Pode parecer pesado ou uma justificativa para um monte de colagens barulhentas e quase ininteligíveis, mas talvez, desde o início, o recado do Carcass tenha sido sobre a vida ser tão dura quanto uma ida ao necrotério. Ou tão podre quanto a nossa inevitável decomposição final. Imagens fortes, mas é assim o mundo ilustrado por Bill Steer, Ken Owen e Jeff Walker, em Reek Of Putrefaction, o disco de estreia da banda.
Em mais uma manobra daquelas que só a música dá, o tempo nos fez o favor de trazer à tona uma outra definição de Reek Of Putrefaction. O outro lado de um prisma já bastante conhecido, mas que, sob novas percepções, nos fez reanalisar esses 30 anos de vida e reviver uma época bela e cheia de descobertas – por mais que a palavra bela e Reek Of Putrefaction pareçam não conviver muito em harmonia, elas coexistem, pode acreditar.
É bem possível que, na época em que foi lançado, nosso interesse fosse mais restrito a ter em mãos algo que fosse absurdamente barulhento e diferente.
Uma publicação gringa chegou a definir o Carcass como um aborto doentio nascido gerado a partir da velocidade do Napalm Death, o peso do Master e a doença do Repulsion. Este aborto doentio pode ser chamado de Carcass, que com Reek Of Putrefaction, ao lado do Scum e do Horrorfied, dos já citados Napalm e Repulsion; e de World Downfall, do Terrorizer, ajudaram a criar, definir e explodir tudo o que a gente, a partir dali e até hoje, entende por grindcore.
Mas mesmo nesse primeiro disco o Carcass já dava sinais de que queria ir além do grind. Sua criatividade escatológica parecia querer mais sangue, mais excrementos. A banda então foi coroada como uma das criadoras do splatter death metal (ou goregrind), terreno povoado também por alguns contemporâneos como Impetigo e o Pungent Stench, que em 88 lançou sua primeira demo tape batizada com o singelo nome de Mucous Secretion. Splatter até o osso.
O universo gore do Carcass tratava de temas como decomposição e mutilação de cadáveres, e todo tipo de nojeira explícita sustentada por vocais ainda mais podres do que o assunto sugere. Isso fica claro em “Pyosisified (Rotten to the Gore)”, “Feast on Dismembered Carnage” e “Oxidised Razor Masticator”. Sonoramente, o que Reek Of Putrefaction traz aqui é bem semelhante ao que seus contemporâneos do Napalm Death fizeram nos seus dois primeiros lançamentos.
Não por acaso, Bill Steer também gravou os três primeiros registros do Napalm Death (Scum, From Enslavement to Obliteration e Mentally Murdered ). Suas características estão lá, acompanhadas de toda dissonância que ele sempre provocou, mas talvez só em “Oxidised Razor Masticator” seja possível enxergar uma proximidade do mesmo Bill de From Enslavement to Obliteration. O que mostra uma grande versatilidade em conseguir dividir sua criatividade, com diferentes características, em um terreno tão delimitado como o que foi explorado pelo Carcass nesse primeiro disco.
Para boa parte de quem teve contato, Reek Of Putrefaction era algo quase inaudível. Em 1988, ano de lançamento, o disco chegou à sexta posição na parada independente do Reino Unido. John Peel, famoso e respeitadíssimo radialista inglês, chegou a dizer que este era o seu disco preferido daquele mesmo ano. Não por acaso, já em dezembro de 1988, John Peel convidou a banda para gravar as saudosas Peel Sessions.
Por aqui, o impacto foi grande. Reek Of Putrefaction causou espanto e a maior parte das pessoas, nós inclusive, ficou meio sem entender muito bem o que era aquilo. Já se falava em grindcore, mas ainda era algo muito recente.
Bill Steer chegou a dizer que o álbum foi arruinado pelo engenheiro de som e que a banda estava longe de se sentir feliz com o resultado final. E convenhamos, é até fácil imaginar o porquê. Toda gravação é extremamente suja e grave, o que no nosso imaginário era proposital. Pra soar podrão mesmo, como a gente dizia. O efeito foi totalmente negativo? Nem tanto. E no meio disso tudo o tempo foi o encarregado de mudar um pouco a ótica.
Tudo bem que a prensagem gringa não ajudava muito, mas o LP lançado no Brasil pela Devil Discos tinha qualidade ainda mais duvidosa. Era difícil diferenciar os espaços preenchidos por violentos ataques de blast beats, riffs ultrarrápidos de distorção cortante e vocais podres. E quando a gente diz podre, é podre mesmo, crédito dos três membros da banda que intercalavam seus urros entre as faixas.
Entre as infindáveis conversas era respeitável anunciar seu gosto por esse disco. De tão longe das fronteiras comuns, Reek Of Putrefaction gerava status. E o que os adolescentes precisam não é encontrar sua própria causa para serem enxergados por sua singularidade? Ter em mãos Reek Of Putrefaction era como desafiar a própria tolerância ao extremo. Testar limites. E essa talvez também tenha sido uma das questões da banda.
Bill chegou a contar em entrevistas que montou a banda influenciado por nomes como Slayer LARM e Exodus. Disse também que o nome Carcass não tinha nenhum significado especial. Era algo que, segundo ele, parecia soar legal nos seus 15 anos, época em que ele conta ter sido a primeira vez que montou a banda, com uma formação diferente da que ficou mundialmente conhecida. Ken era o vocalista e o baixo e bateria eram tocados por outros dois colegas de escola.
A capa desse disco também foi algo bem controverso e virou o estômago até dos mais resistentes. No Brasil, a colagem de fotos de autópsia retiradas de um jornal de medicina passou ilesa. Em outros lugares do mundo foi censurada e sofreu alterações para que fosse distribuída.
Aos ouvidos mais desavisados, Reek Of Putrefaction pode soar cansativo e até monótono, e a gente até entende os motivos. As músicas parecem se atropelar, mas algumas delas possuem características marcantes, como a climática e primal “Genital Grinder”, que lembra nos lembra um pouco o clima da incrível “Megaton”, do Defecation, uma das melhores intros da música extrema.
Muita coisa negativa poderia ser dita sobre esse disco. Mas mediante isso, sobressai a coragem e audácia da banda em colocar um disco desse na rua. Gostando ou não, Reek Of Putrefaction era diferente de tudo o que vinha sendo lançado no metal daquela época e do que a banda viria a criar dali pra frente.
A verdade é que não há como negar. Apesar da baixa qualidade sonora, esse é um disco que não só marca o começo de uma grande banda, mas também a evolução de um gênero inteiro, como fizeram “Black Metal”, do Venom; e a demo “Death Metal”, do Possessed.
Para o submundo, no contexto daquela época, Reek Of Putrefaction foi inaugural. Uma estreia que precisava ser realmente podre.
E pensando bem, em um certo recorte, viver é se decompor. É também decompor o tempo. De alguma maneira, o ímpeto registrado nesse disco reflete a vivacidade desenfreada de três jovens, ao mesmo tempo que também fala muito sobre a compreensão da finitude que o passar dos dias revela. Sendo assim, o Carcass, podre, é sim uma revisita a dias de lindas descobertas. Um disco que fala muito mais sobre a vida do que sobre a morte.