Fernando Lopes (Floga-se) Que música tocou tanto, tanto, tanto, e ainda assim não esgotou seus ouvidos?

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Algumas músicas tocaram tanto, mas tanto, que chega a ser insuportável ouvi-las novamente. Começa uma nota, você a reconhece e já brota aquele arrepio na espinha. “Ah neeeeeem”. E olha que nem estamos falando da música do caminhão de gás, do “Parabéns pra Você” e do Hino Nacional, que há anos se fazem presentes nos nossos ouvidos.

Um dia estávamos comentando sobre como algumas músicas se tornaram hits absolutos, tocaram em tudo quanto é lugar ou ocasião, e ainda assim, depois de milhares de repetições, são capazes de nos emocionar e dar aquela sensação boa de quem ouve uma grande canção pela primeira vez. É uma relação bastante pessoal – há quem ame ou odeie “Stairway to Heaven”, “Losing My Religion” ou “Nothing Compares 2 U”, repetidas anos a fio. Foi assim que decidimos descobrir os hits favoritos de alguns convidados especiais.

Você verá uma música a cada post, com os comentários respectivos. Começamos com o Fernando Augusto Lopes, que escreve no excelente site Floga-se.

“Blue Monday” – New Order
(Fernando Augusto Lopes / Floga-se)

Eu sei que a música foge um tanto do escopo do Sounds Like Us [“não foge nãããooo, Fernando!!!”], mas quando me pediram essa reflexão, só veio “Blue Monday” à cabeça.

Ela foi lançada em março de 1983 e mais de 30 anos depois, segue bem atual e “moderna” (aqui, vai entre aspas porque “moderno” é algo, talvez, relativo).

“Blue Monday” data de apenas três anos do suicídio de Ian Curtis, que pôs fim ao Joy Division e deu o pontapé inicial ao New Order. É de meses antes do segundo disco da banda, Power, Corruption & Lies, onde o quarteto apresentava um “esqueleto”, com batida bem semelhante, original e experimental, “586”.

Era uma época em que o New Order experimentava batidas e elementos eletrônicos mais agudos – por isso, quase não se percebe a guitarra de Bernard Sumner. Ao mesmo tempo, o baixo de Peter Hook está lá, protagonizando, tal como era a força dos baixos e dos beats mais pops da disco de poucos anos atrás.

As inspirações vieram de fontes que hoje animam festas de casamento – ao contrário de “Blue Monday”, que dificilmente é tocada nesses eventos. Bernard Summer admite que tiraram a batida de “Our Love”, hit da Donna Summer, de 1979, produzido por Giorgio Moroder.


A linha de baixo de “You Make Me Feel (Mighty Real)”, sucesso de Sylvester lançado em 1978.


O arranjo de “Dirty Talk”, de Klein & MBO, de 1981. Os primeiros segundos são semelhantes mesmo.

E o teclado/coro de “Uranium”, faixa do Radio-Activity, que o Kraftwerk lançou em 1975.


No caso do coro que se ouve em “Blue Monday”, diz-se que o New Order simplesmente afanou o som que o Kraftwerk construiu… sampleando-o, numa época em que o termo não era conhecido, muito menos a prática (que só veio surgir de fato e comercialmente anos depois, com a house music de Bomb The Bass, M/A/R/R/S e outros).

Os amantes do Joy Division torceram o nariz, mas foi por pouco tempo. O New Order, afinal, tinha seu lado sombrio. E tampouco “Blue Monday”, com tal título, podia ser chamada de “alegre”. Com mais de sete minutos, não era também uma música moldada para as rádios, nem para as pistas de dança. Pelo contrário: não existe a estrutura verso-refrão-verso; o refrão mal é percebido; o vocal inicia-se com mais de dois minutos de canção; e a letra, sobre um cara humilhado pela garota, não expõe a alegria de quem vai cair na balada. Pense em todas as divas pop de hoje em dia e você perceberá que a fórmula de “Blue Monday” estaria fadada ao fracasso. Nem cara de “lado B” tem.

Mas o tempo contou outra trajetória. Ainda hoje é o single de doze polegadas mais vendido da história – e, com seus sete minutos e meio, é o single de maior duração a figurar numa parada de sucessos inglesa.

A Factory, que lançou o disquinho, não ganhou grana com tamanho sucesso, isso porque tinha que pagar as contas do seu recém-criado criado clube Haçienda.


Ouvindo a canção trinta anos depois, é possível ainda se empolgar com as batidas. Os sete minutos passam voando, porque é uma música construída, que evolui ao longo do percurso. Ela não fica, como nas músicas dançantes mais populares das décadas seguintes, baseada apenas em velocidade da batida ou em inserir elementos quaisquer para dourar a pílula (desculpe-me pelo trocadilho). “Blue Monday” pouco se repete. Há uma base, uma melodia, graças ao baixo de Hook, mas é uma canção que expõe capítulos ao ouvinte.

Primeiro, a batida seca, isolada. O teclado vai entrando aos poucos (até mesmo, como Gilliam Gilbert admite, “no tempo errado”), daí a banda toda explode, até ser cortada por mais um break seco, com uma dupla de quatro batidas. Chega a hora do baixo. Mais batida, agora pra deixar o coro entrar e dar vez ao protagonismo do teclado, que anuncia o vocal. Já temos dois minutos de canção. Nada se repetiu.

Os primeiros versos chegam com uma batida diferente de quando a banda explode e da fase pré vocal/protagonismo do teclado. É a parte mais longa. Entre as segunda e terceira estrofes, onde caberia um refrão, a banda resolve brincar com baixo e novas batidas. Vem mais versos. Ao fim da quarta e última estrofe, aos quatro minutos e meio, o instrumental vai até o final, aternando-se entre estaladas de baixo, batidas duplas, triplas e quádruplas, secas, explosivas, e teclados desenvolvendo uma ou outra passagem. Há uma repetição. Então, o epílogo, com todos juntos, e a bela paisagem de teclado de Gilbert costurando tudo.

Até onde parece, “Blue Monday” é uma música que funciona perfeitamente para as pistas e até para academia. E tocou muito nesses trinta anos em ambos os cenários, além de rádios, programas de tevê, festas, eventos, iPods, em qualquer lugar onde se pudesse querer “animar” o ambiente.

Mas ela é mais do que isso. Funciona ainda hoje – e talvez funcionará para sempre – como um legítimo exercício de experimentação com elementos acessíveis, palatáveis e mundialmente populares (principalmente o apelo à dança mecânica), porém é um exercício elegante, intrincado e elaborado. Uma sinfonia pop.