Revisitando um clássico: Lobotomia – S/T

In Bandas, Discos

Tratados como sub-animais
Os internos não têm autodefesa
Para deter a violência
A que são submetidos
Os manicômios não passam
De depósitos de lixo vivo
Lobotomia…

O trecho acima, tirado da faixa que também dá nome a uma das mais importantes bandas do punk, é parte de uma coleção de músicas que nos acompanha há tanto tempo e funciona como um agente do que fomos, somos e provavelmente daquilo que seremos. São nossos hinos. Bravios e revigorantes.

Lobotomia (1986)

Era 1989, ano frenético, de boas descobertas e dos nossos primeiros encontros com o punk, em parte creditados pela seminal coletânea Ataque Sonoro, originalmente lançada em 1985. Ali tinha a gramática indomesticável de que precisávamos e as imagens que projetávamos sob a sonoridade ríspida que ouvia e cantava junto: “Lobotomiaaaaa”.

Também presentes na mesma coletânea, Cólera, Garotos Podres e Ratos de Porão já eram bem conhecidos no movimento. Mas, como o João Gordo contou pra gente em entrevista sobre a coletânea Ataque Sonoro, naquela época “o Lobotomia era a banda da vez”. Faz sentido, porque na já distante segunda metade da década de 80 eles agradavam quem ouvia punk e também já começava a absorver o hardcore, entender o recém-chegado crossover, e os fãs de metal – já que, naquele tempo, com a escassez de informações, as referências eram ouro e nas rodas de conversa a sonoridade do Lobotomia era descrita como próxima ao Discharge, Rattus, GBH e também ao Motorhead e Broken Bones.

Registro do dia de gravação da coletânea Ataque Sonoro. Zezé (Lobotomia), João Gordo (Ratos de Porão), Caio Bastos (Lobotomia) e Maria.

O início foi em 1984, entre dois importantes momentos do punk feito por aqui: O Começo do Fim do Mundo (1983) e o já citado Ataque Sonoro (1985). As publicações eram poucas; os discos, caríssimos. Em meio ao caos das então recentes medidas econômicas que o governo havia tentado implementar, as coletâneas atendiam a revolta que servia de combustível tanto para o surgimento de novas bandas e a formação de um público que precisava daquela arte inflamável. Eram também um importantíssimo meio de divulgação para aquelas bandas. Mais do que isso, eram um documento histórico. O retrato exato de um momento que a partir dali se desdobraria em uma coragem contagiosa que atingiria um número incalculável de jovens que plugariam seus instrumentos em qualquer caixa de som possível, empunhariam o instrumento que fosse, e cobririam seus versos combativos com os gritos que neles coubessem.

Lobotomia ao vivo. Foto: Eclenir

Quase dez anos depois da explosão do movimento no mundo, por aqui o punk fervia. Fosse nas calçadas do centro de São Paulo, com o surgimento de novas bandas, ou nos shows que rolavam em casas emblemáticas como o Carbono 14, Napalm e Radar Tan Tan, entre outras.

No mesmo ano de formação, a banda lançou uma demo tape que rodou muito nas famosas troca de fitas e chegou a ser relançada pela Nada Nada Discos em formato 7’’. Nela, quatro músicas calcadas na agressividade, velocidade e temas combativos que ainda hoje seguem atuais e, mais do que nunca, necessários: “Presidente da Republica”, “Lobotomia”, “Por Que Estamos Morrendo?”, “F.F.A.”, “Vai Se Fuder”, “Desordem e Regresso”.

O primeiro disco, e nosso clássico em questão, foi lançado em 1986 e era tão violento quanto o significado devastador que o nome carrega. Lembrando que a década de 80 foi marcada pelo descaso criminoso do governo em relação à saúde mental e pelo uso de método genocidas sob o verniz de “tratamento”. A lobotomização de pacientes que precisavam ser assistidos em seu sofrimento era um assunto assustador e muito presente.

Grego (bateria), Zézé (baixo), Adherbal Argel (guitarra) e Caio Bastos (vocal) foram os responsáveis pela gravação do clássico disco de estreia que joga na cara e nos ouvidos de uma sociedade recém saída de um governo militar os assuntos incômodos, contundentes e pertinentes ao momento do país.

