Sounds Like 90’s: IML (Intense Manner Of Living)

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Foto: Acervo pessoal

Algumas bandas têm o sabor do tempo ao qual pertenceram. As nuances, trejeitos, melodias, texturas e sonoridades são inconfundíveis. O ponto comum entre todas elas? O amor pela música que cometem. Dentro disso, muitas conseguiram criar uma identidade consistente. Entre elas, o IML.

Intense Manner Of Living. Poucos nomes seriam tão literais e eficientes em expor um recorte daquele momento repleto de fúria, paixão e descobertas. Além desses três pilares, um outro conjunto de fatores fez surgir na cena independente brasileira da década de 90 uma porção de bandas que circularam e marcaram as nossas vidas e aquele momento da música subterrânea.

Dentre os fatores, a abertura do mercado, o crescimento dos programas de rádio e TV dedicados à música, o aumento das casas que ofereciam espaço para bandas iniciantes e de médio porte, e a adesão ao espírito do it yourself desbravado pelo punk da geração anterior, como Inocentes, Cólera, Armagedom e Ratos de Porão.

Criada na zona leste de São Paulo, o IML respondeu a todas as dificuldades que a geografia daquele tempo impunha. De raízes punk, deu de ombros às dificuldades e desafiou os limites para criar sua sonoridade. Reforçou o hoje comum “faça você mesmo” que, naquele tempo, exigia coragem e desprendimento. Rodou o Brasil, passou por alguns perrengues, organizou seus próprios shows, assinou com gravadora e dividiu o palco com outras importantes bandas como Fugazi, Garage Fuzz, Shelter, No Violence, Dead Fish, Anthares, Pig Machine e Megaforce, entre tantas outras.

O IML é uma banda repleta de boas histórias. E o Sounds Like 90’s é sobre isso. É o nosso tributo às bandas que vimos, ouvimos e acompanhamos naquela época. É a nossa forma de oferecer um registro feito com cuidado e carinho às bandas que fizeram parte de nossa vida.

Para essa edição convidamos Paulo Felix, nome atuante na cena hardcore da década de 90 e vocalista do IML. O início, as dificuldades, as conquistas. A conversa foi longa e cheia de memórias sobre aquele tempo bom, que não volta, e que será sempre lembrado por boas histórias. 

Paulo Felix. Foto: Sounds Like Us

Sounds Like Us: Conta pra gente como surgiu o IML?
Paulo Felix: O IML foi uma banda que se deu mal numa certa parte da história, sabe? Não tivemos um final muito feliz (risos).

Sounds: É mesmo? O que te faz enxergar dessa forma?
Paulo: Éramos quatro moleques da zona leste de São Paulo. Eu trabalhava como office boy, a gente sem dinheiro pra nada… As demos eram feitas tudo em fita regravada, tosca, e de repente a história aconteceu! O IML começou a fazer alguns shows, surgiram viagens para Curitiba, Florianópolis… rodamos o Brasil de ônibus. Matérias foram publicadas em jornais como a Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, ganhamos patrocínio de roupas…

Sounds: Isso deve ter dado um gás, mas vocês já tinham uma história pregressa intensa. O IML foi uma banda bem ativa naquela primeira metade dos anos 90, né?
Paulo: Foi! Até que pintou o convite do João Gordo pra gente gravar a coletânea Fun, Milk and Destroy.

Paulo com o LP da coletânea Fun, Milk and Destroy. Foto: Sounds Like Us

Sounds: Que hoje é um disco clássico…
Paulo:  “Pô, vamos gravar um disco, cara!”. Foi legal porque o IML tava numa época muito inventiva.

Sounds: Isso foi por volta de 1992 ou 1993?
Paulo:Foi 1993. Tínhamos lançado a demo Cultural Intersection in a Hardcore Band porque a gente acreditava que o hardcore não precisava ser só um lance “tu pa, tu pa, tu pa”, quadradinho, 4×4. Poderíamos juntar outros elementos, não precisava ser uma coisa só de som, mas uma atitude!

Sounds: O Hardcore extrapola o palco, disco, a música…
Paulo: Sim. Nessa demo tinha músicas com trombone, saxofone, berimbau, triângulo, pandeiro, um monte de instrumentos. Quem pensava em misturar todos esses instrumentos com hardcore lá no começo dos anos 90? Isso foi antes de Sepultura e Raimundos. A demo caiu nos ouvidos do Gordo e foi aí que ele chamou a gente pra gravar o Fun Milk and Destroy, que era um projeto dele com a Devil Discos, que também tinha o Lethal Charge, Muzzarelas, No Violence e o Kangaroos in Tilt.

Sounds: E o que você se lembra das gravações? Como foi levar para o estúdio o som que vocês estavam fazendo naquela época?
Paulo: No estúdio foi aquela loucura. A gente com berimbau e o Gordo levou um monte de punks da Espanha pra gravar coro de voz em todas as músicas, foi bem legal. Por causa do berimbau, a faixa que abre o disco chamou atenção. Rendeu matérias nos jornais, teve uma repercussão boa. Tanto que, logo na sequência, a Devil Discos convidou o Muzzarelas e o IML para gravarem um disco próprio. O Muzzarelas gravou o Jumentor. A gente ficou eufórico, todo mundo feliz, o Gordo ia produzir, muito show rolando…

Sounds: E nessa época aconteciam muitos shows…
Paulo: Sim, por causa da Fun, Millk and Destroy, nessa época rolou muita coisa. A gente abriu pro Fugazi, tocou no Junta Tribo, assinou contrato com a Devil e aí entra a história com a RoadRunner.

