lá mesmo fizemos toda mix. A masterização (pra vinil e digital) foi feita pelo David Menezes, no estúdio Rolo de Lata 77.

“Fênix Hesitante

Chamou nossa atenção o fato de que “Fênix Hesitante” tem um belo crescendo. A ideia era já chegar com a emoção falando alto mesmo e ter aquela pausa com tom de dramaticidade? A música também traz o Rodrigo Carneiro, do Mickey Junkies, nos vocais e ele é um nome bem conhecido por sua poesia e apresentações de spoken word.
Juninho: Todas as músicas do disco foram feitas a partir de alguma referência, e a inspiração desta é uma música do Archie Shepp. Ela tem exatamente esse crescendo que vocês perguntaram. De cara apresenta uma melodia de sax gravada pelo Anderson Quevedo e cria um clima pras falas. A pausa foi proposital, pra que a única voz de todo o disco se destacasse nesse poema que diz tanto sobre a realidade cotidiana. O Rodrigo Carneiro foi a pessoa certa pra participar com a gente.

Rodrigo Carneiro, do Mickey Junkies, durante a captação de voz em “Fênix Hesitante”

As vocalizações da Fernanda Lira, do Crypta, deram um ar, digamos, gospel para a faixa. Pra gente soa como um improviso que ela buscou ali, no momento da captação. Foi isso mesmo? Como foi ter a participação dela no disco?
Juninho: A parte da Fernanda foi um pouco mais demorada. Rolou uma insistência minha pra ela participar. Sempre conversamos sobre ela cantar limpo e tal e essa seria a oportunidade ideal. Por ela não ter costume demorou um pouco pra acontecer, mas quando rolou foi 100% criação dela para as linhas e melodias. Foi muito massa ver a coisa tomando forma, matamos rapidinho e ela ficou super feliz com o resultado, ainda mais depois da mix, que deu uma ambiência, misturou bem a música com o poema e as melodia gospel numa pegada Aretha.

Fernanda Lira, do Crypta, durante as gravações com o Bufo Borealis

“Lagos” 

Sounds: Por algum desses mistérios da música, “Lagos” nos lembrou “Groovin”, do George Benson, só que mais carregada, mais densa. Faz sentido pra vocês? Ele é uma influência no som?
Juninho: “Groovin’” é um som maravilhoso, bem elegante e polido. Nossa ideia com “Lagos” era exatamente ser mais carregada e densa, e a chave disso veio da participação do Roger (Hurtmold) tocando clarone. As notas espaçadas e um fundo sonoro criaram um mantra que soa no meio de duas baterias.
Rodrigo: As duas bateras surgiram logo depois de eu ter trabalhado com o Tony Allen. Na mesma semana fui pro estúdio pensando nele, na música dele e nas nossas conversas e aí o Roger trouxe a “floresta toda” e ficou muito legal.
Juninho: George Benson é um monstro da guitarra, mas é muito difícil mostrar qualquer tipo de influência direta dele no nosso som. Ele trabalha com umas melodias lindas e alucinantes, e o nosso caminho vai mais pro Sonic Youth, saca? Gravei todas as minhas guitarras pensando bem nos discos do John Mclaughlin, com os acordes usando as 6 cordas, delay e wah-wah. Isso leva tudo pra um lado mais experimental mesmo.

“Guerra

Sounds: Quando ouvimos o disco pela primeira vez, lembramos muito das trilhas de blaxploitation. O quanto vocês quiseram buscar o groove do início dos anos 70?
Juninho: Bem legal vocês terem chegado nessa referência dos blaxploitation, porque é exatamente isso que sentimos quando ouvimos vários discos de funk dessa época. É como entrar nos filmes com aquelas cenas de ação bem toscas onde a batera o baixo dão todo o ritmo da perseguição.

Anderson Quevedo, do VRUUMM!

Sounds: “Guerra” é a leitura do Bufo Borealis para a sonoridade do jazz ao final da década de 60 junto com a vibe das coisas instrumentais do Beastie Boys, que tinham um lance mais funkeado?
Juninho: Ela é exatamente o encontro do funk com o jazz. Tem essa batera e o baixo que ficam severos ali o tempo todo, sem massagem (funk!), e vão dando espaço pra todos outros instrumentos solarem (jazz!). Desde que montei essa música pensei em deixar uns espaços gigantes pra cada instrumento solar: teclado, sax tenor e clarone. Especial é a percussão, onde deixamos sei lá quantos compassos só com uma pandeirola de fundo e o Bruno teve que se virar pra preencher o espaço com um improviso completamente fora do padrão.
Rodrigo: É, vocês mataram a charada, porque era isso que a gente queria, final dos 60 e início dos 70, War, Funkadelic…
Juninho: O final pega todo mundo de surpresa, com mudança de andamento e uma acalmada geral; então, gera mesmo essa semelhança com as instrumentais do Beastie Boys, elas funcionam muito bem no meio dos discos!