É importante ressaltar o perrengue que era gravar um disco independente no Brasil. Os valores eram altos e a qualidade de alguns estúdios não era lá essas coisas. O estúdio onde o Lobotomia gravou não tinha muita experiência no trato com bandas pesadas. Grego contou pra gente que a única coisa “que o estúdio tinha gravado até então eram músicas evangélicas. Mas a Zezé conhecia um produtor de heavy metal, o Edu Bianchi, e ele nos ajudou a gravar… Quando lançamos ele era um dos discos mais bem gravados na época, tanto que o Korzus, senão me engano, também gravou lá depois” – [Grego se refere ao disco Sonho Maníaco, lançado em 1987, também gravado no estúdio Guidon].

Toda direção de arte foi toda idealizada pela banda, no melhor estilo do it yourself. “A capa foi a gente que produziu. As fotos foram feitas em um lugar que a gente encontrou. Era uma fábrica abandonada que tinha um terminal de trens. Foi tudo feito lá”, conta Grego.

Eram tempos de pouco, ou quase nenhum, acesso a equipamentos de gravação de qualidade. “Não existia o mundo de efeitos que existe hoje. Tudo era feito na mão mesmo”. Por exemplo, a versão da música “Lobotomia”, que abre o disco, tem uma introdução que foi criada dentro do estúdio, raspando uma ripa de madeira no carpete que cobria a porta da sala de gravação. “Gravamos, diminuímos a rotação, mexemos na frequência, e assim fizemos o efeito”, reforça o baterista.

O álbum ainda traz “Distorção Policial”, “Política Sionista”, onde o Lobotomia já abordava assuntos como os conflitos no Oriente Médio; e um outro grande clássico da banda, “Só os Mortos Não Reclamam”.

No início dos anos 80, as principais referências dentro do punk mais veloz estavam depositadas nas bandas da Escandinávia e no Discharge, que com o lançamento do EP Warning: Her Majesty’s Government Can Seriously Damage Your Health (1983), ampliou as fronteiras e reformulou a maneira de entender aquele então novo som. Depois disso, o English Dogs lançou To the Ends of the Earth, o Onslaught mergulhou no metal e o S.O.D chegou com Speak English Or Die (1985), que já era declaradamente crossover. No Brasil, o Ratos de Porão lançou o Descanse Em Paz em 1986 e também já dava sinais de que dali em diante a banda incorporaria o metal em sua sonoridade.

O disco segue com “Indigentes do Amanhã”, “Vítimas da Guerra”, e “Faces da Morte”, que também foi gravada no Ataque Sonoro e, por conta dos riffs e da divisão do vocal, traz os pilares do Discharge. Na sequência, “Pesadelos Agonizantes”, “Morte na Cidade” e “Estumetal”, trinca que encerra o disco com a mesma energia que se ouve no início.

Lobotomia, o disco, como disse Grego, “é um álbum clássico, mas ao mesmo tempo cult, porque o Lobotomia sempre ficou no underground”. E dentro do espectro que envolvia o punk subterrâneo daquele momento, os restos de cinza, asfalto, podridão, violência e temor estavam intrínsecos em quem se identificava, ou de fato vivia o movimento. As jaquetas surradas no asfalto como celebração, o perigo, as brigas, as conquistas, as conversas, os discos, as bandas. Tudo ganha mais força e memória sob determinadas trilhas e, ao lado de tantas outras, o disco de estreia do Lobotomia ainda tem essa representação pra gente.

Recentemente a banda soltou de surpresa o que, segundo eles, é o seu registro final. Seis músicas do primeiro disco regravadas em outubro de 2018 que só reforçam que o Lobotomia é, desde sempre, um dos nomes seminais do nosso crossover.

Em resposta a uma sociedade doente, a banda absorveu e devolveu todas as doenças de tempos difíceis. Era o Lobotomia como forma de cura.

Hoje, a mensagem segue fresca, necessária e tão precisa quanto na década de 80. Fica o grito que esperamos não ser em vão: “Só os Mortos Não Reclamam”.