Paulo, ao vivo em Jundiaí (1990). Foto: Jefferson Brando

Sounds: Como foi isso?
Paulo: A Alê, do Pin Ups, trabalhava no departamento artístico da RoadRunner e me convidou pra trabalhar lá. Eu não tinha uma função definida, mas lembro que eles queriam que eu agendasse turnês para o Garage Fuzz e o Zero Vision. Na época a RoadRunner tinha lançado CDs de quatro bandas: Zero Vision, Garage Fuzz, Killing Chainsaw e Lethal Charge. Um tempo depois, a RoadRunner resolveu fazer uma nova série de outros quatro lançamentos e um deles seria do IML. A gente ficou “sério?!” Multinacional, né. Vai sair “lá fora” e tal. E aí perguntaram como a gente tava e nós explicamos que a banda ainda tinha um contrato com a Devil Discos.

Marcilio, Paulo, Flávio e Xan, ao vivo no Black Jack. Foto: Acervo pessoal

Sounds: Qual foi a solução? Vocês tiveram que cancelar o contrato com a Devil?
Paulo: Na época perguntavam muito o motivo de o IML não ter lançado um disco full e pouquíssimas pessoas sabem o que rolou de verdade. O que aconteceu foi que a Roadrunner disse que teríamos que cancelar o contrato com a Devil para poder assinar com eles. Topamos porque a RoadRunner tinha um monte de artistas que tinham tudo a ver com a gente.

Sounds: Deve ter sido complicado encerrar com a Devil, né?
Paulo: Sim. Conversamos com o Chicão e cancelamos o contrato. Ele queria lançar nosso disco. Um pouco atrasado, mas queria. Voltamos na RoadRunner e avisamos “olha, contrato encerrado”. Essa época coincide com a fase em que íamos gravar a demo Desire. A gente já estava pensando nas coisas para o disco quando a Roadrunner recebeu uma ordem lá da Holanda pedindo que a gravadora parasse com tudo, cancelasse todos os projetos e não contratasse mais ninguém!

Flávio, ao vivo em Jundiaí. Foto: Jefferson Brando

Sounds: Nossa!
Paulo: Imaginem a situação. Anos 90! Não era igual hoje, que você grava um disco no seu computador, na sua casa. Naquela época, ou você fazia com uma gravadora, ou não fazia! Ninguém tinha dinheiro pra pagar estúdio, que também não tinha uma puta qualidade. Não tinha isso! Estávamos numa fase tão legal e isso acabou com a gente. Puxou nosso tapete.

Sounds: Deve ter sido frustrante, ainda mais com a banda vivendo uma fase tão criativa…
Paulo: Todo show, sem brincadeira, tinha uma média de 400, 500 pessoas em qualquer lugar. Jaraguá do Sul, Curitiba, Belo Horizonte, Jundiaí. Tudo cheio. O IML tinha um público bem legal.

IML ao vivo em Jundiaí (1990). Foto: Jefferson Brando

Sounds: E também tinha uma coisa diferente em relação aos dias de hoje, que era a construção de um público, né?
Paulo: A gente ia pela primeira vez para esses lugares e levava por volta de 50 demos e 50 camisetas. Vendia. Quando voltávamos para esses mesmos lugares, já tinha uma galera com as nossas camisetas e cantando as músicas. Aí essas 50 camisetas viravam 100, 150. Foi uma fase legal. A RoadRunner sentiu que foi uma pisada na bola deles e, por causa disso, se ofereceu para bancar uma turnê do IML com o Garage Fuzz, com quantos shows a gente quisesse marcar.

Sounds: E como era o sistema de vocês para agendar esses shows? Era tudo independente também ou tinha a mão da gravadora nisso?
Paulo: Era engraçado. As viagens eram de busão. Não tinha e-mail, internet… Era época dos fanzines. Você lia uma matéria em algum zine falando de tal banda, ouvia, e se gostasse, tentava trazer essa banda pra São Paulo. Às vezes ligava alguém de Vitória pra mim, por exemplo: “alô, aí é do IML…” hahaha.

“Alô, é do IML?”. Foto: Sounds Like Us

Sounds: “Aí é do IML” hahaha…
Paulo: É.. hahaha. “Queria trazer vocês pra tocar aqui em Vitória, como funciona?”. Eu tinha que ligar na rodoviária, cotar o valor das passagens e depois ligar de volta para passar o valor total. Aí explicava que éramos em cinco (já tinha o Marcílio com a gente nessa época) e a pessoa depositava o dinheiro das passagens na minha conta. Eu sacava o dinheiro no banco, comprava as passagens e enviava uma carta informando o dia e horário em que iríamos chegar em Vitória. Chegando lá encontrávamos a outra banda e aí cada um de nós ia para a casa de um dos caras da banda local. Fazíamos o show e o que dava de grana na bilheteria pagava as nossas despesas. Depois de dois ou três meses, era o contrário. A gente é que trazia a banda de Vitória pra São Paulo. Marcávamos show no Der Temple, Urbânia… A cena era assim.

IML ao vivo no Urbânia (1994). Foto: Acervo pessoal
Flyer de um dos shows no Der Temple, com No Violence e BSBH, de Brasília. Foto: Acervo pessoal

Sounds: E a turnê bancada pela RoadRunner, como foi?
Paulo: Eles pagaram ônibus, hotel e deram uma grana para alimentação. E pô, nunca tínhamos ficado em hotel legal. Aí chamei o Fabrício, do Garage Fuzz, pra montar a turnê junto comigo e fizemos um planejamento para 40 shows!

