Jane’s Addiction Os 30 anos de 'Nothing's Shocking'

In Bandas, Discos

Comecinho da década de 90. Uma música: “Stop”, do Jane’s Addiction. Pouco mais de quatro minutos e a sensação de pertencimento a algo que a gente ainda não sabia o que era.

“Stop” era presença frequente no Gás Total, programa comandando pelo grande Gastão Moreira na nossa MTV Brasil. Na mesma época, ela também frequentava outro programa incrível na MTV americana, o 120 Minutes, onde Rollins Band, Shudder To Think, Butthole Surfers, Pavement, Sunny Day Real Estate e mais uma leva de bandas fizeram apresentações memoráveis nos estúdios da Music Television gringa.

Todo o disco Ritual de Lo Habitual, lançado em 1990, tinha um frescor necessário. A paixão foi imediata e quando isso acontece, você quer descobrir tudo sobre aquele seu novo amor, certo? Pois é, e como toda obra de arte, essa também tinha uma predecessora: Nothing’s Shocking (1988), o primeiro registro de estúdio do Jane’s Addiction, que conseguimos em uma locadora de CDs (lembram disso?). Junto com ele também alugamos o primeiro álbum dos caras, autointitulado, que nada mais era que algumas músicas de estúdio e outras gravações ao vivo de um show de 1987, no Roxy Theater, em Los Angeles.

O maluco Perry Farrell, vocalista da banda, é dono de uma voz, digamos, bem peculiar, e é também quem dá parte do contorno ao som do Jane’s Addiction. Nascido no Queens (Nova York), aos 17 anos ele foi para Califórnia com uma prancha de surf e nenhum lugar pra ficar.

Farrell fundou a banda junto com o baixista Eric Avery, que compartilhava com ele uma paixão pelo Joy Division e Velvet Underground. Stephen Perkins, um dos melhores bateristas do rock alternativo, e que quase nunca é lembrado por isso, se juntou aos dois por indicação da irmã de Avery. Perkins, por sua vez, trouxe o guitarrista Dave Navarro, que com sua entrada, definiu o clássico line up do Jane’s Addiction.

Ambicioso, Farrell quase acabou com a banda antes mesmo do lançamento de Nothing’s Shocking. Os caras andavam se estranhando porque o vocalista tornou-se proprietário de 60% dos royalties, deixando os outros 40% para serem divididos entre os outros três, de acordo com a Louder Magazine. Resultado? O Jane’s Addiction quase implodiu.

Nothing’s Shocking foi parte de um frutífero cenário de bandas que ampliaram fronteiras e criaram uma nova paleta de cores produzidas na louca Califórnia daqueles dias: Fishbone, Faith No More, Red Hot Chilli Peppers. Além destas tinha também o Living Colour, que vinha de Nova York. Todas elas foram responsáveis por intrigar muita gente com uma mistura de funk, hardcore, metal, rap e uma boa dose de coragem ao se deslocar dos padrões da época. Era o novo. Era o rock alternativo efetivamente como uma alternativa dentro da música no fim da década de 80, que precisava de um chacoalhão que veio por meio dessas bandas, do grunge e, em um terreno mais extremo, do death metal e do grindcore.

Foto: Divulgação

Nothing’s Shocking abre com “Up the Beach”, que já deixa evidente o protagonismo do baixo de Avery, muito inspirado por Peter Hook,  do Joy Division/New Order. Depois que a música engrena, Farrell emula algumas linhas de vocais viajantes intercalados como uma só uma palavra: home.

Farrell é um cara bem ligado ao surf. No clipe de “Stop”, por exemplo, é ele quem aparece pegando algumas ondas. Dito isso, fica fácil entender a presença das temáticas “praia” e “natureza” presentes em Nothing’s Shocking.

Para bandas como o Jane’s Addiction, peso não se restringe somente a distorção. A origem disso acontece em um lugar mais intenso e a maravilhosa “Ocean Size” comprova isso. É uma música linda! É impossível não se arrepiar com o vocal evocativo de Farrell e com a forma com que ele desliza seu timbre por toda sua estrutura. Ao lado de “Mountain Song”, “Ain’t no Right”, “Three Days” e “Stop”, “Ocean Size” está entre as cinco melhores músicas da banda.

Dave Navarro e Stephen Perkins fizeram sua escola no heavy metal, fato traduzido nos riffs e solos de “Had a Dad”. No conteúdo, Farrell segue incisivo em se reconhecer semelhante ao que ele viu em seu pai.

Had a dad
Big and strong
Turned around
Found my daddy gone
He was the one
Made me what I am today
It’s up to me now
My daddy has gone away…

Usando trechos de uma entrevista com o serial killer Ted Bundy, “Ted, Just Admit It…” é pesadona e bem tensa. Farrell chegou a contar que quando escreveu essa letra tinha tomado ácido enquanto assistia a um documentário sobre assassinos. A música evolui até que Farrell entra em um looping repetindo sex is violentsex is violent sex is violent. É dela também que vem o nome do disco, tirada da estrofe Showed me everybody / Naked and disfigured / Nothing’s shocking.