Bruno Buarque durante a captação de percussão

“Silvestre” 

Sounds: A ideia era basear a estrutura dessa faixa nos riffs de metais do Roger e do Anderson? Como surgiu a ideia de ter os dois no disco?
Juninho: Foi ao contrário! Eles criaram os riffs em cima da nossa base. Tem uma guitarra extra gravada pelo Rodrigo nesse som. Ela fica junto com a batera, do lado esquerdo do fone, enquanto o baixo fica sozinho na direita. Essa guitarra é bem JB’s [James Brown] e acredito que influenciaram os caras nas ideias. O Anderson e o Roger vieram participar com a gente por caminhos diferentes, mas conseguimos juntar os dois no estúdio, daí rolou de gravarmos “Silvestre” com esses riffs simultâneos, bem Maceo Parker. Esse dia foi especial! Foi a única vez em que tivemos duas participações ao mesmo tempo, com resultado incrível porque eles foram conversando e criando as linhas, e cada vez que se repete dá pra perceber que foram se soltando. Do meio pro final os dois estavam mais solando do que fazendo o riff em si.
Rodrigo: Foi o contrário mesmo, a bateria, o baixo e as guitarras foram gravados antes; depois, os dois chegaram, ouviram a música e perguntaram o que a gente tinha pensado para essa primeira parte dos metais, e a gente falou que era uma coisa meio Maceo Parker. A ideia de chamar o Roger partiu do Juninho. Inicialmente era para o Roger gravar percussão e saxofone, mas ele caiu de bike e quebrou o braço. Ele praticamente foi ao estúdio pra avisar que não iria mais rolar de gravar, mas aí ele disse que talvez conseguiria tocar clarone, e a gente achou que ficou muito bom esse lance do clarone dele com o sax. Tive a ideia de chamar o Anderson depois de escutar a banda dele, o VRUUMM, e de ter tocado com ele acompanhando o organista Adam Scone, no Scone Cash Players. Quando estava tudo gravado o Juninho falou que queria um solo de sax pra finalizar, aí o Anderson foi lá e gravou dois solos. Tudo já estava pronto. Foram os metais calcados nos riffs.

Roger, do Hurtmold, em estúdio durante as gravações

Sounds: O final dela é lindo, com o piano dando o clima e a vibe migrando para o jazz de vez. Tem um lance de Ornette Coleman nela, vocês concordam? Essa coisa do riff calcado nos metais.
Rodrigo: A segunda parte veio do piano elétrico que o Juninho tocou e me mostrou, e eu tinha essa levada de batera na manga, que se encaixava bem.
Juninho: O piano veio de uma ideia que tive ouvindo um disco bem obscuro, de 1973, de um quarteto britânico chamado Hanson, e essa parte também mostra um lado bem jazz do nosso som. Fica rolando um quarteto (piano, baixo, batera e sax) bem tradicional. É uma das passagens que seria bem legal de executar ao vivo.
Rodrigo: O final é lindo mesmo! A gente ouvia o solo do Anderson e os “óio” brilhavam toda vez.    

“Indecente” 

Sounds: Existiu alguma ordem para a composição das músicas? Tipo, primeiro vem um riff ou um beat… Perguntamos isso porque “Indecente” nos parece guiada pela linha de baixo e tudo o que acontece meio que surge dessa linha…
Rodrigo: Isso mesmo! Quase todas as músicas partiram dos beats, das levadas de batera, e daí viemos com os riffs. E em “Indecente” rolou isso mesmo, de o baixo ser o guia de tudo ali.
Juninho: Não rolou nenhuma ordem pra compormos. Gravamos vários pedaços aleatórios e fomos montando as músicas, aumentando partes para caber algum solo ou arranjo. Quando estávamos criando não tínhamos a menor ideia de como iria ficar. A maioria das músicas foram iniciadas por beats de batera do (Rodrigo) Tucano, e eu fui criando em cima as linhas de baixo e alguma coisa de piano elétrico. Mas sempre nos baseamos nas influências iniciais que tivemos na criação, então daí foram surgindo as ideias dos outros instrumentos e participações.