Sounds: Turnê longa, hein?
Paulo: Era muito show. Pra tudo que é lugar. Lembro que fomos uma vez pro Sul, Santa Maria. O show era numa sexta-feira; eu e o Fabrício saímos às 12h da rodoviária do Tietê numa quarta-feira. Chegamos lá na quinta às 10h da manhã. Vinte e duas horas de viagem! Na quinta fizemos um programa de TV e rádio. Na sexta chegou o resto das duas bandas. Tocamos e o último show acabou umas 3h ou 4h da manhã. Às 7h já entramos no ônibus para Porto Alegre. Chegamos por volta do meio dia. Aí a mesma coisa. Eu e o Fabrício fomos fazer uma entrevista na rádio Ipanema. Depois tocamos no Garagem Hermética.

Cláudio, Marcilio, Flávio e Paulo ao vivo em Americana, na Cantina do Ciccio (1995). Foto: Acervo pessoal

Sounds: O Garagem era um lugar clássico.
Paulo: Nossa! Tinha gente pulando, saindo do teto, foi coisa de retardado esse show. Terminou na madrugada e de novo, 7h da manhã, estávamos na rodoviária para ir pra Curitiba. Chegamos lá umas 19h, um carro nos buscou e nos levou direto para o local. A gente já podre. Esse show terminou umas 23h e nosso ônibus saía a meia noite. Não tinha ônibus direto pra São Paulo. Então fomos pra Santos e chegamos às 6h da manhã. O pessoal do Garage Fuzz foi pra casa e nós entramos em um outro ônibus pra São Paulo. Era assim. Todo fim de semana! Até que chega uma hora que você tem que escolher o que vai fazer da sua vida.

Sounds: A banda começa no fim da década de 80, né?
Paulo: Sim, em 1989.

Sounds: E vocês já eram amigos? Como surgiu a ideia de montar o IML?
Paulo: Antes do IML existia uma banda de metal, que era com o Marcelo Havengar (bateria), Marcelo Lino na guitarra, Rubens no baixo e o Eduardo fazia o vocal. A banda se chamava Executer, e depois passou a se chamar Hellraiser. Lembro que a banda acabou e rolou de a gente montar o IML. Conheço o Havengar desde os 4 anos. Aí juntamos eu, ele e um outro Marcelo, que tocava guitarra. Não tínhamos baixista, mas queríamos montar a banda, então convidamos o Rato para tocar baixo. Eu não sabia cantar. O Havengar não sabia tocar, mas comprou uma bateria e a gente foi meio que aprendendo juntos. O único que sabia tocar e fazer uns acordes era o guitarrista. A gente não sabia nada!

Um dos primeiros releases da banda. Acervo: Jefferson Brando

Sounds: Teve alguma história curiosa nesse início da banda? Ensaios, algum show memorável…
Paulo: O irmão do Havengar ia se casar e chamou a gente pra tocar na festa…hahaha. Isso foi bem no comecinho da banda. Acho que foi a pior coisa que ele fez na vida. Imagina. Casamento e tal, aí chega uma banda tocando Exploited, Ratos de Porão… Foi todo mundo embora. Acabou a festa! Só ficou a molecada lá pulando. Acho que a gente tinha a manha de fazer as pessoas ficarem 10 minutos nos lugares.

Sounds: Nessa época vocês tinham quantos anos?
Paulo: Eu sou de 1971… tinha uns 18 anos.

Ensaio em 1991

Sounds: Depois do fim do Hellraiser vocês já tinham ideia de montar algo diferente, musicalmente falando?
Paulo: Não. Aconteceu meio que de uma hora pra outra. Eu era do punk e conversamos sobre fazer uma banda nessa linha. Depois de um tempo entrou um cara no baixo, o Rato. A gente ensaiava na garagem do Havengar, era um puta barulho, chegou a ir polícia lá por conta disso. Com um mês de banda, o irmão do Havengar marcou um show porque ele conhecia um cara num lugar que chamava Vereda, que ficava perto da praça Sílvio Romero [Tatuapé]. Era um bar. Show com um mês de banda! A gente sabia tocar “Beber Até Morrer”, do Ratos de Porão, umas coisas do Exploited, Discharge, “Polícia”, do Titãs, e já tinha a nossa primeira música, que chamava “Renúncia”, que depois foi regravada em inglês, com o nome de “Who can Stop the War”. Foi legal nossa estreia. Depois disso o Rato saiu da banda e entrou o Glauco, que depois de um tempo nos apresentou o Cláudio. Com ele a coisa mudou bastante.

IML no colégio Nossa Senhora da Glória, no bairro do Ipiranga, em uma das suas primeiras formações: Marcelo Lino, Paulo, Marcelo Havengar e Glauco, que era do Pig Machine. Foto: Acervo pessoal

Sounds: Tecnicamente, você diz?
Paulo: Sim, e por causa de todo acesso que ele tinha às músicas que a gente não tinha. Naquela época ele já mostrava coisas como Intense Degree. Eu nem sabia o que era isso. Bad Religion também. A gente ficava “caralho!”. Ele vinha com umas fitinhas compradas na Galeria do Rock, umas coisas malucas que expandiram tudo. Aí começamos a cantar em inglês, e o próprio nome, que até então não tinha significado, virou Intense Manner of Living. Acho que era por causa do D.R.I (dirty, rotten, imbeciles). Quando o Cláudio falou Intense Manner of Living, veio desse lance de viver como se fosse o último dia, de maneira intensa.

Cláudio, ao vivo no Soul Skinner, em Jundiaí (1993). Foto: Jefferson Brando

Sounds: Isso foi ainda em 1989?
Paulo: Não, isso já era em 1990. De 90 até 1996, todas as bandas cantavam em inglês. E as rádios tocavam essas músicas. A 89 FM, Brasil 2000, onde a gente até fez show lá dentro. De repente surgiu o Raimundos com aquelas músicas engraçadas, nada com nada, aquela putaria toda, e a mídia começou a questionar o por que de as bandas cantarem em inglês. Isso já começou a fechar nosso espaço. E o que surgiu depois? Mamonas Assassinas. Aí fodeu com tudo! Sentimos isso na pele. Fechou totalmente o mercado. Tanto que depois, um monte de bandas passou a cantar em português. Poucas resistiram e estão aí até hoje. Foi uma época em que você tinha que cantar em português se quisesse lançar um disco.