“Standing in the Shower… Thinking” é calcada em um groove envolvente enquanto Farrell divaga sobre as maneiras que as pessoas podem conseguir certos poderes, ou serem destruídas por eles. Analisando bem, “Standing in the Shower… Thinking” soa como uma premonição, ainda crua, do que eles viriam a fazer em Ritual De Lo Habitual, com “Been Caught Stealing”.

“Summertime Rolls” nunca esteve entre as nossas favoritas, mas com o tempo ela foi evoluindo e conquistando nossos corações. Ou nós é que não estávamos preparados na época, vai saber. Ela faz ponte para a música que conseguiu traduzir parte da catarse que a banda provavelmente causava em suas apresentações ao vivo. “Mountain Song” é praticamente um hino. Praticamente não, ela é um hino! Uma celebração às as diferenças: “Comin’ down the mountain, one of many children/ Everybody has their own opinion.”

O clipe de “Mountain Song”, recheado por cenas da banda tocando, corroborava com a nossa ideia de que o Jane’s Addiction, ao vivo, era mesmo uma erupção intensa e indomável.

Sobre os efeitos causados pelos shows que eles faziam, no livro Whores: Uma biografia oral de Perry Farrell e Jane’s Addiction, o então baixista do Green River, Jeff Ament, conta sobre quando tocou com a banda: “Naquela noite, o Jane’s Addiction nos mostrou que você poderia fazer algo realmente diferente e funcionar, o que basicamente causou o fim do Green River, já que os outros caras não foram tanto atrás disso como Stone Gossard e eu fizemos… Quando voltamos para Seattle, queríamos algo com menos limitações, que tivesse inúmeras possibilidades e é isso que o Jane’s Addiction parecia ser para nós. Isso realmente nos inspirou”. Depois do fim do Green River, Ament e Gossard montaram o Mother Love Bone e, na sequência, o Pearl Jam. O resto é história.

Honestamente, não sabemos por qual razão, mas a linha de baixo do início de “Mountain Song” sempre nos lembrou “Isolation”, do Joy Division, que também chegou a ganhar uma versão incrível do Therapy.

Musicalmente falando, “Jane Says” é linda, mas expõe uma narrativa dolorosa sobre Jane Bainter, amiga de Farrell, que sofria com o vício em heroína e inspirou o nome da banda – apesar de ter odiado essa “homenagem”. A faixa transmite sensibilidade revelada em doses homeopáticas em suas linhas.

 Jane says: I’m done with Sergio
He treats me like a ragdoll… 
I’ve never been in love
I don’t know what it is
She only knows if someone wants her.

É daquelas que tocaram até cansar, mas não cansou. Pelo contrário, ela ainda soa muito bem. É como a “You Can’t Always Get What You Want” (Rolling Stones) deles. Uma balada forte e que se tornou um dos principais sucessos da banda.

“Idiot Rules” é a que mais conversa com Mother’s Milk, do Red Hot Chilli Peppers, trazendo para a superfície um cenário mais funk 70. Swing de sobra com direito a participações de Angelo Moore e Christopher Dowd, do Fishbone, no sax, e Flea, do Red Hot Chilli Peppers, no trompete.

Pra fechar, “Pigs in Zen” tem quase o mesmo desenho de “Ocean Size”. Talvez não a mesma força, mas ainda assim é uma importante representante da veemência que o álbum imprime. Ela só saiu na versão em CD de Nothing’s Shocking, o que fica perceptível na mixagem final, mas antes disso ela já tinha sido registrada no lançamento anterior, o disco ao vivo e autointitulado que citamos aqui. Sem dúvida é uma grande música.

Foto: Live And Profane Bootleg CD

O que nos encantou no Jane’s Addiction foi o sentimento intrigante que a música deles conseguiu provocar. Em nossa inocência juvenil movimentada pela busca por um som explosivo e pesado como “Stop”, trombamos de frente com um disco que não era só feito daquela intempestividade, e isso ajudou a amadurecer nosso entendimento sobre as mudanças estéticas e criativas que aconteciam naquele momento.

O estranhamento causado por Nothing’s Shocking foi tão grande quanto seu magnetismo, e a gente não queria desgrudar daquilo. E não desgrudamos. Havia ali uma sensibilidade que incorporava o Led Zeppelin, o Joy Division, o funk, o metal e o dub.

E com o passar dos anos fica cada vez mais claro que Nothing’s Shocking é realmente sem limites. Sem fronteiras. Um disco que ajudou a redesenhar o cenário daqueles dias, deixando o rock um tanto mais apaixonante.

Foto: Divulgação