Edgar Scandurra, do Ira!, durante as gravações de Pupilas Horizontais

Sounds: Como foi trazer o Edgard Scandurra pra tocar nessa faixa e em “Escuridão”? Onde vocês enxergaram que caberia a assinatura dele na música?
Juninho: O Edgard é bem próximo do Rodrigo, tocam juntos no Amigos Invisíveis, então o convite foi tranquilo. Inicialmente pensamos em três sons pra ele participar, mas no final ficaram só dois, não me lembro exatamente porque, mas imagino que enxergamos mais espaço para as guitarras dele em “Indecente” e “Escuridão”: nesta aqui por ter muita melodia e ele poder botar a assinatura, e “Escuridão” por ser mais noise, uma coisa diferente do que ele toca tradicionalmente.
Rodrigo: É, o Edgard é meu chapa há bastante tempo. Sem falar que sou fã dele há mais tempo ainda. Ele é um cara que pensa muito parecido com a gente, musicalmente falando. Então o lance de a assinatura dele caber na nossa música foi bem natural, porque além dele ser “A assinatura”, nós deixamos tudo livre ali, para que ele tocasse como quisesse. 

“Escuridão”

Sounds: “Escuridão” é uma ótima música pra encerrar o disco e também pra abrir show. Ela tem um pique drum and bass, mas com uma quebra mais soul no meio. Vocês acham que o Bufo Borealis oferece essa liberdade estética de vocês juntarem drum and bass com o que bem entenderem?
Juninho: O Tucano não é um batera de jazz, então desenvolvemos essa pegada mais funk e soul para as batidas, ou até mesmo um pouco de rock, como na pegada da “Escuridão” mesmo, que foi baseada nos electric jazz do Miles (Davis), onde os bateras começaram a tocar mais forte, usar mais o bumbo. A ideia de abrir o show com essa é ótima, daí você já tira do lugar os desavisados hahaha…

Sounds: Dá pra dizer que o Bufo Borealis é um experimento vivo?
Juninho: Experimento vivo é o que iremos buscar quando pudermos tocar ao vivo. Acabando a pandemia temos muita coisa pra testar, ver o que funciona melhor e sim, acho que vamos explorar bem o drum and bass pra todo lado, vai ser bem interessante!
Rodrigo: Exato! É um pouco disso tudo, liberdade estética e experimento vivo. Tanto é que pensamos no disco como disco e no show como show, sem nenhuma obrigação de soar igual.

Sounds: A maioria das músicas é instrumental. Existe alguma mensagem ou significado por trás dos nomes de cada uma?
Juninho: Os nomes dos sons foram baseados nas influências delas: War fez surgir “Guerra”, Tony Allen inspirou “Lagos” (terra natal dele, na Nigéria) e “Fênix Hesitante” veio do próprio Rodrigo Carneiro, pois é o nome do poema.
Rodrigo: Além das que o Juninho falou, “Silvestre” é por causa do Sly Stone, que se chama Silvester (risos), “Indecente” é também uma aportuguesada no nome de uma música do Miles, e “Escuridão” é também por causa do Miles, que tinha o apelido de “prince of darkness”.

Sounds: Em um post recente vocês escreveram que fizeram uma sessão de audição de alguns discos, quais foram? E hoje, depois do disco pronto, vocês acham que aqueles álbuns que vocês escutaram antes da gravação fizeram algum efeito?
Rodrigo: Sim! Fizeram total efeito, pois está tudo ali!
Juninho: Ouvimos A Sea of Faces, do Archie Shepp; Get Up With It, do Miles Davis;  o autointitulado do War, etc. Daí tem algumas músicas soltas do Funkadelic, Booker T, James Brown e Sly Stone. Esses álbuns todos fizeram muito efeito no nosso som. Foi o pontapé de tudo, nos inspirou e a partir daí começamos a criar arranjos em cima, mudar a intensidade, velocidade; então, muitos deles estão completamente distorcidos no meio de tudo.
Rodrigo: E o mais legal é que isso fica claro pra mim e pro Juninho, mas não exatamente para as outras pessoas que ouvem as nossas músicas. Cada pessoa que escuta o disco fala que lembra muito tal banda ou tal disco, e tiveram casos que nós nunca nem ouvimos tais discos ou tais bandas. Acho isso muito legal! O negócio bate diferente em cada um.  

Rodrigo Tucano e Juninho, o Bufo Borealis