Sounds: Raimundos, Mamonas, depois o Charlie Brown… você acha que essas bandas enterraram o independente brasileiro?
Vesgão: Não foi culpa deles. A gente tocou com o Charlie Brown em Santos, e a banda parecia um Biohazard, era cantado em inglês, mó porrada!

Sounds: É muito mais a recepção que eles tiveram, talvez.
Paulo: Os caras queriam tocar! Lembro que encontrava o pessoal do Raimundos naquelas baladas da época, no Bar São Paulo, no New York, e eles estavam sempre lá. Não éramos amigos, mas conversávamos. Não foi culpa deles. Foi a mídia! A vida de novo não foi tão legal assim com a gente… hahaha.

Marcelo Havengar. Foto: Acervo pessoal

Sounds: Tirando o show no casamento que você citou há pouco, quais são suas memórias dos primeiros shows do IML?
Paulo: Olha, esses dias eu tava pensando nisso. Teve um que foi IML, Genocídio e Avalon, no Café Pedaço. Acho que foi um dos primeiros shows a misturar banda de punk com metal.

Sounds: O do Ratos de Porão com o Sepultura no Mambembe foi antes.
Paulo: É, o deles foi antes, mas não tinha muito isso, de misturar os estilos. Foi muito doido aquilo. A gente era tosco. Nessa época também surgiram os shows na Dynamo.

Foto: Sounds Like Us

Sounds: O primeiro? Da Santa Cecília?
Paulo: Isso. Um deles foi com o Murillo, do Genocídio, na guitarra. O Marcelo tinha saído e o Murillo tocou por um tempo. Nessa época a gente ainda tava fazendo um hardcore mais direto.

Sounds: O Cláudio trouxe coisas como Intense Degree, que era um som ultra rápido pra época, mais reto e barulhento… dá pra dizer que o som do IML começou baseado nessas bandas?
Paulo:Dá sim. Não tínhamos muita musicalidade. Era na raça. A gente queria tocar, fazer barulho. O Cláudio tinha mais técnica, era um puta compositor, sem contar que 90% das letras eram dele. Ele chegava com letra, melodia, já vinha com as coisas prontas.

Cláudio, ao vivo na festa de Santo Antônio, no Tatuapé (1990). Foto: Acervo pessoal

Sounds: E sobre quais assuntos ele mais escrevia?
Paulo: Muita coisa sobre liberdade, contra o racismo, fascismo. Já tinha esse pensamento politizado. O Cláudio era de estudar, tinha umas letras muito inteligentes, de você parar, ler, prestar atenção.

Sounds: Sobre o campo político do punk, conversamos com o Electric Sickness e eles comentaram que você também frequentava as reuniões de Juventude Libertária. Como foi essa época?
Paulo: A Juventude Libertária era um grupo que se encontrava no MASP ou no Centro Cultural SP pra estudar e debater situações. Era ligado ao A.Y.F [Anarchist Youth Federation]. Comecei a frequentar depois que conheci o Nenê Altro, do Dance of Days. Lembro que a Juventude Libertária fazia muitas ações, como uma vez que encenamos uma peça de teatro contra o racismo no meio da Praça da República. Depois da peça discutíamos o assunto com as pessoas. Também teve o dia que a gente tava no meio de uma manifestação de 1º de Maio e tinha muita, muita gente. Em um momento lá um cara disse que queria alguém pra falar lá e me deu o microfone. Aí eu falei… hahaha.

Sounds: E você acha que faz falta uma Juventude Libertária hoje em dia?
Paulo: Faz, mas não sei se aconteceria igual. Naquele tempo as coisas eram muito “ah, vai lá e faz!”. Era o faça você mesmo agora!

Cláudio, Paulo, Flávio e Xan (1993). Foto: Acervo pessoal

Sounds: Voltando ao assunto dos shows, quais bandas dividiam mais o palco com vocês?
Paulo:No começo era o No Violence. Eles também tinham umas letras bem politizadas. Nessa época já era o Flávio na bateria.

Sounds: Quando o Flávio entrou no IML?
Paulo: Em 1992. A gente o conheceu na Dynamo. Ele tinha uma banda de metal [Brainwash] que tocava muito lá, mas ele também gostava de hardcore. E o Flávio tocava muito! Nessa mesma fase também teve um outro guitarrista, o Fred, que era do Megaforce. Foi ele que gravou a coletânea Fun, Milk and Destroy. Um tempo depois ele também saiu e fizemos um teste com um cara que chamava Scud, mas ele era muito rápido, quase grind. Nisso surgiu o Xan, que era do skate. A gente olhou e falou “É ele!”…hahaha. O Xan tinha o feeling, uma pegada forte das mesmas coisas que gostávamos e queríamos, então ele foi crescendo junto com a gente.

Sounds: E quais eram essas coisas que vocês ouviam e tinham como influência?
Paulo: Pra mim sempre foram Dead Kennedys, Bad Religion, Fugazi e Minor Threat. O Cláudio gostava muito de Jawbox, Intense Degree, Fugazi, tanto que teve uma fase em que as nossas músicas eram total Fugazi. A gente chamava de “música cabeção”. Quando o Xan entrou, tínhamos recebido um convite para gravar uma coletânea do Marcel Plasse, pela Paradoxx, a No Major Babes.

