Grindcore em seu estado primitivo, quase intratável, no bom sentido. O Anarchus nasceu no México, em 1986, e como um quarteto começou suas atividades em prol da então anti-música, que nada mais era do que um dar de ombros às estruturas polidas concebidas previamente pelo padrão do que se entendia por música. O Napalm Death foi uma das primeiras bandas que ficaram conhecidas por adotar o símbolo da anti música, mas parte da história conta que, em 1983, o Genocide Association, banda punk inglesa de vida curta, foi a primeira a usar o famosa ilustração da nota musical cortada, mas isso é outra história.
Recuperando aqui na memória, nossa história com o Anarchus tem início cinco anos após o nascimento da banda e um ano depois do lançamento do primeiro EP, intitulado Final Fall of Gods.
Era 1991. Os discos nacionais custavam o valor de algumas semanas de lanches na escola e os importados então, sem chance, não eram para nosso bolso. Eram caríssimos e eram difíceis de encontrar. A solução? A famosa, democrática e nem sempre amigável troca de fitas k7.
Era praticamente um namoro à moda antiga. Bem antiga mesmo. Havia todo um cerimonial. Não era simplesmente chegar e pedir: “opa, será que você poderia gravar esse disco aí pra mim?”. Não! Existia um ritual. Era preciso, de certa forma, mostrar um conhecimento mínimo e desejo declarado por tais discos para só depois conseguir com que o proprietário(a) de tal álbum gravasse um k7 pra gente.
Em uma dessas trocas de fita, ouvimos algo que transitava por uma forma de barulho explosivamente tosca, de acordo com o grindcore feito na época. Era uma sonoridade rudimentar, ainda bruta e de fronteiras pouco maleáveis.
No Anarchus não havia nada de inovador, mas a forma como aquelas músicas eram cometidas ganhou nossos ouvidos. Eram como se a música criada por Pancho (vocal/ baixo), Julio (guitarra), Miguel (guitarra) e Adolfo fosse uma espécie de parente próxima de nomes como Septic Death, Fear of God e Agathocles, o que fez com que nossa curiosidade superasse nosso juízo. Sem nenhuma fita nova em mãos, a solução foi gravar Final Fall of God por cima de um k7 oficial do Lights, Camera, Revolution…, clássico do Suicidal Tendencies. É, loucura, a gente sabe. Mas são deliciosas inconsequências da adolescência, quando tudo é objetivo e urgente, assim como o grind.
Final Fall of Gods não saía do toca-fitas. A obscuridade de uma banda vinda de fora do circuito Europa, EUA e Japão era instigante. Necrosis, Pentagram e Criminal, do Chile; o incrível Masacre, da Colômbia; e os conterrâneos Necrophiliac e Shub Niggurath eram os nomes mais ouvidos por aqui. Por mais que a proximidade territorial favorecesse, não conhecíamos outros nomes e também não era lá muito comum aparecerem demos ou discos de bandas da América Latina no nosso país. O fator atípico despertava um sentimento comum naqueles dias, de que aquelas eram as nossas descobertas, portanto; eram as nossas bandas. Era uma sensação de pertencimento a algo desbravado e conquistado às custas do pouco acesso.
Um ano antes do lançamento de Final Fall of God, o Anarchus chegou a tocar com grandes nomes do metal, entre eles, o nosso Sepultura, que naquele ano fez sua primeira passagem pelo México. Tem uns vídeos incríveis desse show no Youtube.
Final Fall of God foi mixado por Scott Burns, no mítico Morrisound Studio, berço do metal extremo dos anos 90. Scott é o Don Zientara, Quincy Jones, Rick Rubin do metal extremo. O cara gravou bandas como Cannibal Corpse, Monstrosity, Cynic, Obituary, Death, entre tantas outras que ajudaram a definir o que é o death metal, por exemplo.
Mas, mesmo com a benção do midas do metal extremo, a produção do EP não é das melhores, o que acaba localizando Final Fall of Gods somente naquele tempo e espaço por sua sonoridade que permeava os bons barulhos produzidos naquele tempo.
Poucos veículos de imprensa falaram sobre o Anarchus. Poucos, não. Quase nenhum, na verdade. Uma das publicações que entrevistaram a banda foi o United Forces, fanzine importantíssimo, idealizado pelo Marcelo R. Batista (Extreme Noise Discos) e que recentemente virou livro.
Final Fall of Gods é entrecortado por seis atos. Entre eles vale o destaque para os vocais de Pancho, que ruge feito um bicho enjaulado. Em uma das pouquíssimas resenhas sobre o EP, o autor chega a comparar os vocais de Pancho com os de Tom Stevens, de uma banda chamada Nokturnel, que até então a gente não conhecia. Ouvimos e realmente lembra, mas nesse paralelo, os urros de Pancho sempre nos remeteram aos vocais de Mika Luttinen, do Impaled Nazarene, principalmente na fase inicial dos finlandeses.
Em pouco mais de 11 minutos, Final Fall of Gods promove um combo sem grandes variações. É grind rápido, direto e reto, com destaque para “Flowers to the Pigs”, que abre o disco, a faixa-título e “Jesus Christ (Impostor)”.
Dois anos depois do lançamento de Final Fall of Gods, a banda participou da Grinding Syndicate, uma coletânea japonesa com outras três bandas. Ao lado dos conterrâneos do Cacofonia e dos japoneses do Gibbed e Multiplex, o Anarchus contribuiu com seis faixas igualmente agressivas, mas um pouco mais próximas do brutal death metal.
Entre tantas que marcaram aquela época, o Anarchus é uma das bandas que conversam com nossa memória emocional. Um lugar que a gente vive revisitando no exercício de manter vivas as lembranças que sabemos de onde vem, o sabor que tem, e o barulho que carregam.