Sounds: Foi uma coletânea lançada em dois volumes, né? E o Marcel Plasse tava bem envolvido em todo cenário dos anos 90, teve programa de rádio…
Paulo: Ele era jornalista da Folha de SP, escrevia pra Ilustrada. Quando saiu a Fun, Milk and Destroy, ele adorou, ligou querendo me entrevistar e fez uma puta matéria.

Sounds: Isso deve ter dado uma divulgada boa no IML também…
Paulo: Tem uma história engraçada. Por causa de todo esse lado do skate do Xan, a Sims quis patrocinar a banda. A gente era tudo uns fudido e tava ali ganhando camiseta, jaqueta, calça, meia, macacão, bermuda. Nessa época também conseguimos um patrocínio de tênis e de estúdio, que era o Da Tribo, do Ciero. Teve um dia em que eu tava no estúdio Bebop, do Miranda, um cara que sempre deu muita força pra banda. Isso foi pouco tempo depois de fechar com a Sims. Estávamos lá conversando e o telefone tocou. O Miranda atendeu e em um determinado momento ele falou: “Pera aí, vou passar o telefone para um cara que tem uma banda foda, troca ideia com ele aqui”. Atendi e era o Ricardo Alexandre, que escrevia para o Estadão. Conversei com ele e, depois de um tempo, saiu uma puta matéria no jornal, com uma puta foto legal da gente tudo usando roupas da Sims. Nossa, o cara da marca ficou tipo “porra, os cara são foda, acabamos de fechar parceria e já saiu uma puta matéria…” hahaha. Foi graças ao Miranda.

Matéria para o Estado de SP, assinada por Ricardo Alexandre. Foto: Acervo pessoal

Sounds: Ele era muito antenado em tudo o que tava acontecendo.
Paulo: E ajudou muito a gente, com dicas e tudo mais. Foi depois dessa matéria que saiu a No Major Babes, com “Change The Verbs”. Era um som meio Nirvana, mas já estávamos na fase Fugazi. O Xan fazia aqueles abafadinhos de guitarra bem Fugazi e misturávamos isso com triângulo, ficou uma coisa louca.

Sounds: E você sentia que essas misturas eram bem vindas naquele tempo?
Paulo: Era o que a gente queria. Nosso objetivo era mostrar que o hardcore não era só 1,2,3,4. Ele tava mais na cabeça, na atitude. Pra nós, aquilo era ser punk pra caralho. Como você vai misturar triângulo com hardcore? Outro dia encontrei o João Gordo (Ratos de Porão) e a gente tava conversando sobre isso. Ele falou: “porra cara, naquela época vocês botaram pra foder, porque aquilo foi feito antes do Sepultura no Chaos AD,  de Raimundos, disso tudo”. Quem fazia essas misturas todas era o Edu, que tocava percussão, sax, berimbau. Lembro que nessa época a gente tocava muito no Der Temple e sempre lotava.

IML ao vivo no Espaço Retrô (1995). Foto: Acervo pessoal

Sounds: O Der Temple era um lugar legal, bem simbólico para essa geração. Quais são suas memórias dessa fase?
Paulo: Nossa! Teve uma vez em que o cara do Der Temple ia fazer uma festa para o Exploited e queria que a gente tocasse. Topamos, mas não contei pra ninguém o motivo, porque eu já tava com “más intenções”… hahaha. Na época não tínhamos acesso a muita coisa. O que a gente sabia era o que falavam. E rolava um papo de que o Wattie [vocal do Exploited] era nazista. Então, pra mim, eles eram uma banda nazi. O show rolando, público agitando, e de repente, chega o Exploited, entrando pela lateral do palco, olhando e tal. Aí, enquanto eles iam em direção ao bar, virei de costas pra eles e continuei cantando. Ou seja, a mensagem era: “vocês não são bem vindos!” Quando terminou a música virei de frente e comecei a falar que aquela música era contra qualquer forma de racismo, discriminação e aí mandei um NAZI PUNKS, FUCK OFF! Os caras do Exploited, que estavam no balcão do bar, mandaram um “foda-se” pra mim e saíram fora. Ou seja, acabou o evento. Rolou uma puta tensão, desligaram o som, não teve festa e eles foram embora. Se ficaram 10 minutos no Der Temple, foi muito!

Sounds: Hahaha… Você expulsou o Exploited do Der Temple!
Paulo: Eu tava com uma camiseta do 7 Seconds, um puta X na mão, e também mostrei o dedo pra eles tipo “SEUS PUTO!”. Uns caras vieram falar “puta que pariu, o que você fez?” Depois de um tempo veio a cobrança. Minha cabeça tava a prêmio. Saiu até em fanzine. Os nazi ficaram atrás de mim e do Rui, do No Violence. A gente tava sendo procurado. Foi tenso! O Gordo até falou uma vez que não tinha nada a ver o Wattie ser nazi, mas é o que falei, não tínhamos informação. Falavam que o Exploited era, então a gente acreditava que era! Outro exemplo, o Cólera, uma das minhas bandas preferidas. Na época do Pela Paz em Todo Mundo, surgiu um papo de que eles foram convidados pra tocar em algum lugar e banda cobrou pra fazer o show. Eu, na época, achei aquilo um absurdo. Troquei meu disco!

Sounds: Hahaha… como assim?
Paulo: Pois é, puta coisa idiota. Claro que vai cobrar pra fazer show, pô. Sofri pra conseguir outro disco depois… hahaha.

Cláudio, Xan, Paulo, Fralda, ?, Flávio (fotógrafo) e Flávio. Foto: Acervo pessoal

Sounds: Como era a comunicação de vocês com outras pessoas, era somente via carta mesmo?
Paulo: A gente recebia muitas cartas. Eu morava na Vila Formosa, e minha janela dava pra rua. Todo dia o carteiro passava e jogava aquele monte de cartas na sala de casa. De bandas, fãs, zines, de outras cidades, outros países… Os de fora a gente não conseguia responder, era caro e não tínhamos grana. Só quando a pessoa mandava um selo pra resposta junto. Aí a gente enviava de volta, botava uma fita demo lá e pronto. Todo dia umas 10 cartas. Essa era a comunicação.

Sounds: Sobre a cena em que o IML circulava: você acha que existia mesmo uma cena ou isso foi um pouco romantizado?
Paulo: Os shows lotavam. As bandas iam umas nos shows das outras. Tinha mesmo uma cena legal, muito forte. Hoje em dia… veja o exemplo do show do Bad Religion que teve no Espaço das Américas. Cara, era o BAD RELIGION e galera nem aí. Pô, antigamente, só de o DJ discotecar antes do show, já teria gente se matando de agitar. Agora é todo mundo com o celular.

Xan, ao vivo em Santos, no Arena do Rock. Foto: Acervo pessoal

Sounds: Conversamos muito sobre isso, de como havia uma troca maior entre banda e público.
Paulo: Olha, o IML nunca foi uma banda técnica. Nunca fui um vocalista técnico. Eu era um punk. Desafinava, saía do tempo, mas a nossa ideia era a atitude. Poderíamos ter o problema técnico que fosse, mas na atitude em cima do palco, era pra poucos. Tinha show que ficava só a bateria em cima do palco. Eu voava na plateia, o Xan e o Cláudio tocando no meio da galera, pulando igual loucos, e o Flávio descendo o cacete. Eram assim nossos shows. Ah, e tinha a história dos papeis picados, vocês sabem dessa história?

Sounds: Não. Qual é?
Paulo: Uma vez, comprei um DVD do Bad Religion numa banca de jornal. E no show, no momento em que alguma música explodia, o Greg Graffin passava a mão em um monte de papel picado e jogava para o alto. Vi aquilo e pensei: “Que é isso, que coisa louca!”. Aí comecei a fazer isso ao vivo. A gente passava dois dias picando papel, juntava uns dois sacos e levava pro show. Virava uma festa. Era papel picado pra todo lado, e quando batia luz o efeito era bem legal.

Paulo e a chuva de papel no Festival Juntatribo. Foto: Adriano Moralis

Sounds: Tem uma foto do Juntatribo com esse lance dos papeis picados, né?
Paulo: Sim! Na época do Juntatribo eu já era stright edge. A galera olhava e achava que eu tava bem louco. Eu nem bebia, mas era influência de Jello Biafra, de teatralizar a música. O IML encarava o palco como um momento único. Se foi alguém lá ver o show, é pra ver O SHOW! O palco é sagrado. Então a hora em que você tava lá em cima tinha que viver intensamente esse dia, como se fosse o último show da sua vida. Então a gente se fodia, se acabava em cima do palco, como se fosse a última música. Fazia cara de choro, se jogava, tinha papel picado, era teatral mesmo…

Sounds: E como foi participar de um dos festivais mais importantes da música independente?
Paulo: Pegamos o busão pra Campinas e fomos pra Unicamp… A gente tava tão bem que teve uma jornalista, a Ana Paula, que tinha visto a gente no BHRIF, em Belo Horizonte. Ela tinha gostado tanto do show que foi pra Campinas entrevistar a gente. Nosso show ia ser numa sexta-feira; antes teve o do Resist Control.

Flávio. Foto: Acervo pessoal

Sounds: Essa banda era legal. Tinha uma demo com a capa amarela…
Paulo: Sim, aquela demo era bem legal. Eles começaram o show, a galera subindo no palco, pulando e de repente o palco afundou. E a gente: “caraaaaalho, os instrumentos!”. Antes de tocar, tínhamos guardado os instrumentos embaixo do palco. Quebrou tudo! Acabou. Mal tínhamos dinheiro pra comprar corda, imagina outro instrumento? Sem instrumento como iríamos fazer o show? No fim eles remanejaram todas as bandas para o sábado e domingo. O nosso show ficou para o sábado, depois do Garage Fuzz.

Sounds: Vocês dormiram lá?
Paulo: Sim, não tinha como sair. Vocês não têm ideia do que foi aquilo. No primeiro dia a gente já tava marrom de tanta terra. O banho era no hidrante, naquele jato de água, com roupa e tudo. Dormir era no ginásio, cheio de colchonete. Mas a gente mal dormia, era uma zona o dia todo.

IML e Pinheads. Foto: Acervo pessoal

Sounds: Como vocês fizeram pra tocar? Conseguiram resolver o problema com os instrumentos?
Paulo: O pessoal do Pinheads emprestou pra gente. Tocamos algumas vezes juntos; era uma das nossas bandas irmãs, assim como o Dead Fish.

Sounds: Isso é legal!
Paulo: Aí chegou a hora do show do Garage Fuzz e rolou uma treta lá com os anarco punks. Eles iam tocar uma música que se chama “Explain”, só que uma galera entendeu Exploited e começaram a jogar terra neles, bandeirada, puta show tenso. A gente ia tocar na sequência… Aí subi no palco, falei umas coisas lá que deram certo e acalmaram o público um pouco . Começamos o show e foi retardado, um puta show!

Sounds: Pelos vídeos parecia uma puta energia.
Paulo: Eram cinco mil pessoas naquele lugar! Coisa de louco mesmo. Foi um dos shows mais foda que a gente fez.

Sounds: O Juntatribo trouxe reconhecimento pra banda?
Paulo: Tiveram várias entrevistas pra MTV e essa era uma época em que eles apoiavam as bandas novas. Gravamos aquele programa Banda Antes, em um estúdio no Belém. O Fábio Massari entrevistou a gente algumas vezes, a Cris Couto fez matéria comigo sobre straight edge e harekrishna… hahaha.

Foto de quando o IML tocou com o Fugazi. Na foto, Flávio, Ian MacKaye (Minor Threat/ Fugazi/ The Evens) e Paulo. Foto: Sounds Like Us

Sounds: Outro show que deve ter sido marcante pra vocês é o BHRIF. Como foi participar do festival, tocar com o Fugazi e tudo mais?
Paulo: A gente era apaixonado por Fugazi. Aí teve o papo de que eles tocariam no Brasil, em Belo Horizonte. Separei um material e mandei. Era justamente a demo Cultural Intersection in a Hardcore Band. Tinha uma música nessa demo que a gente cantava em inglês, português e espanhol. Um dia tocou o telefone, era o Marcos Bofa, do BHRIF: “você mandou o material pra gente e sua banda foi selecionada”. Aí eu: “Ah, é nesse festival que vai tocar o Fugazi?”. E o cara: “é sim e vocês vão abrir para o Fugazi”. Fiquei mudo. E o cara perguntando se a gente aceitava. Falei: “preciso responder?” E ele: “não, né!”…hahaha. O primeiro pra quem liguei pra dar a notícia foi o Xan: “cara, a gente vai abrir para o Fugazi”. Aí ele: “vai tomar no cu!” e desligou! Depois de um tempo ele me ligou de novo: “o que você falou?!?” Repeti e ele “PUTA QUE PARIU!”…hahaha. Foi fantástico! Rolou uma coletiva de imprensa e tavam os caras do DFC, Dead Fish, todo mundo lá. Lembro que a gente foi fazer o soundcheck e ia ter a passagem de som do Fugazi. Ficamos vendo do fosso, pirando, “olha o sino, caraca!”…hahaha. Era lançamento do In on the Kill Taker. O mais legal é que, fora o Fugazi, a gente era a única banda de hardcore. Eram 15 mil pessoas naquela Praça da Estação, a gente olhava para o lado e lá estavam os caras do Fugazi vendo nosso show e curtindo.

Sounds: Nossa, que momento! Conta sobre o show da Dynamo em que você meteu a cabeça numa viga do teto… hahaha
Paulo: Nossa… Esse foi o primeiro show do IML que o [João] Gordo foi ver. Nesse show era o Havengar na bateria, Cláudio no baixo e Murillo na guitarra. Eu tava com a garganta ruim e alguém falou que tomar conhaque com limão ajudaria a melhorar. Bebi um, outro, outro, outro… tomei conhaque com limão a tarde inteira. Tinha um camarim que ficava meio atrás, de lado para o palco. Nossa primeira música era um cover do Cro-Mags, “We Gotta Know”. Foi aí que tive a “excelente” ideia. Combinei com os caras: “vocês começam e na chamada da parte rápida da música eu saio correndo do camarim, pego o microfone e já entro no palco cantando…”. Eu pensava: “vish, o Gordo tá aí, vai ser foda!”. Começou a música, rolou a intro, só que no meio do caminho mudei de ideia. Pensei: “bom, na chamada antes da parte rápida eu corro, dou um pulo, caio, pego o microfone e canto”. Só que quando pulei tinha uma viga no teto. Bati a cabeça e caí de costas na bateria… hahaha. O Havengar parou de tocar, parou o show, parou tudo!

Xan, ao vivo no BHRIF. Foto: Acervo pessoal

Sounds: O show foi mais curto que um tweet…
Paulo: O mais louco é que, depois disso, o Gordo foi em praticamente todos os nossos shows. Foi muito foda.

Sounds: Tinham outras bandas que você também enxergava essa energia em cima do palco?
Paulo: O No Violence! Eles tinham um lance legal de palco.

Sounds: Fora o Fugazi teve algum outro sonho realizado de tocar com alguma banda que você gostava muito?
Paulo: Shelter, no Aeroanta. Foi meu último show.

Sounds: Sério? Isso foi em 1996, né? Você tinha decidido sair da banda…
Paulo: Ninguém sabia que aquele seria meu último show. A gente passava muito tempo viajando. Eram muitos shows. A banda tava rolando mas não ganhávamos grana, no sentido de se manter, segurar a onda mesmo… Não sei se era o tempo ou lugar errado. Eu tava na RoadRunner, namorando, e chegou uma época em que, na minha cabeça, eu precisava escolher. A banda tomava muito tempo, só que uma das coisas que eu mais amava na minha vida era tocar, fazer show, aquela energia. Pra mim aquilo sempre foi muito importante. Não dava pra juntar tudo numa coisa só, sabe? Ou eu continuava com a banda, ou trabalhando, ou namorando… não tinha tempo! Era show praticamente todo final de semana. Tava muito foda e precisei escolher.

Paulo, Cláudio, Flávio e Xan. Foto: Ivan Shupikov

Sounds: Dentro da sua escolha teriam algumas renúncias.
Paulo: Eu tava ligado ao harekrishna. Quando teve o Shelter eu trabalhava na parte de imprensa da RoadRunner e eles tinham assinado com a banda. Nessa época acabei inventando aquele lance de krishna core. Eu falava para os jornalistas que eles eram uma banda punk ligada ao harekrisha, aí pegou, krishna core. O Shelter estourou, tocava na 89 FM, e decidimos trazer a banda para o Brasil para 12 shows. O clipe [“Here We Go Again”] tava estourado na MTV e a emissora resolveu fazer uma festa pra eles, que não entendiam e ficavam perguntando o motivo daquilo, já que não era aniversário de ninguém… hahaha. O Brasil era o lugar onde a MTV dava mais abertura. Fizemos essa festa e fomos para o Rio de Janeiro, onde eles ficariam hospedados em um templo harekrishna. Marquei uma coletiva no templo e aí no fim da entrevista o Ray Cappo disse que queria ir a praia. Eu não queria, mas ele falou tanto que acabei topando. Chegamos na areia e ele começou a olhar pra um lado, pra outro, pra trás… Aí perguntei se ele tava com algum problema. Ele disse: “onde estão os animais?”…hahaha. Parei e pesei: “será que entendi direito?! Ele perguntou dos animais mesmo?” Eu falei: “cara, que animal você quer ver? Aqui tem cachorro, gato…” Acho que ele se tocou, olhou pra mim e falou: “olha, me desculpe! Eu não passo de mais um americano idiota!”.

Sounds: Ele falou isso? Dessa forma?
Paulo: Falou! Na cabeça deles, o Brasil era uma floresta.

Sounds: Quando o Sepultura explodiu nos EUA, os integrantes eram chamados de jungle boys…
Paulo: É mesmo. Bom, o Ray Cappo queria nadar no mar. Encheu tanto o saco que acabei entrando na água com ele. Só sei que a água tava na altura da cintura. Veio uma onda, bateu na nossa barriga e lá foram os dois capotando. Eu achando que ia morrer… hahaha. De repente alguém me puxou pelo pescoço e me tirou da água. Voltei pra areia, olhei para o lado e… CADÊ O RAY CAPPO? Hahaha…

Pedrão, Ray Cappo (Shelter), Porcell (Shelter) e Paulo. Foto: Acervo pessoal

Sounds: “O dia em que tomei um caldo com o Ray Cappo”… hahaha.
Paulo: Encontrei o Cacá Prates e perguntei pra ele onde tava o Ray e ele: “Não sei, tava com você”. FU-DEEEEU! Doze shows pra fazer, a banda estourada e o cara morreu? Aí eu vi um surfista, de longe, trazendo um loirinho deitado na prancha e eu já achando que o cara tava trazendo o corpo do Ray. Cheguei perto dele e de repente o Ray levantou a cabeça e falou: “Pauloooo… Krishna saved us!!!” (“Paulo, Krishna nos salvou!”).

Sounds: hahaha… Krishna saved us é foda!
Paulo: Cara, xinguei tanto. Voltamos pra SP, o show deles ia rolar no Aeroanta e pedi pra gente abrir. Tava abarrotado, cheio de harekrishna, era muita gente. Acendi uns 15 incensos nos retornos de palco, agachei no chão com a cabeça pra baixo, aquele cheirão de incenso. A cortina começou a abrir, aquela fumaceira danada, a galera pirou… hahaha. Quando começou a primeira música foi insano! Cara, corri em cima das pessoas! A gente fez aquele show como se o mundo fosse acabar. Foi muito monstro, pesado demais. A banda tava numa fase muito foda!

Sounds: E nesse show era a mesma formação?
Paulo: Não, já era com o Marcílio. Porque chegou uma época em que a gente começou a sentir falta de um peso. Nas nossas músicas o baixo fazia uma coisa, a guitarra outra e a bateria outra. Então quando juntava tudo, tinha uma unidade. Quando começamos a sentir falta de outra guitarra, o Cláudio passou para a outra guitarra e a gente chamou o Marcílio para tocar baixo. Ele tinha um jeitão de tocar meio largado, parecia até o baixista do Shelter, o japonês. Pegou muito bem. Deu muito certo a entrada dele. O som ficou mais cheio, pesado. Lembro que nesse show com o Shelter o público chegava pra falar “vocês são muito foda, nunca vou esquecer!” Eu ainda não tinha me desligado da banda, mas no meu inconsciente era o último show. Eu não sabia ainda. Tanto que tive esse papo comigo mesmo, “não dá mais, não dá…” e decidi na semana seguinte. Liguei para o Cláudio, falei para todos eles, desliguei o telefone e lembro que eu chorava, chorava… Parecia que tinham cortado meu braço. Aquilo era a minha vida!

Paulo ao vivo no Festival Juntatribo. Foto: Acervo pessoal

Sounds: Deve ter sido uma decisão muito difícil…
Paulo: Porra! Vocês não têm ideia, foi coisa de louco! E paramos. O foda é que isso foi numa época que a gente tava gravando um disco por nossa conta, independente. Era uma coisa que a gente juntava um troco, comprava horas em um estúdio, que ficava na Bela Vista, e gravava um pouquinho. O disco tava ficando uma coisa muito monstra. E aí, ainda em 96, eu saí. Em 2009, quando completaríamos 20 anos, a gente se juntou pra fazer um show. Pra mim, até hoje, na história do IML, tá faltando “o pingo no i”. Falta uma coisa. Minha vontade é entrar num estúdio, pegar todas as músicas, regravá-las e colocar tudo nas plataformas. Porque nossa história foi muito rica, a gente fez muitas coisas, e não teve muito registro.

Sounds: Então vocês fizeram tudo isso sem ter um disco full? Só as demos e as coletâneas?
Paulo: Sem disco!

Foto: Sounds Like Us

Sounds: Você acha que naquela época tinha mais apoio em relação às bandas?
Paulo: Muito! Existia uma cena. Hoje vejo um monte de banda reclamando que não tem ninguém nos shows. Antigamente a galera ia ver as bandas. Hoje tem muita oferta também, um monte de show de banda gringa… Naquele tempo não tinha muito, era muito foda! Mas também tento entender que é uma outra época, outra geração.

Sounds: E você acha que seria possível fazer tudo isso que vocês fizeram nos dias de hoje?
Paulo: Nunca!

Paulo, ao final do show, no Festival Juntatribo. Foto: Adriano Moralis